Entre prompts e direitos autorais: a criatividade humana faz a diferença
26 de junho de 2025, 7h14
Em janeiro deste ano, os Estados Unidos acenderam o debate sobre a proteção autoral de saídas textuais, visuais e sonoras geradas com assistência ou integralmente pela inteligência artificial (IA) generativa, em especial em razão de duas novidades.
A primeira novidade se chama Um único pedaço de queijo americano ou A single piece of american cheese. Essa é a primeira imagem criada com IA generativa que os Estados Unidos conferiram proteção por copyright em favor de uma pessoa, sob a justificativa de que o papel da pessoa no processo de criação foi fundamental para o resultado final. A proteção foi reconhecida pelo U.S. Copyright Office, órgão federal de direitos autorias norte-americano responsável por registrar a autoria e a propriedade de obras intelectuais
Pouco tempo antes, os supostos autores de duas outras imagens criadas com IA generativa bastante conhecidas, A recent entrance to Paradise e Théâtre D’opéra Spatial, não tiveram a mesma resposta favorável nos Estados Unidos, tendo sido afastada a autoria humana das imagens.
A segunda novidade vem de um relatório do U.S. Copyright Office. Após analisar diversos requerimentos de proteção para imagens geradas por IA, o órgão vem concluindo que, se o sistema de IA gerou o resultado final sem participação significativa do requerente, deve ser excluída a autoria humana. A compreensão foi consagrada no Relatório intitulado Copyright and Artificial Intelligence [1]. No mesmo sentido, encontram-se algumas decisões judiciais norte-americanas.
Veremos cada uma dessas imagens a seguir. A questão central apreciada nas decisões de todos elas foi: quem é o autor quando uma imagem é gerada pela IA? E mais: é possível conceder proteção por direitos autorais sobre o resultado gerado pela IA se não houver significativo envolvimento humano?

A resposta passa pela análise da intensidade da contribuição humana para as criações. No ambiente do copyright (e também no Direito de autor), a exigência de significativa contribuição humana para o resultado vem sendo adotada, nas decisões administrativas e judiciais, como uma solução para a autoria das criações da IA nos EUA, que têm sido um laboratório jurídico nesse campo, diante da grande quantidade de casos e do Relatório recentemente publicado.
Senta que lá vem história
A primeira decisão administrativa relevante vem de um pedido formulado por Stephen Thaler em 2018 ao U.S. Copyright Office, reivindicando a proteção sobre a imagem A recent entrance to paradise, a qual, segundo ele, foi “criada autonomamente por um algoritmo de computador executado em uma máquina”, sem nenhuma contribuição humana, razão pela qual a IA deveria ser nomeada como autora [2]. Veja-se a imagem:

Thaler tem se dedicado a fazer pedidos polêmicos. Lembra do pedido de patente em nome de DABUS, um sistema de IA que teria gerado duas invenções de forma autônoma? Foi Thaler quem requereu os pedidos, negados em Juízo até o momento no Brasil e no mundo [3].
Desta vez, no pedido feito em relação à imagem A recent entrance to paradise, Thaler requereu que a IA fosse designada como autora e que os direitos patrimoniais fossem transferidos para ele, por ser proprietário da máquina, aplicando-se a mesma compreensão de um trabalho feito por um empregado contratado para um empregador.
Em 2023, ao final do procedimento, o U.S. Copyright Office rejeitou o pedido, sob o fundamento de que obras intelectuais devem ter autores humanos para serem protegidas por copyright.
Thaler recorreu ao Judiciário. Na decisão judicial de primeira instância, a United States District Court for the District of Columbia manteve a decisão administrativa. O juiz reconheceu que “[o] copyright é projetado para se adaptar aos tempos. Subjacente a essa adaptabilidade, no entanto, tem havido jurisprudência consistente de que a criatividade humana é a condição sine qua non no cerne da registrabilidade” [4], mesmo que a criatividade humana se mostre por meio de novas ferramentas tecnológicas. Sem criatividade humana, não há obra protegida.
Para reforçar sua conclusão, o juiz invoca o caso conhecido como “selfie do macaco”, em que se discutia a autoria não humana, embora não relacionada à IA [5]. Em 2011, o fotógrafo David Slater tirava fotografias numa reserva da Indonésia e acabou por deixar sua câmera sem supervisão. Naruto, um simpático macaco, supostamente tirou várias fotos de si mesmo com a câmera de Slater, que as incluiu em seu livro de fotografias. Veja a selfie do macaco sorridente:

A Associação de Pessoas para Tratamento Ético de Animais (People for the Ethical Treatment of Animals – PETA) ajuizou ação, representando Naruto, dizendo que o direito autoral do animal sobre a fotografia havia sido violado por Slater. Nesse caso, julgado em 2018, decidiu-se que, sob a Lei de Copyright norte-americana, o macaco não era legitimado para processar alguém pela suposta violação de fotografias que ele havia tirado de si mesmo, pois “todos os animais, uma vez que não são humanos não têm legitimidade legal”, nos termos da decisão.
Outra derrota no U.S. Copyright Office pelos mesmos fundamentos ocorreu em 2022, quando Jason Allen requereu proteção por copyright em seu nome para a criação que chamou de Théâtre D’opéra Spatial, gerada com o auxílio da IA generativa Midjourney. A imagem ficou conhecida mundialmente após ganhar o primeiro lugar em uma competição de arte da Feira Estadual do Colorado.
Segundo Allen, a imagem final (abaixo, à direita) foi criada da seguinte forma: i) foi gerada inicialmente uma imagem usando Midjourney (abaixo, à esquerda), para a qual ele “inseriu inúmeras revisões e prompts de texto, pelo menos 624 vezes, depois de centenas terem sido geradas anteriormente”; ii) usou-se o Adobe Photoshop para “embelezar e ajustar vários detalhes/falhas/artefatos cosméticos etc.” na imagem gerada pelo Midjourney; e iii) foi aumentada a escala da imagem usando a ferramenta Gigapixel AI [6].Veja-se a comparação a seguir, extraída da citada decisão, mostrando no lado esquerdo, a imagem gerada pela IA seguindo os prompts de Allen e, na direita, os ajustes posteriores que Allen fez citados nos itens i e ii:

Na decisão denegatória, o U.S. Copyright Office usou dois fundamentos principais. Primeiro, concluiu que a imagem inicial gerada pela IA Midjourney resultou de um processo autônomo em que a IA interpretou os prompts de texto, ao passo que, diversamente, a criatividade humana deve estar presente na criação final, não apenas no processo de instruções para a máquina por meio dos prompts. Segundo, afirmou que selecionar, ajustar e refinar os resultados da IA não confere automaticamente proteção por copyright, a menos que a contribuição humana significativa seja evidente e separável das contribuições da IA.
A primeira vitória norte-americana em caso de imagem gerada com IA generativa foi para a chamada A Single Piece of American Cheese, em que a proteção foi concedida em favor de Kent Keirsey, CEO da Invoke, uma plataforma de criação de IA generativa, sob a justificativa de que o papel de Keirsey no processo de criação foi fundamental para o resultado final.
Keirsey argumentou que primeiro gerou uma imagem com a IA generativa e, em seguida, destacou regiões específicas da imagem e usou novos prompts para gerar novos elementos da IA nessas áreas. Ele adicionou mais de 35 dessas edições àquela imagem inicial gerada pela IA, resultando na imagem final [7]. Abaixo, no lado esquerdo, é a imagem inicial gerada pela IA após os prompts fornecidos por Keirsey e, no lado direito, a imagem editada mais de 35 vezes para se tornar a imagem final, adicionando novos conceitos, como um terceiro olho, o queijo derretido, uma parte superior do corpo e órgãos internos:

Com base nessa demonstração, em janeiro de 2025 foi concedida a proteção pelo U.S. Copyright Office, que se convenceu de que houve seleção, coordenação e organização por uma pessoa sobre o material gerado pela IA, de modo a formar uma colagem/composição, resultando em algo novo, que expressa criatividade suficiente humana.
Seguindo essa compreensão, foi expedido relatório em janeiro de 2025 pelo U.S. Copyright Office, intitulado Copyright and Artificial Intelligence. O relatório tratou da criação de saídas textuais, visuais e sonoras, com a assistência ou integralmente feitas pela IA generativa, determinando que “a proteção por copyright a essas saídas dependerá da natureza e extensão da contribuição de um humano, e se ela [a contribuição] se qualifica como autoria de elementos expressivos contidos na saída”.
Aguardemos novas imagens, músicas e textos gerados pela IA e mais discussões sobre autoria e criatividade – seriam ambas exclusivas de seres humanos?
-Apresentação traduzida do inglês, proferida em maio de 2025, em Seul, na Coréia do Sul, em evento conduzido pela Intellectual Property High Court of Korea.
[1] UNITED STATES COPYRIGHT OFFICE. Copyright and Artificial Intelligence. Jan 2025. Disponível: [https://www.copyright.gov/ai/Copyright-and-Artificial-Intelligence-Part-2-Copyrightability-Report.pdf].
[2]U.S. Copyright Office. A Recent Entrance to Paradise (Correspondence ID 1-3ZPC6C3; SR # 1-7100387071). Copyright Review Board, 14.02.2022. Disponível: [https://www.copyright.gov/rulings-filings/review-board/docs/a-recent-entrance-to-paradise.pdf].
[3] TAUK, Caroline Somesom. O artista robô: a criatividade não é exclusiva dos humanos. 21 dez 2022. [https://www.migalhas.com.br/depeso/379003/o-artista-robo-a-criatividade-nao-e-exclusiva-dos-humanos]
[4] UNITED STATES DISTRICT COURT FOR THE DISTRICT OF COLUMBIA. Civil Action No. 22-1564 (BAH). STEPHEN THALER, Plaintiff, v. SHIRA PERLMUTTER, Register of Copyrights and Director of the United States Copyright Office, et al. Defendant. Disponível: [https://www.copyright.gov/ai/docs/district-court-decision-affirming-refusal-of-registration.pdf]
[5] Caso: Naruto v. Slater, No. 16-15469 (9th Cir. 2018). JUSTIA US LAW. Home. Disponível em: [https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca9/16-15469/16-15469-2018-04-23.html].
[6] UNITED STATES COPYRIGHT OFFICE. Second Request for Reconsideration for Refusal to Register Théâtre D’opéra Spatial. 5 set 2023. Disponível: [https://www.copyright.gov/rulings-filings/review-board/docs/Theatre-Dopera-Spatial.pdf].
[7] INVOKE. How we received the first copyright for a single image created entirely with ai-generated materia. 10 fev 2025. Disponível: [https://44037860.fs1.hubspotusercontent-na1.net/hubfs/44037860/Invoke-First-Copyright-Image-AI-Generated-Material-Report.pdf].
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