Opinião

Atuação estrutural do Ministério Público em face de fraudes envolvendo organizações sociais

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26 de junho de 2025, 18h18

A terceirização da gestão de serviços públicos essenciais, principalmente na saúde, por meio de organizações sociais (OS), tem crescido no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 1923/DF, considerou esse modelo constitucional, prometendo eficiência e economia. Contudo, a realidade revela que a falta de controle, transparência e fiscalização cria um ambiente propício para fraudes, desvio de recursos e violações trabalhistas. Diagnósticos como o da Ação nº 3/2018 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) indicam que as fragilidades nos modelos de contratação e gestão das OSs são sistêmicas, exigindo uma abordagem estrutural dos órgãos de controle.

Nesse contexto, a Resolução nº 305/2025 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) surge como um marco normativo para a atuação preventiva do Ministério Público (MP) na defesa da probidade administrativa, focando na implementação de Programas de Integridade na administração pública. O artigo analisa como a atuação estrutural do MP, especialmente do Ministério Público do Trabalho (MPT), pode transformar estruturas administrativas deficientes, estabelecendo mecanismos eficazes de fiscalização e controle dos contratos de gestão com OSs. A hipótese central é que as tutelas estruturais na Justiça do Trabalho, focadas na fiscalização contratual, são uma estratégia eficaz para superar problemas sistêmicos de governança e prevenir fraudes.

O modelo de OSs, instituído pela Lei Federal nº 9.637/1998, visava a transferir a execução de serviços não exclusivos do Estado para o setor público não-estatal. No SUS, a Lei nº 8.080/1990 prevê a participação complementar da iniciativa privada quando o sistema for insuficiente. Apesar das promessas, o Diagnóstico da Ação nº 3/2018 da Enccla aponta fragilidades estruturais, como:

  • Ausência de planejamento adequado: A opção por OSs frequentemente não é precedida de estudos técnicos que comprovem sua vantagem para a administração pública.
  • Deficiências na qualificação e seleção: Os processos de qualificação e seleção de OSs são, muitas vezes, direcionados e sem critérios objetivos.
  • Instrumentos contratuais frágeis: Os contratos de gestão apresentam metas e indicadores imprecisos, dificultando a avaliação de resultados.
  • Fiscalização insuficiente: As comissões de fiscalização são subdimensionadas, mal equipadas ou carecem de conhecimento técnico, resultando em controle meramente formal.
  • Transparência inadequada: A divulgação de informações sobre a execução dos contratos é insuficiente, dificultando o controle social e a fiscalização.

No âmbito trabalhista, as fraudes comuns em contratos de gestão com OSs incluem:

  1. Empregados “fantasmas” e nepotismo: Contratação de pessoas que não prestam serviços ou são contratadas por relações pessoais.
  2. Direcionamento de fornecedores: Subcontratações para empresas ligadas a dirigentes da OS ou agentes públicos.
  3. “Pejotização”: Exigência de que profissionais constituam pessoa jurídica para serviços que configuram relação de emprego.
  4. Descumprimento de normas de saúde e segurança: Inobservância da NR-32 e outras normas de proteção ao trabalhador.
  5. Jornadas exaustivas e cumulação ilegal de vínculos: Submissão de profissionais a jornadas além dos limites legais e acúmulo de vínculos incompatíveis.

Essas ilicitudes violam direitos trabalhistas, comprometem a qualidade dos serviços e geram riscos fiscais para os entes públicos, que frequentemente são responsabilizados subsidiariamente.

Atuação preventiva do MP

A Resolução nº 305/2025 do CNMP fortalece a atuação preventiva do MP na defesa da probidade administrativa, dado que o Brasil ainda possui uma posição desfavorável no índice de percepção da corrupção e grande parte dos municípios não possui programas de integridade. A resolução estabelece diretrizes para membros e unidades do MP, visando à adoção de medidas preventivas, com ênfase na implantação de programas de integridade na administração pública. O artigo 3º da Resolução nº 305/2025 define parâmetros e princípios para o fomento de programas de integridade, sendo relevantes para a fiscalização de contratos com OSs, especialmente para o MPT na prevenção de violações trabalhistas.

Spacca

As tutelas estruturais, inspiradas nas structural injunctions americanas, são intervenções judiciais para reorganizar instituições e eliminar ilegalidades sistêmicas e contínuas. Diferente das tutelas tradicionais, que reparam danos pontuais, as tutelas estruturais buscam transformar a realidade institucional para prevenir futuras violações. No MPT, manifestam-se por meio de termos de ajustamento de conduta (TACs) e ações civis públicas (ACPs) que buscam não apenas cessar violações, mas promover mudanças sistêmicas no planejamento, contratação, execução e fiscalização.

A atuação do MPT na fase pré-contratual busca garantir que a decisão pela adoção do modelo de OS seja precedida de estudos técnicos adequados, consulta a conselhos de políticas públicas e audiências públicas. Na fase de qualificação e seleção, fiscaliza os processos, exigindo transparência, impessoalidade e critérios objetivos. Na execução contratual, implementa mecanismos eficazes de fiscalização, com comissões técnicas capacitadas, sistemas informatizados de acompanhamento e verificação periódica do cumprimento de obrigações trabalhistas. Também previne conflitos de interesse, com vedações expressas ao nepotismo e à “porta giratória” entre o setor público e as OSs, e exige transparência ativa na divulgação de informações sobre execução contratual, contratações e resultados.

A abordagem estrutural do MPT oferece vantagens significativas:

  1. Eficácia preventiva: Transforma estruturas deficientes, prevenindo violações futuras.
  2. Visão sistêmica: Considera fraudes como sintomas de falhas estruturais na governança.
  3. Economicidade: Prevenir fraudes é mais econômico que remediar suas consequências.
  4. Sustentabilidade: Promove mudanças duradouras nos padrões de conduta institucional.
  5. Capilaridade: Beneficia todos que seriam afetados por práticas semelhantes, não apenas os casos investigados.

A atuação estrutural do MPT no combate a fraudes em OSs envolve refletir sobre irregularidades como contratação de “funcionários fantasmas”, pejotização, subcontratações irregulares e pagamentos sem cobertura contratual. O MPT pode propor um TAC abrangente, focado na transformação das estruturas administrativas que permitiram as irregularidades, e não apenas na reparação de danos específicos. Acordos com entes públicos podem contemplar medidas estruturantes em diversas áreas:

  1. Planejamento administrativo: Exigência de estudos técnicos prévios que justifiquem a opção pelo modelo de OS.
  2. Qualificação e seleção: Critérios objetivos para qualificação e processo seletivo transparente e impessoal.
  3. Execução contratual: Criação de comissão de avaliação e fiscalização, sistema informatizado de acompanhamento e condicionamento da liberação de parcelas ao cumprimento de obrigações trabalhistas.
  4. Prevenção de conflitos de interesse: Elaboração de código de ética, exigência de programas de integridade das OSs e declarações de ausência de conflitos de interesse.
  5. Transparência ativa: Disponibilização detalhada de informações sobre execução contratual, contratações e fornecedores em portais de transparência.

Integridade na administração pública

É possível o ajuizamento de tutelas coletivas apenas em caso de resistência intransponível à assinatura de TACs, demonstrando prejuízo à saúde do sistema trabalhista.

A abordagem estrutural do MPT e a metodologia da Resolução nº 305/2025 do CNMP partem de um diagnóstico detalhado da situação atual. O artigo 4º da resolução recomenda a instauração de procedimento administrativo para verificar o funcionamento do Programa de Integridade na Administração Pública, utilizando ferramentas como o sistema “e-Prevenção” do TCU. Em inquéritos civis trabalhistas, especialmente em transições de OSs com passivo trabalhista, o MPT pode realizar um diagnóstico abrangente das fragilidades contratuais, identificando padrões de irregularidades e suas causas estruturais, permitindo a proposição de medidas adequadas à realidade local.

O artigo 7º da Resolução nº 305/2025 prevê que, após o diagnóstico e definição da atuação, o membro do MP deve iniciar a negociação com agentes públicos para implementar ou adequar os Programas de Integridade. O artigo 9º recomenda que o MP promova uma atuação coordenada e integrada entre seus ramos e unidades para implementar ações preventivas em prol da integridade na administração pública. Em inquéritos civis trabalhistas, o MPT pode adotar essa abordagem integrada, compartilhando informações com o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Contas do Estado, reconhecendo que as fraudes extrapolam a esfera trabalhista e demandam atuação coordenada.

Em conclusão, a atuação estrutural do Ministério Público, especialmente do Ministério Público do Trabalho, no enfrentamento às fraudes envolvendo organizações sociais, é uma estratégia promissora para transformar estruturas administrativas deficientes e prevenir violações sistêmicas de direitos. A particularidade da atuação trabalhista demonstra que as tutelas estruturais, focadas na fiscalização contratual e na promoção da integridade, produzem resultados mais efetivos e duradouros do que abordagens tradicionais. A Resolução nº 305/2025 do CNMP reforça e legitima essa abordagem, estabelecendo diretrizes claras para a atuação preventiva do Ministério Público na defesa da probidade administrativa e no incentivo à implantação de Programas de Integridade.

A convergência entre a abordagem estrutural do MPT e as diretrizes da Resolução nº 305/2025 aponta para um MP mais resolutivo, preventivo e transformador, capaz de contribuir efetivamente para a promoção da integridade pública e garantia dos direitos sociais. Apesar dos desafios, a atuação estrutural do Ministério Público, alinhada à Resolução nº 305/2025 do CNMP, é um caminho promissor para superar as fragilidades sistêmicas nos contratos com organizações sociais, construindo uma administração pública mais eficiente, transparente e íntegra.

Autores

  • é juíza federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, doutora em Função Social do Direito, conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público- CNMP para o biênio 2024-2026, professora da Graduação e dos Programas de Mestrado e Doutorado da Fadisp e pesquisadora da Funadesp.

  • é procuradora do Trabalho, especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Regularidade do Trabalho na Administração Pública do Ministério Público do Trabalho).

  • é procurador do Trabalho, doutor em Direito-Unifor, MBA em Direito Empresarial-FGV/Rio, pós-graduado em Controle na Administração Pública e em Direito Sanitário – ESMPU e professor universitário.

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