O artigo 61 da Lei 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 6)
25 de junho de 2025, 8h00
Na coluna de hoje retomaremos — e, finalmente, encerraremos — a série de artigos analíticos a respeito das controvérsias envolvendo a aplicação do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, que estabelece a cobrança do IRRF de 35% sobre os pagamentos feitos a beneficiários não identificados e em decorrência de operações não comprovadas ou sem causa.

A ideia inicial partiu de um texto que ficou excessivamente longo e acabou sendo dividido em duas partes. As controvérsias foram se multiplicando, e rapidamente o artigo, então dividido, virou uma série de seis. Aproveito para agradecer a todos os colegas que compartilharam questões interessantíssimas a respeito desse tema — ainda que não tenha conseguido abordá-las todas aqui. Os demais artigos dessa série estão disponíveis aqui (parte 1, parte 2, 3, 4, e 5).
IRRF no caso de entidades imunes
Como esclarecido anteriormente, o IRRF estabelecido pelo artigo 61 da Lei nº 8.981/95 se baseia na sistemática do artigo 128 do CTN, tendo natureza de substituição tributária, cobrando-se de forma definitiva o tributo sobre os rendimentos na fonte pagadora.
Essa “tributação exclusiva na fonte” se caracteriza por colocar a fonte pagadora na própria relação jurídico-tributária, sob condição da possibilidade de se ressarcir dos valores pagos. Isso se opõe às situações em que a retenção se dá a título de antecipação dos valores que serão posteriormente oferecidos à tributação pelo beneficiário, hipótese em que a fonte pagadora assume o papel de “agente de retenção”, tendo uma obrigação acessória relacionada à retenção e repasse dos valores.
O acórdão nº 9101-001.398 analisou um caso em que se cobrava o IRRF do artigo 61 sobre pagamentos realizados por uma entidade imune a beneficiários não identificados ou sem causa. A autuação foi lavrada no contexto da suspensão da imunidade, posteriormente revertida, e o acórdão nº 107-08.782 reverteu todas as cobranças tributárias lançadas. A Procuradoria recorreu, alegando que o artigo 9º, §1º, do CTN, determinaria a cobrança do IRRF mesmo sobre entidades imunes — vejamos o seu teor, verbis:
Art. 9º É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
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1º O disposto no inciso IV não exclui a atribuição, por lei, às entidades nêle referidas, da condição de responsáveis pelos tributos que lhes caiba reter na fonte, e não as dispensa da prática de atos, previstos em lei, assecuratórios do cumprimento de obrigações tributárias por terceiros.
O referido dispositivo costuma ser analisado pelo ângulo da obrigatoriedade do cumprimento das obrigações acessórias, mas aqui é discutida a parcela que se refere à condição da fonte pagadora de “responsável pelos tributos que lhe caiba reter na fonte”. O cerne da controvérsia consiste em determinar se o dispositivo se refere apenas às hipóteses em que há a responsabilidade pela retenção, ou se alcança também os casos de substituição tributária, em que a fonte pagadora participa da relação jurídica tributária, ainda que não realize o fato gerador.
Diversas posições na jurisprudência do Carf
A 1ª CSRF, na oportunidade, entendeu que a cobrança do IRRF por pagamentos sem causa estaria fora da hipótese tratada pelo artigo 9º, §1º, do CTN, por se tratar de uma obrigação própria da entidade imune, e não um dever de retenção dos tributos em nome de outro sujeito passivo. Portanto, as entidades imunes não estariam sujeitas ao pagamento do IRRF do artigo 61, que estaria fora do alcance do §1º do artigo 9º.
Em sentido contrário, o acórdão nº 103-23.500 afastou diretamente a prejudicialidade entre o processo de suspensão da imunidade e aquele em que se discute o IRRF, por entender que esse tributo não onera a própria entidade imune, mas sim a renda de terceiros beneficiários dos pagamentos, cabendo àquela apenas “a responsabilidade pela retenção e recolhimento do tributo, por disposição legal, mesmo sem figurar na condição de contribuinte”.
O acórdão nº 1402-007.095 também afastou a prejudicialidade em relação à discussão da suspensão da imunidade, por entender que a cobrança do IRRF do artigo 61 corresponderia “[à] análise das obrigações instrumentais, conhecidas como ‘obrigações acessórias’, cuja regularidade independem da obrigação principal de pagar tributo”
Na mesma linha, o acórdão nº 2201-003.215 também sustentou que o IRRF — seja ele antecipação ou exclusivo — seria sempre uma técnica arrecadatória pautada no dever de retenção da fonte, sujeita ao art. 9º, §1º, do CTN. Mas adicionou que o IRRF estaria fora do alcance da imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, por onerara renda do beneficiário e não da entidade, que seria apenas “sujeito passivo por responsabilidade”. Esse mesmo argumento foi adotado, mais recentemente, no acórdão nº 1301-004.615.
No acórdão 1301-003.986, argumentou a relatora que, na hipótese do IRRF do artigo 61, a “Recorrente não atua como contribuinte, mas sim como responsável pela antecipação dos tributos devidos pela pessoa jurídica beneficiária do pagamento”, concluindo pela possibilidade da sua cobrança, mesmo sem a suspensão da imunidade.
Na esmagadora maioria dos demais casos que envolvem suspensão de imunidade e cobrança do IRRF sobre pagamentos sem causa ou a beneficiários não identificados, a questão apresentada acima não resta evidenciada, em razão do afastamento da imunidade, que acaba validando a exigência do imposto, sem qualquer discussão a respeito do artigo 9º, §1º, do CTN.
Análise das posições existentes no Carf
A despeito de haver uma divergência frontal entre a posição esposada pela 1ª CSRF e pelas decisões proferidas por diversas turmas de Câmaras Baixas do Carf, causa espécie a absoluta ausência de qualquer diálogo entre as posições apresentadas, na formação da jurisprudência do tribunal sobre o tema. O acórdão nº 9101-001.398, datado de 2012, é anterior a todos os demais precedentes mencionados e, ainda assim, não é discutido.
Por outro lado, mesmo as diversas decisões, que mantêm a aplicação do IRRF do artigo 61 na hipótese de entidades imunes, não possuem uniformidade quanto à sua ratione decidendi — pelo contrário, ocasionalmente, apresentam premissas opostas, para concluir de forma uníssona ao final.
Há um argumento em sentido contrário à cobrança do IRRF em análise das entidades imunes, qual seja, de que se trataria de uma sujeição passiva direta dessas pessoas jurídicas, e não de mera responsabilidade pela retenção, afastando a aplicação do artigo 9º, §1º, do CTN.
Por outro lado, a favor da cobrança, há pelo menos três argumentos distintos:
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Que se trata, sim, de mera hipótese de retenção e não de sujeição passiva autônoma da entidade imune;
-
Que a renda atingida por esse tributo não pertenceria a entidade imune, mas ao beneficiário (que é, de certo modo, um corolário do primeiro argumento da retenção), e, por isso, estaria fora do alcance da imunidade;
- Que tanto o IRRF antecipação quanto o exclusivo seriam formas de responsabilidade por retenção, sendo apenas “técnicas arrecadatórias” distintas;
Em parte, as duas linhas argumentativas possuem problemas dogmáticos.
Ora, o simples fato de o artigo 9º, §1º, do CTN, preservar o dever das entidades imunes de realizar as retenções na fonte sobre os tributos que lhes caibam, na condição de agentes de retenção, não permite inferir imediatamente que todas as demais cobranças tributárias (incluindo aí o IRRF-exclusivo) seriam automaticamente indevidas — como foi feito pela 1ª CSRF na ocasião.
Há um evidente salto argumentativo que serve para ignorar um problema fundamental a respeito do alcance das imunidades analisadas no caso concreto — em especial quando se examinam imunidades de caráter subjetivo, como aquelas do artigo 150, VI, “c” da CF/88, mais comuns nos processos citados.
Por outro lado, a outra linha de precedentes adota, majoritariamente, o entendimento homogeneizante dos diversos tipos de retenção na fonte existentes — cujas diferenças essenciais em seus fundamentos e regimes jurídicos já foram exploradas anteriormente, nessa coluna.
Ignoram, portanto, a distinção entre a retenção que se dá como dever administrativo/obrigação acessória e aquela que tem natureza efetivamente de obrigação principal, enquanto decorrência de substituição tributária. O objetivo de esfacelar essa distinção — pacífica na jurisprudência e na doutrina — é tentar enquadrar a situação do IRRF-exclusivo, como o do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, dentro do escopo do artigo 9º, §1º do CTN.
Contributo da jurisprudência judicial para o esclarecimento da questão
A discussão sobre a natureza do sujeito responsável pela retenção na fonte é bastante antiga na jurisprudência nacional. A respeito disso, há precedentes antigos do STF, datados da década de 1970, que admitiam que a entidade imune sujeita ao IRRF-exclusivo, na remessa de juros ao exterior, estaria acobertada pela imunidade, afastando-se essa cobrança (ACO 231, Min. Décio Miranda, DJ de 6/4/1979, e RE 81.530/PR, Min. Cordeiro Guerra, DJ de 26/12/1975). Essas decisões assumiam como premissa que o remetente de juros seria contribuinte, pautando-se na literalidade do artigo 11 do Decreto-lei 401/1968.
A evolução do entendimento dos institutos do Direito Tributário levou a uma recompreensão dessa questão. Passou-se a entender que as situações em que há um dever da fonte pagadora de pagar, de forma definitiva, o tributo sobre o rendimento do beneficiário, ressarcindo-se por meio do desconto desse montante, teriam natureza de substituição tributária. Assim, o substituto assumiria a obrigação tributária mesmo sem ter realizado o fato gerador (circunstância essencial à caracterização como contribuinte), preservando-se a compreensão de que a materialidade econômica alcançada se referiria àquele substituído, beneficiário do pagamento.
Tanto que, posteriormente, o próprio STF mudou o seu entendimento a respeito do tema, concluindo que:
“A responsabilidade ou a substituição tributária não alteram as premissas centrais da tributação, cuja regra-matriz continua a incidir sobre a operação realizada pelo contribuinte. Portanto, a imunidade tributária não afeta, tão-somente por si, a relação de responsabilidade tributária ou de substituição e não exonera o responsável tributário ou o substituto” (RE 202.987, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe de 25/9/2009)
Nesse sentido, há precedentes posteriores que sustentam que a entidade imune está resguardada apenas dos impostos que sobre ela incide na condição de contribuinte, mas não a exime do dever de recolher os que lhe caibam na condição de substituta tributária (e.g. RE 446.530).
Esse entendimento tem sido adotado também pelo STJ (e.g. REsp 1.480.918/RS, Relator para acórdão Min. Herman Benjamin, DJe 01/02/2018), que aponta que a definição da natureza jurídica subjetiva da entidade imune depende da qualificação que lhe for dada pelo CTN, assumindo caráter de substituição tributária nos casos de retenção na fonte definitiva. Portanto, a imunidade tributária da fonte pagadora (substituta) não afeta a tributabilidade dos rendimentos do substituído — pelo contrário, aquela pagará, ressarcindo-se às expensas deste, nos termos do artigo 128 do CTN.
Conclusões
Sem pretender nos alongarmos demasiadamente na questão, é perceptível que a discussão desenvolvida nas Cortes Superiores ao longo de décadas elucida a erronia de parte das razões de decidir dos acórdãos do Carf mencionados. Ela evidencia a possibilidade de sujeição passiva da entidade imune, nos casos de substituição tributária, podendo-lhe ser cobrado o tributo mesmo que não se trate da hipótese de atuação como simples “agente de retenção”.
Dos fundamentos apresentados nos acórdãos do Carf, o único que nos parece subsistir ao cotejo com a jurisprudência judicial é o que reconhece estar fora do alcance da imunidade os tributos retidos pela fonte pagadora, por se tratar de manifestações de capacidade contributiva do beneficiário. Além disso, tal fundamento nos parece capaz de conciliar a correta interpretação do artigo 9º, §1º, do CTN (que se refere apenas às retenções a título de antecipação) com a possibilidade de sujeição passiva por substituição para os entes imunes.
Essa certamente não é a última das controvérsias envolvendo o IRRF do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, mas encerra aqui — pelo menos por ora — a nossa série de artigos sobre o tema. Esperamos que eles tenham contribuído para refletir uma parte da profundidade e da complexidade subjacentes a essa única incidência tributária, o que de resto é um reflexo do cipoal hermético que é o nosso próprio sistema tributário.
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