Opinião

Meio ambiente como vítima silenciosa de guerras e conflitos armados

Autores

  • é advogado mestrando em criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

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  • é professor emérito de sociologia da Universidade de Essex Inglaterra especialista em criminologia verde e criminologia crítica.

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25 de junho de 2025, 6h38

Por ocasião de seu 75º aniversário, as Nações Unidas (UN, 2020) emitiram um pronunciamento no qual destacaram que o mundo atravessava uma nova era de guerras e conflitos armados, caracterizada por disputas menos letais e mais recorrentes entre grupos domésticos. De acordo com a ONU, embora o número de mortes decorrentes de guerras esteja em declínio desde 1946, observou-se o crescimento de outras formas de violência, notadamente aquelas perpetradas por atores não estatais, como milícias e organizações terroristas. O informe também apontou a intensificação da violência associada ao crime organizado, à violência interpessoal, incluindo aquela dirigida contra mulheres e crianças, ao extremismo e aos crimes cibernéticos. No entanto, apesar da gravidade das situações mencionadas, chama a atenção a ausência de qualquer referência às violações e danos cometidos contra o meio ambiente.

Apesar de não ter havido qualquer menção à degradação ambiental associada aos contextos bélicos, desde 2001 já se reconhecia a necessidade de se conferir especial atenção a esta situação. O dia 6 de novembro de 2001, inclusive, foi declarado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas como o “Dia Internacional para a Prevenção da Exploração do Meio Ambiente em Guerras e Conflitos Armados”.

De acordo com o então secretário-geral Ban Ki-moon (UN, 2014), “o meio ambiente tem sido, há muito tempo, uma vítima silenciosa de guerras e conflitos armados. Desde a contaminação da terra e destruição de florestas à pilhagem de recursos naturais e colapso do gerenciamento de sistemas, as consequências ambientais da guerra são frequentemente amplas e devastadoras“.

Em 2021, o atual secretário-geral da ONU, António Guterres, reafirmou reconhecer o meio ambiente como uma vítima de guerra, destacando que, para obter vitórias militares de curto prazo, plantações são destruídas, a água é poluída, o solo é envenenado, tudo isso com implicações que poderão perdurar por décadas (UN, 2017).

No âmbito do Tribunal Penal Internacional, o meio ambiente aparece apenas de maneira no artigo 8º, parágrafo 2º, alínea “b”, inciso IV, do Estatuto de Roma, que trata dos crimes de guerra. Não por acaso, muitos estudiosos tem defendido, cada vez mais, a criminalização do ecocídio como parte também de uma resposta jurídica necessária às agressões ambientais perpetradas em contextos bélicos (Higgins et al., 2013; Whyte, 2020; Dunlap & Brock, 2020).

Nesse cenário, já em 2015, os professores Avi Brisman, Nigel South e Rob White coeditaram o livro Environmental Crime and Social Conflict Contemporary and Emerging Issues, no qual apontaram a necessidade de avanços em pesquisas científicas sobre o impacto de guerras e conflitos no meio ambiente.

A obra evidencia uma lacuna importante nas pesquisas criminológicas, ao apontar que as abordagens predominantes focavam prioritariamente nos crimes de guerra, no entendimento da guerra enquanto crime e no soldado enquanto vítima. Os autores destacam, assim, a importância de se direcionar a atenção para a conexão indissociável entre guerras e conflitos armados e seus efeitos deletérios sobre a natureza e demais espécies.

No Brasil, estudos criminológicos ainda são fortemente vinculados aos cursos de direito (Goyes & Sozzo, 2023), sendo criminologia verde uma área em ascensão no país (Budó et al, 2022). Nesse contexto, este artigo visa a contribuir para o entendimento debate crítico a respeito dos efeitos e danos ocasionados por guerras e conflitos no meio ambiente e nas demais espécies, com o propósito de oferecer subsídios teórico para a compreensão e a responsabilização por tais danos.

Formas em que o meio ambiente se torna uma vítima de guerra e de conflitos armados

Brisman, South e White (2015) apresentam uma tipologia estruturada em quatro categorias para descrever as diferentes formas pelas quais o meio ambiente pode ser considerado vítima de guerras e conflitos armados: conflitos motivados pela posse de recursos naturais, conflitos decorrentes da escassez de recursos, conflitos que provocam a destruição ambiental e conflitos decorrentes da exploração de recursos naturais.

Conflitos motivados pela posse de recursos naturais

Nos casos de conflitos relacionados à posse de recursos naturais, a competição e as disputas por controle, acesso e uso de determinados recursos naturais essenciais para a subsistência ou para a economia de determinado grupo ou nação tornam-se catalisadores diretos de tensões e enfrentamentos armados. Embora as disputas territoriais não sejam novidade, o desejo de adquirir ou controlar as terras alheias pode fundamentar-se em diferentes ambições: ampliar o poder, aumentar ou garantir a segurança, punir adversários ou promover a repatriação (Brisman & South, 2018).

Spacca

Exemplos emblemáticos dessa dinâmica são as disputas territoriais no Mar do Sul da China. A militarização de ilhas e atóis e o controle de hidrovias estratégicas no sudeste asiático têm ampliado as tensões regionais, enquanto o governo chinês intensifica a ocupação de recifes e atóis para garantir a primazia na exploração dos recursos naturais ali existentes. Além da construção de ilhas artificiais, a pesca predatória e a poluição têm ocasionado danos ambientais irreversíveis. McManus (Hsiao, 2016), afirma que “os danos são permanentes. Foram eliminados recifes que cresceram durante milhares de anos. Estes recifes, uns dos mais maravilhosos ecossistemas da Terra, desapareceram para sempre”.

De maneira semelhante, a disputa por recursos naturais na República Democrática do Congo tem funcionado como um dos principais motores para a eclosão e perpetuação de conflitos armados no país. As densas florestas, as terras altas acidentadas e as margens dos lagos no leste do país abrigam uma miríade de minas industriais e artesanais, guardadas por milícias e exploradas por centenas de milhares de homens, mulheres e crianças que vivem em condições análogas à escravidão. O país concentra aproximadamente 70% dos depósitos conhecidos de cobalto no mundo, componente vital para as baterias de íon‑lítio utilizadas em veículos elétricos e em outras tecnologias de energia limpa. Mais de 250 grupos armados locais e 14 estrangeiros lutam por territórios, minas ou outros recursos nas cinco províncias mais orientais da República Democrática do Congo (USIP, 2024). Essa disputa pela primazia da mineração tem provocado altos níveis de desmatamento, perdas significativas de biodiversidade e contaminação de solos e recursos hídricos. Estudos registram níveis elevados de cobalto nas águas de lagos próximos às áreas de exploração mineral, colocando em risco não só a saúde humana, mas também a integridade de toda a cadeia alimentar associada a esses corpos d’água (Williams et al. 2021).

Conflitos decorrentes da escassez de recursos

Quando recursos essenciais se tornam escassos, a competição por aquilo que resta pode intensificar tensões e resultar em enfrentamentos diretos. Este tipo de conflito diz respeito a questões de escassez e às consequências da ampla degradação ambiental, associadas a disputas e concessões quanto ao uso de recursos (Brisman & South, 2018).

De acordo com o programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (UN, n.d.), pelo menos 40% de todos os conflitos internos registrados nos últimos 60 anos podem ser vinculados à exploração de recurso naturais ou à simples disputa por acesso a elementos essenciais, como madeira, diamantes, ouro, petróleo e recursos vitais para a subsistência, a exemplo de terras férteis e água.

As questões relacionadas à migração também fazem parte desse quadro de impacto ambiental. Fatores econômicos e políticos são frequentemente citados como as principais causas de grandes fluxos migratórios, porém mudanças e desafios ambientais têm também ganhado como elementos motivadores crescentes. Nesse contexto — em que intensifica a escassez de recursos vitais, especialmente a água —, já se têm trabalhado, ainda que com algumas discussões conceptuais, com a ideia de refugiados climáticos (Apap & Harju, 2023). À medida que as condições de vida tornam‑se mais precárias e insustentáveis, aumenta o número de comunidades obrigadas a migrar em busca de locais mais favoráveis à subsistência. Essa migração não conduz, por si só, à eclosão de conflitos, mas, quando associada a tensões preexistentes, pode intensificá‑los, provocando guerras e enfrentamentos tanto internos quanto entre Estados.

Conflitos que destroem o meio ambiente

Este tipo de conflito refere-se a situações em que:

  • a destruição e degradação ambiental são consequência direta de guerras e de outros conflitos armados;
  • o dano ambiental é utilizado deliberadamente como tática ou técnica de guerra (inclusive quando forças naturais são manipuladas como arma); e
  • as próprias atividades e exercícios militares realizados em preparação para confrontos armados prejudicam o meio ambiente (Brisman & South, 2018).

A esse respeito, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia, e desde então diversos relatórios têm registrado os graves danos ambientais ocasionados. A guerra tem destruído habitats, afetado a vida selvagem, gerado poluição e alterado ecossistemas, com consequências que poderão perdurar por décadas (Anthes, 2022). Em 6 de junho de 2023, uma série de explosões provocou o rompimento da barragem de Kakhovka. Ruslan Strilets, ministro do Meio Ambiente da Ucrânia, classificou o episódio como “o maior crime ambiental cometido desde o primeiro dia da invasão” e descreveu a ação como “um ato bárbaro, um verdadeiro ecocídio e uma futura catástrofe humanitária” (Ukraine Office, 2024).

Em termos jurídicos, o Estatuto de Roma, como mencionado anteriormente, tipifica como crime de guerra a prática de “lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos à população civil, danos a bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente, que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta prevista” (artigo 8º, §2º, alínea ‘b’, inciso IV). Nesse contexto, não se trata de uma proteção ao ambiente per se, mas da condenação do uso desproporcional e excessivo da força para alcançar objetivos militares, causando danos extensos, duradouros e graves ao ambiente natural. Vale destacar que a Ucrânia é um dos poucos países que explicitamente tipificam o ecocídio como crime [1].

Por fim, vale ressaltar que a simples preparação para conflitos armados também pode gerar significativas perdas ambientais. Essas são decorrentes das operações da própria máquina de guerra (Brisman & South, 2018). Exemplo disso são as práticas associadas à fabricação de armamentos nucleares — abrangendo transporte e armazenamento de resíduos radioativos e perigosos — que resultam em uma extensa contaminação ambiental (como no caso do Atol de Bikini), assim como o impacto de equipamentos e tecnologias militares cuja desativação e descarte tornam-se particularmente complexos e prejudiciais.

Conflitos decorrentes da exploração de recursos

O tipo de conflito decorrente da extração de recursos naturais refere-se a disputas entre grupos a respeito dos métodos e das técnicas de extração, assim como à própria necessidade de realizar determinados tipos de exploração (Brisman & South, 2018).

O processo extrativo pode gerar danos ao meio ambiente e intensificar tensões entre quem se beneficia da exploração e quem sofre suas consequências socioambientais. Hickel et al. (2021) apresenta dados empíricos que revelam um padrão de expropriação de recursos naturais por países do hemisfério Norte em relação aos do hemisfério Sul.

Segundo o estudo, para cada 1 dólar investido pelos países do Norte em auxílio aos do Sul, obtém‑se um retorno de aproximadamente 30 dólares por meio da exploração de recursos naturais. Essa relação assimétrica é descrita como uma “troca desigual” (unequal exchange). Não são raros os casos em que países considerados desenvolvidos adotam, em seus próprios territórios, técnicas ambientalmente mais favoráveis, enquanto nas suas cadeias de produção situadas em países do hemisfério Sul seguem padrões menos onerosos e significativamente mais poluentes — a exemplo de empresas norueguesas no Brasil (Palazzo & Hendlin, 2025).

Alguns padrões coloniais de expropriação de recursos continuam presentes, e antigos colonizadores seguem impondo pressões para garantir acesso prioritário e ampliado a territórios e riquezas naturais. As populações indígenas, historicamente afetadas, continuam a ser vítimas desse processo, sofrendo abusos, execuções, desaparecimentos, torturas, remoções forçadas de seus territórios e assédio sistemático.

Conclusão

A análise das diferentes categorias propostas por Brisman, South e White evidencia que o meio ambiente não é uma simples vítima colateral de guerras e conflitos armados, mas sim uma vítima direta, silenciosa e sistematicamente afetada. Os exemplos abordados revelam que tanto as estratégias e táticas militares, como as próprias operações extrativas e econômicas, tornam o meio ambiente uma dimensão central nas dinâmicas de violência e dominação. Os danos não são isolados ou temporários: comprometem ecossistemas inteiros e têm efeitos duradouros para comunidades humanas e demais espécies.

Nesse contexto, torna‑se urgente reconhecer e tratar o ambiente não apenas como cenário ou dano acessório, mas como um objeto direto de proteção, ampliando e fortalecendo sua importância nas normas jurídicas e nas agendas de pesquisa e políticas públicas. Apesar do avanço do entendimento jurídico e do crescente debate a respeito do ecocídio, a proteção ambiental em contextos bélicos ainda carece de mecanismos eficazes para responsabilização e reparação dos danos cometidos.

Dessa forma, torna‑se urgente não apenas reconhecer o ambiente como uma vítima legítima de conflitos, mas também fortalecê‑lo enquanto sujeito de direitos nas agendas científicas, jurídicas e políticas globais. Avançar nesse debate não é apenas uma questão de justiça ambiental, mas uma condição necessária para garantir a preservação e a resiliência das comunidades e dos territórios que sustentam a vida no planeta.

 


[1] Art. 441. A destruição em massa da flora e da fauna, o envenenamento do ar ou dos recursos hídricos, bem como quaisquer outras ações que possam causar um desastre ambiental serão puníveis com pena de prisão de 8 a 15 anos. (tradução livre para o português). Aqui

Autores

  • é assessor jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mestre em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent, membro da CSSN/Brown Univeristy (EUA) e da European Society of Criminology.

  • é professor emérito de sociologia da Universidade de Essex, Inglaterra, especialista em criminologia verde e criminologia crítica.

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