Do agente de contratação na Lei 14.133/2021: uma defesa do municipalismo
25 de junho de 2025, 18h17
A União é competente para editar “normas gerais de licitação e contratação”, obrigatórias a si própria e aos demais entes da federação (artigo 22, XXVII, Constituição). No uso dessa competência, foram editadas as Leis 8.666/1993, revogada, e 14.133/2021, vigente. Esta introduziu, na sistemática das licitações e contratos administrativos, o instituto do agente de contratação, definindo-o no inciso LX de seu artigo 6º, verbis:
“Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
LX – agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.”
Apesar de sua novidade, o instituto do agente de contratação já está envolvido em uma controvérsia doutrinária mais antiga, provocada pela indeterminação da expressão “normas gerais”, constante do já citado artigo 22, XXVII, da Constituição. Resume-se a controvérsia em distinguir o que é norma geral-nacional (aplicável a todos os entes da federação) e o que é norma específica-federal apenas (aplicável somente à União).
Normas gerais-nacionais versus normas específicas-federais no regime jurídico das licitações e contratações públicas
Na ordem constitucional anterior, já se impunha à doutrina a questão de definir o que é norma geral-nacional, obrigatória a todos os entes da federação, e o que é norma específica-federal, à qual somente a União está obrigada. Escrevendo em 1968, Geraldo Ataliba lecionava:
“O Congresso Nacional é órgão legislativo do Estado Federal e da União. Na primeira qualidade edita leis nacionais, na segunda, leis federais. As leis nacionais superam e transcendem às circunscrições políticas internas. As leis federais, ao lado das estaduais e municipais, circunscrevem-se à área de jurisdição da pessoa a que se vinculam e somente obrigam os jurisdicionados stricto sensu de cada qual. É, portanto, muito mais ampla a lei nacional do que a lei federal. Em outras palavras, a Constituição confere à lei nacional amplíssimo poder para regular matérias específicas em todo o território nacional, abstração feita da sujeição dos destinatários da norma, quer à União, quer a Estados e Municípios. Já a lei federal, embora editada pelo mesmo órgão, onera, circunscritamente, somente os jurisdicionados da União. Donde se vê que a lei federal se opõe – no mesmo plano que está – à lei estadual e à municipal, enquanto que a lei nacional abstrai de todas elas – federal, estadual e municipal– transcendendo-as… A lei federal é bem restrita e limitada. Dirige-se aos jurisdicionados (stricto sensu) da União, seus administrados; a seu aparelho administrativo, vinculando exclusivamente seus súditos. Obriga só aquelas pessoas a ela sujeitas, circunscrevendo seus efeitos à esfera da pessoa União, em oposição a Estados e Municípios. Quer dizer: limita-se ao campo constitucional conferido à União, não podendo estender-se ou invadir o campo dos Estados e Municípios” (ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 94).
No que diz respeito especificamente às licitações e contratos administrativos:
“Comentando o estudo de CARVALHO PINTO, com vistas ao instituto da licitação, e procurando demonstrar não estar ele incluído no conceito de normas gerais, do art. 8.º, XVII, c [da Constituição de 1967], o publicista ADILSON ABREU DALLARI considera normas gerais as que sejam uniformemente aplicáveis a todos os entes públicos e a todas as situações jurídicas da mesma espécie, que se refiram a questões fundamentais básicas e que não se estendam até o ponto em que isso possa ferir princípios ou atributos inerentes à autonomia dos Estados e Municípios” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, n. 100, out.-dez.1988).
A vexata quaestio persistiu na sistemática constitucional atual, com indicações, na antiga Lei 8.666/1993 e na atual Lei 14.133/2021, de disposições normativas que, não sendo gerais (como o seriam, p.ex., os princípios), obrigam tão-somente a União, sendo, portanto, normas meramente federais.
Sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que algumas normas constantes daquela Lei não são gerais, razão pela qual vinculam apenas a Administração federal. Trata-se da ADI 927 MC/RS, cuja ementa é a seguinte:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA. Lei n. 8.666, de 21.06.93. I. – Interpretação conforme dada ao art. 17, I, “b” (doação de bem imóvel) e art. 17, II, “b” (permuta de bem móvel), para esclarecer que a vedação tem aplicação no âmbito da União Federal, apenas. Idêntico entendimento em relação ao art. 17, I, “c” e par. 1. do art. 17. Vencido o Relator, nesta parte. II. – Cautelar deferida, em parte.” (STF, ADI 927 MC/RS, Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso, j. 03/11/1993, p. 11/11/1994)
No que tange à Lei 14.133/2021, dentre tais normas específicas-federais aponta parcela da doutrina aquela que define o agente de contratação, i.e., o já citado artigo 6º, LX (e também o artigo 8º, que prevê que a licitação será conduzida por agente de contratação).
O artigo 6º, LX, da Lei 14.133/2021 como norma específica-federal: doutrina e jurisprudência
Se o dispositivo constitui norma específica-federal, então a expressão “entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da administração pública” vincularia somente a União, podendo os estados, os municípios e o Distrito Federal disporem, no uso de suas respectivas autonomias, sobre os servidores que exercerão a função de agente de contratação, mais especificamente para autorizar a designação de comissionados, devendo obedecer apenas a preferência legal por servidores efetivos (a teor da norma insculpida no artigo 7º, I, da Lei 14.133/2021, que seria, por sua vez, geral-nacional).
Como representativo dessa posição, destaca-se Rafael Carvalho Rezende Oliveira:
“Na literalidade dos referidos dispositivos legais [refere-se aos arts. 6º, LX, e 8º da Lei 14.133/2021], os agentes de contratação deveriam ser, obrigatoriamente, servidores efetivos, em razão do caráter geral da Lei 14.133/2021. De nossa parte, sustentamos que os arts. 6º, LX, e 8º da Lei 14.133/2021 devem ser considerados normas específicas, uma vez que a competência legislativa para definir o regime jurídico dos servidores, que exercerão determinadas funções públicas, inclusive aqueles inerentes aos agentes de contratação, deve ser inserida na autonomia dos Entes federados” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 13ª edição, 2025, p. 385).
Prossegue o professor carioca:
“É verdade que o desempenho da função por servidores estatutários, ocupantes de cargo efetivos, garante maior independência ao agente de contratação e segurança jurídica aos participantes dos certames, o que justifica a preferência na indicação desses servidores, mas não há impedimento para que os Entes federados, em situações excepcionais e justificadas, estabeleça, em seus respectivos atos normativos, a possibilidade de indicação excepcional de servidores comissionados para atuarem como agentes de contratação, quando justificada a impossibilidade de indicação de servidores efetivos.”
Alhures, o doutrinador detalha a citada impossibilidade de indicação de servidores efetivos:
“A implementação da referida exigência representa, sob o ponto de vista pragmático, enorme desafio para os Estados e, especialmente, Municípios que, não raras as vezes, não possuem quantitativo suficiente de servidores públicos efetivos para desempenharem as funções de agentes de contratação, especialmente porque a nova lei de Licitações consagra o princípio da segregação de funções, o que acarreta a necessidade de nomeação de servidores distintos que atuarão ao longo do certame” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Agentes de Contratação na Nova Lei de Licitações, Migalhas, 27/04/2023).
No âmbito dos Tribunais de Contas, existem precedentes que adotam esse posicionamento doutrinário. Assim, por exemplo, os Tribunais de Contas do Espírito Santo e do Paraná:
“Assim, os municípios poderão regulamentar por lei as nomeações de ‘Agentes de Contratação’ e ‘Pregoeiros’, desde que realizadas, preferencialmente, entre os servidores efetivos e de carreira, salvo quando comprovada a ausência de disponibilidade dos referidos agentes públicos, sob inteira responsabilidade da autoridade nomeante, sendo imprescindível demonstrar, também, as qualificações profissionais dos nomeados, bem como que são estas suficientes e adequadas ao exercício das funções (TCE-ES, Consulta 00016/2023-1).
Com base em tudo o que foi discorrido, a Nova Lei de Licitações traz como regra que os agentes públicos designados para desempenho das funções ditas essenciais devem atender o disposto no artigo 7º, I, ou seja, devem ser selecionados, preferencialmente, entre servidores efetivos e empregados públicos. Se o município não tiver condições de dar atendimento à lei, de modo justificado e fundamentado, poderá indicar temporariamente servidor comissionado que detenha todas as qualificações impostas no artigo em comento. O mesmo vale para o artigo 8º, especificamente para as figuras dos agentes de contratação, da comissão de contratação e dos pregoeiros, integrantes do órgão de contratação” (TCE-PR, Acórdão nº 3561/2023).
O Tribunal de Contas da União, por sua vez, em orientação expedida às suas unidades técnicas no acórdão 1917/2024, admitindo que “situações extraordinárias, devidamente motivadas pela autoridade competente”, justificam a designação de comissionado para a função de agente de contratação:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de relatório de acompanhamento com o objetivo de mensurar e acompanhar, por amostragem e utilizando indicadores, o grau de maturidade dos órgãos e entidades para a aplicação da Lei 14.133/2021, identificando e avaliando os aspectos que possam estar dificultando a internalização e a utilização do novo estatuto licitatório,
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo relator, em:
9.6. determinar à Secretaria-Geral de Controle Externo (Segecex) que expeça as seguintes orientações às unidades técnicas desta Corte de Contas:
9.6.1. no exame dos processos de controle externo envolvendo certames licitatórios de jurisdição do TCU, realizados sob a égide da Lei 14.133/2021, verifiquem se os agentes de contratação ou pregoeiros responsáveis pela condução do certame são servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da administração pública, tendo em vista o disposto nos arts. 6º, inciso LX, e 8º, caput, da Lei 14.133/2021, bem como se existem situações extraordinárias, devidamente motivadas pela autoridade competente, que justifiquem o não cumprimento dos referidos dispositivos. (TCU, Acórdão 1917-Plenário)
Defesa do municipalismo
Como se depreende dos excertos de doutrina e jurisprudência trazidos à colação, na prática o entendimento ora exposto autoriza que a função de agente de contratação recaia sobre servidor puramente comissionado, o que, alegam os críticos, viola a Constituição, pois o cargo em comissão se destina “apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (artigo 37, V, Constituição), e o agente de contratação é função de natureza técnica e burocrática. Mas a crítica erra o alvo.

Somente a partir de uma interpretação gramatical estrita (associada ao mito do “bom legislador”, que não usa palavras inúteis) do artigo 6º, LX, da Lei 14.133/2021 se poderia concluir, sobre o sentido da norma, que os agentes de contratação devam ser obrigatoriamente servidores efetivos. Mas não é assim que se interpretam normas. Por axioma, sistemas jurídicos devem ser interpretados conforme a constituição. O que é tarefa complexa, na medida em que, à superfície da letra da lei (que a interpretação gramatical estrita acessa), acrescenta-se, como uma dimensão a mais, a profundidade dos valores da constituição — dentre eles, no caso da Constituição de 1988, o municipalismo.
Como já tive oportunidade de mencionar em outro artigo no Conjur (CASTRO, Jonathas Ramos. O Tema 656 do Supremo Tribunal Federal e a questão do municipalismo. Conjur, 13/03/2025), o municipalismo é a ideologia política favorável às autonomias locais. Nesse sentido, a Constituição de 1988, ao conferir aos Municípios um peso até então inédito na história constitucional brasileira (quiçá mundial), pode ser definida como uma constituição municipalista.
Se, por axioma, os sistemas jurídicos devem ser interpretados conforme a constituição, e se a Constituição de 1988 é municipalista, então a Lei 14.133/2021 deve ser interpretada de maneira a favorecer as franquias locais.
Essa — a interpretação da Lei 14.133/2021 conforme a Constituição de 1988, especialmente no que diz respeito à autonomia municipal, artigos 18, caput, e 29, caput, Constituição — é uma das razões que justificam o posicionamento da doutrina e dos Tribunais de Contas que relativiza a regra do artigo 37, V, Constituição e autoriza servidores puramente comissionados exercerem (ainda que excepcionalmente) a função de agente de contratação.
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