Acesso à Justiça sob vigilância: recomendação e o risco da restrição velada ao direito de ação
26 de junho de 2025, 16h16
O conceito de litigância abusiva não é novo, mas sua expansão recente ganhou contornos preocupantes. O CNJ, por meio da Recomendação nº 159, associa esse fenômeno à prática reiterada de ajuizamento de ações com objetivos manipulativos, como a fabricação artificial de estatísticas e a instrumentalização do Judiciário para fins econômicos questionáveis. Embora a litigância abusiva exista e deva ser combatida, o recorte proposto pelo Conselho Nacional de Justiça incorre em risco: adota-se uma visão unilateral, que foca apenas nos efeitos da judicialização e não em suas causas estruturais.

Há uma tendência institucional de imputar ao jurisdicionado a responsabilidade pelo congestionamento da Justiça, ignorando-se que grande parte da litigância de massa nasce da conduta reiterada de desrespeito contratual por grandes fornecedores de produtos e serviços. O problema, portanto, não é a busca pelo Judiciário, mas sim a reprodução sistêmica de lesões que o próprio mercado se recusa a prevenir.
A Recomendação nº 159/2024 sugere que os juízos avaliem, nos casos de possível litigância abusiva, se houve tentativa de resolução administrativa antes da propositura da demanda. Em tese, trata-se de uma estratégia de racionalização. No entanto, sua aplicação prática, especialmente quando indiscriminada, configura um mecanismo velado de restrição ao direito fundamental de acesso à justiça.
Direito de ação
A Constituição, em seu artigo 5º, XXXV, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se da consagração do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que não pode ser relativizado por atos normativos infralegais. O Supremo Tribunal Federal, na ADI 2.139/DF, firmou jurisprudência no sentido de que nem mesmo a exigência de audiência obrigatória de conciliação pode ser imposta por norma infraconstitucional, sob pena de ofensa direta ao direito de ação.
Somente será legítima a exigência de comprovação de tentativa extrajudicial de resolução do litígio quando houver expressa previsão legal e quando essa exigência se revelar proporcional e adequada, sob pena de violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Ao sugerir que a ausência de tentativa extrajudicial possa justificar a inadmissibilidade da demanda, o CNJ ultrapassa sua competência regulatória e cria uma barreira processual que a lei não previu.
Defesa do consumidor
A plataforma consumidor.gov.br é uma das ferramentas mais celebradas da política pública de defesa do consumidor. Com mais de 1,3 milhão de reclamações finalizadas em 2023 e um índice de resolutividade de 78%, ela representa um avanço na oferta de canais extrajudiciais de resolução de conflitos (Senacon, 2023, p. 2).
Todavia, transformar essa plataforma em condição obrigatória para acesso ao Judiciário deturpa sua natureza. A autocomposição pressupõe voluntariedade. O que a Recomendação nº 159 promove, ainda que indiretamente, é a conversão da autocomposição em imposição. Isso é particularmente grave quando se considera que muitos consumidores nem sequer dominam os meios digitais ou compreendem seus direitos em profundidade. A suposta eficiência da via extrajudicial pode, na prática, se tornar um obstáculo adicional para os já vulneráveis.
Dados do Boletim do consumidor.gov.br 2023 indicam que apenas 7,8% dos usuários da plataforma pertencem à faixa etária igual ou superior a 60 anos. Esse número torna-se ainda mais expressivo diante da taxa de analfabetismo da população com 65 anos ou mais, que alcança 20,3% (IBGE, 2023). Tal cenário aponta para barreiras estruturais, como exclusão tecnológica e déficit educacional, que comprometem a acessibilidade de plataformas digitais justamente para aqueles que mais necessitam de proteção.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua, 2023) corrobora essa exclusão ao revelar que 7,5% dos lares brasileiros não utilizam internet, índice que sobe para 19% em áreas rurais, números que desconsideram ainda fatores como qualidade da conexão e disponibilidade de dispositivos adequados.
Alta de processos
Segundo dados do relatório Justiça em Números 2024, o volume de processos ligados ao direito do consumidor permanece entre os mais elevados do país, com forte índice de repetição temática (CNJ, 2024, p. 89). Ainda assim, é preciso distinguir entre litigância abusiva, movida por interesse meramente estatístico ou financeiro, e litigância legítima, proveniente da necessidade de reparação de violações reiteradas.
O que se vê com medidas como a Recomendação nº 159 é o surgimento de um modelo de “vigilância judicial”, que observa com suspeita o exercício do direito de ação por determinados grupos sociais, justamente os que mais carecem da proteção jurisdicional. Ao invés de atacar a fonte da litigiosidade, transfere-se o ônus ao cidadão, o que reflete uma tendência crescente de regulação do acesso à Justiça sob a ótica da eficiência institucional.
Todavia, ao sugerir filtros administrativos sem respaldo legal, incorre em risco de conversão da justiça em privilégio, não em direito. A seletividade no enfrentamento da litigância abusiva, que mira o pequeno litigante e poupa as estruturas que geram a litigiosidade, precisa ser denunciada. O Judiciário deve zelar pela proteção dos vulneráveis, não por sua vigilância. A justiça, afinal, só se realiza quando é acessível, imparcial e respeita a legalidade.
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Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 159, de 23 de outubro de 2024. Dispõe sobre medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância predatória e abusiva. Disponível aqui.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2139 DF. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Julgamento em 01 ago. 2018. Disponível aqui.
CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números: ano-base 2023. Brasília: CNJ, 2024. Disponível aqui.
SENACON – SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR. Boletim Consumidor.gov.br 2023. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023. Disponível aqui.
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