Da (i)legitimidade das presidências de CPI para postular a reforma de decisão concessiva em HC impetrado no STF
26 de junho de 2025, 9h00
As atribuições e limites das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) encontram-se estabelecidas no § 3º do artigo 58 da Constituição, bem como em legislações específicas. Concomitante a isso, recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal têm assentado o entendimento de que os presidentes das CPIs carecem de legitimidade para requerer, na condição de autoridade coatora, a reforma de decisões proferidas em Habeas Corpus, especialmente daquelas que concedem a ordem a pessoas intimadas para comparecimento perante as referidas comissões parlamentares.
A matéria ganhou relevância com o aumento do número de CPIs voltadas ao tema dos jogos esportivos ou online. Apenas a título de rememoração, instaurou-se, primeiramente, a CPI das Apostas Esportivas e, mais recentemente, a CPI das Bets.
Inicialmente, é importante destacar que o STF possui entendimento pacífico no sentido de que a parte intimada a comparecer perante CPIs possui o direito constitucional de socorrer-se do Habeas Corpus — seja para assegurar o direito ao silêncio, seja para pleitear que a obrigatoriedade de comparecimento seja convertida em voluntariedade — como também para qualquer outra pretensão própria da natureza do mencionado remédio constitucional. Precedentes relevantes foram firmados, nesse sentido, pela 2ª Turma do STF.
É justamente em relação às decisões que concedem a ordem de habeas corpus que se verifica, em recentes julgados, o entendimento da 2ª Turma do STF no sentido de que os presidentes das CPIs, na condição de autoridade coatora, não detêm legitimidade para se insurgir contra a referida decisão concessiva.
No Habeas Corpus não há partes antagônicas
Exatamente! Conforme bem ressaltado pelo ilustre ministro relator do Supremo Tribunal Federal, ao julgar agravo interposto pela Presidência da CPI das apostas esportivas no HC 247.450/PE e CPI das Bets no HC 254.442/DF, o habeas corpus não é composto por partes antagônicas.

A criminalista Josimary Rocha
Todavia, antes de adentrar objetivamente na análise da ilegitimidade das presidências de CPIs — na condição de autoridade coatora — para recorrer do ato concessório de Habeas Corpus perante a Suprema Corte, é necessário fazer breve apontamento sobre o posicionamento já consolidado no STF quanto à possibilidade de impetração de Habeas Corpus contra atos praticados por CPIs, bem como a extensão de seus efeitos.
No que tange à possibilidade de concessão de habeas corpus contra ato convocatório para comparecimento perante CPIs, como já mencionado, há entendimento pacificado tanto na 1ª quanto na 2ª Turma do STF no sentido de se assegurar às pessoas intimadas o direito à não autoincriminação, concretizado por meio da garantia do direito ao silêncio durante a oitiva — em maior ou menor extensão, conforme o caso.
Assim, quando impetrado Habeas Corpus em face de convocação para comparecimento perante as CPIs, o paciente se encontra acobertado pelo privilégio contra a autoincriminação, podendo exercer o direito que assiste a qualquer pessoa convocada — seja na condição de testemunha ou de investigado — de utilizar-se do remédio heroico, perfeitamente admissível perante tais comissões, conforme bem pontuado pelo eminente ministro Celso de Mello. Vejamos:
“O privilégio contra a autoincriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. (HC 79.812-SP, DJ 16.2.2001, grifei).
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O controle jurisdicional sobre atos das CPIs é legítimo e não viola a separação de poderes, assegurando-se que as prerrogativas investigatórias sejam exercidas dentro dos limites constitucionais” (MS 23.452/RJ, publicado aos 16/9/1999, grifo da articulista).
Hodiernamente, na 2ª Turma daquela Corte Suprema, assentou-se um novo viés interpretativo: o direito à não autoincriminação assegura, também, a garantia de não obrigatoriedade de comparecimento ao ato de oitiva perante a CPI, convertendo-o em comparecimento espontâneo. Tal direito é viabilizado por meio da concessão de salvo-conduto, permitindo à pessoa intimada apresentar-se — ou não — ao ato, conforme o juízo discricionário de sua defesa técnica, como reconhecido nos julgamentos do HC nº 171.438/DF e do HC nº 229.115/DF.
Essa mesma garantia foi reiterada pela 2ª Turma do STF no julgamento do HC nº 247.450/PE, e, mais recentemente, no HC nº 254.442/DF. Contudo, tais precedentes apresentam um distinguishing relevante que merece atenção especial quanto ao tema em debate.
Isso porque, em ambos os casos, as presidências das respectivas CPIs — das Apostas e das Bets — insurgiram-se contra a concessão das ordens de Habeas Corpus por meio da interposição de agravo regimental, sustentando que qualquer das partes que se sinta prejudicada poderia interpor o recurso no prazo de cinco dias, conforme disposto no artigo 39 da Lei nº 8.038/1990 e no artigo 317 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF).
Alegaram, ainda, que a presidência da CPI seria parte diretamente atingida pela decisão e que o habeas corpus possuiria natureza semelhante à do mandado de segurança, na qual a autoridade coatora detém legitimidade recursal, nos termos do artigo 14, § 2º, da Lei nº 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança).
Todavia, tal interpretação foi rechaçada pelo colegiado da 2ª Turma quando do julgamento dos agravos interpostos nos dois precedentes supracitados — HC nº 247.450/PE e HC nº 254.442/DF.
Ressalte-se, entretanto, que, no julgamento do agravo no HC nº 247.450/PE, o eminente ministro Gilmar Mendes apresentou voto divergente, assentando que, em seu entendimento, a presidência da CPI disporia de legitimidade para recorrer, na condição de parte afetada pela decisão. Contudo, foi vencido na ocasião, prevalecendo o voto do ilustre ministro relator André Mendonça, que proferiu a seguinte fundamentação:
“Pelo desenho hermenêutico desse instituto processual, enquanto instrumento constitucional de proteção da liberdade individual, contra ilegalidade ou abuso de poder, inexiste legitimidade recursal da autoridade coatora em desfavor de decisão de concessão de ordem em habeas corpus, por ausência de assento legal e constitucional” (grifo da articulista).
Todavia, mais recentemente, por ocasião do julgamento do agravo interposto pela Presidência da CPI das Bets no HC nº 254.442/DF, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por decisão unânime, acompanhando o voto do ilustre ministro relator André Mendonça, firmou o entendimento de que a Presidência daquela CPI, na condição de autoridade coatora, carece de legitimidade para interpor recurso contra decisão concessiva de Habeas Corpus, decidindo nos seguintes termos:
“Preliminarmente, assento a ilegitimidade do Presidente da CPI, como autoridade coatora, para postular reforma de decisão proferida em habeas corpus mediante o qual foi concedida a ordem. No habeas corpus, não há partes antagônicas, cabendo somente à Procuradoria-Geral da República, como fiscal da lei, insurgir-se contra as decisões em benefício da paciente” (grifo da articulista).
Ademais, restou igualmente consignado, no julgamento supramencionado, que a presidência da referida CPI — na condição de autoridade coatora — não sofreu gravame nem qualquer prejuízo com a concessão da ordem de Habeas Corpus, tendo em vista que o referido remédio heroico possui, por finalidade exclusiva, a salvaguarda da liberdade de locomoção. Acrescentou-se, ainda, que o habeas corpus não se presta à defesa de interesses acusatórios, tampouco à preservação de atos praticados pela autoridade coatora.
Conclusão
Em nosso entender, o entendimento unânime firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do agravo regimental interposto no HC nº 254.442/DF, vem em bom tempo e revela-se oportuno e necessário, pois reafirma que as presidências de CPIs não são partes afetadas pelas decisões concessivas de Habeas Corpus — que se limitam a garantir o exercício do direito constitucional à não autoincriminação às pessoas intimadas a depor — sendo a única atuação legítima, nesses casos, aquela atribuída ao Ministério Público, na qualidade de custos legis.
Aceitar entendimento em sentido diverso significaria desvirtuar a natureza jurídica do Habeas Corpus, que constitui remédio heroico, poderoso e imprescindível à tutela da liberdade individual, especialmente diante de ilegalidades e abusos de poder.
Às presidências das CPIs, na condição de autoridade coatora, incumbe apenas prestar informações à corte e defender a legalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade de seus atos. Não lhes é dado, todavia, intitular-se parte afetada ou litigar contra a concessão da ordem, conforme firmemente assentado nos precedentes do HC nº 247.450/PE e do HC nº 254.442/DF, nos quais restou evidenciado, com clareza, que no Habeas Corpus não há partes antagônicas.
Referências
HC 79.812-SP
MS 23.452/RJ
HC 171.438/DF
HC 229.115/DF.
HC 247.450/PE
HC 254.442/DF
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