Opinião

Depoimento especial é prova; entrevista prévia e escuta especializada não são (ou não deveriam ser)

Autores

  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás) tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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  • é doutor e mestre em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) com graduação em Psicologia pela mesma instituição. Psicólogo judiciário do TJ-SP desde 2018 lotado nas 1ª e 2ª Varas especializadas de crimes contra crianças e adolescentes da comarca da capital. É professor nos cursos de pós-graduação em Psicologia Jurídica do Centro Universitário São Camilo e da UniSãoPaulo. Palestrante e formador em cursos de capacitação de magistrados para o depoimento especial do TJ-SP TJ-RJ TJ-GO TRF (3ª Região) e da Escola Nacional da Magistratura (ENM). Defensor dativo na Comissão de Ética do CRP/SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP. Psicólogo clínico particular.

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25 de junho de 2025, 9h19

Em artigos publicados aqui nesta ConJur (aqui e aqui), tivemos a oportunidade de analisar a natureza jurídica do depoimento especial e discutir a importância do contraditório para evitar que sua aplicação se converta em um ato autoritário, levando-nos a enxergá-lo como um meio de prova com necessárias adaptações. Dando seguimento a essas reflexões, o objetivo deste artigo é traçar uma distinção fundamental, porém ainda turva na prática forense e na atuação da rede de proteção: a diferença conceitual e teleológica entre o depoimento especial, a entrevista prévia e a escuta especializada.

A premissa é direta: o depoimento especial é, por sua natureza e finalidade, um meio de prova. A entrevista prévia e a escuta especializada, por outro lado, não o são — ou, ao menos, não deveriam ser, sob pena de grave desvirtuamento de seus propósitos e de violação dos direitos tanto da criança e do adolescente quanto do próprio investigado.

O depoimento especial como meio de prova

A Lei nº 13.431/2017 e seu regulamento, o Decreto nº 9.603/2018, são inequívocos quanto à função probatória do depoimento especial (DE). A parte final do caput do artigo 22 do decreto não deixa dúvidas:

“Art. 22. O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas.

Justamente por sua finalidade probatória, o DE é um procedimento de oitiva conduzido perante a autoridade policial (delegado de polícia) ou a autoridade judiciária (magistrado). Ele ocorre no ambiente formal da delegacia de polícia ou do Poder Judiciário, mas em sala adaptada e acolhedora, que garanta a privacidade e a segurança do depoente infantojuvenil.

Seu objetivo é colher uma prova passível de subsidiar o relatório final do inquérito policial, de formar a opinio delicti do Ministério Público e, crucialmente, de influenciar o convencimento do órgão julgador quando da prolação da sentença, sempre em cotejo com as demais provas. Que fique claro: o juiz pode (e deve) considerar o teor do depoimento especial ao prolatar a sentença, seja condenatória, seja absolutória.

A estrutura do procedimento reflete essa finalidade. De início, permite-se que a criança ou o adolescente narre livremente os fatos em apuração (artigo 12, inciso II, da Lei nº 13.431/2017). Após essa narrativa, o entrevistador forense pode — e deve — fazer perguntas de detalhamento. Por fim, as partes, que acompanham a oitiva em tempo real de uma sala apartada, podem formular questionamentos complementares por intermédio do entrevistador (artigo 12, inciso IV).

Como bem esclarece o Guia de Escuta Especializada, elaborado pela Childhood Brasil e pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, publicado em 2022 com o objetivo de sanar dúvidas acerca da escuta especializada (aqui): é o depoimento especial a modalidade de oitiva cuja finalidade é apurar os fatos da violência ocorrida, a qual “requer seus detalhamentos para identificar potenciais atos criminosos e o estabelecimento da chamada dosimetria da pena. É então somente no depoimento especial que a criança ou o(a) adolescente vítima ou testemunha de violência pode ser indagado sobre ‘o que, como, onde, quem e quando’ aconteceram tais fatos” (p. 28).

Spacca

É no depoimento especial que, após o livre relato da vítima ou testemunha, são formuladas perguntas de seguimento e detalhamento, as quais requerem descrição de tempo, pessoas, situações ou objetos: o quê, quem, como, quando e onde. Essas perguntas são comumente referenciadas como “Wh- questions”, em referência às palavras da língua inglesa iniciadas por “Wh”: “What” (o quê), “Where” (onde), “When” (quando), “Who” (quem), “Why” (por quê) ou “How”. Também são conhecidas como “specific follow-up questions”, isto é, questionamentos abertos visando à maior quantidade de informações sobre um determinado tópico não espontaneamente incluído na livre narrativa da criança ou adolescente (Saywitz; Lyon; Goodman, 2011). Questionamentos assim só têm lugar no depoimento especial, jamais na entrevista prévia e, tampouco, na escuta especializada.

Entrevista prévia como ato preparatório e não-probatório

Diferentemente, a entrevista prévia não é um meio de prova. Trata-se de um ato prévio e preparatório que antecede o depoimento especial, realizado dias ou horas antes da audiência. Sua finalidade não é probatória, mas eminentemente protetiva: verificar se criança ou o adolescente reúnem condições psicológicas para prestar depoimento, atentando-se para a possibilidade de revitimização.

Para tanto, busca-se conhecer a dinâmica familiar, avaliar as condições psicoemocionais e cognitivas do depoente, estabelecer um vínculo de confiança com o profissional entrevistador e esclarecer o procedimento do DE para a criança ou adolescente. A entrevista prévia não se confunde com o depoimento especial. Tanto é que, em razão do avaliado em entrevista prévia, é possível o profissional contraindicar o depoimento especial, caso em que, se acatada a recomendação técnica pela autoridade judiciária, o depoimento especial não é realizado, ou seja, a prova sequer será produzida.

Escuta especializada e sua finalidade protetiva

A Lei nº 13.431/2017 previu duas modalidades de oitiva protegida (artigo 4º, §1º): o depoimento especial (DE) e a escuta especializada (EE). Apenas a primeira tem finalidade probatória. A EE não tem por escopo a produção de prova. A prática, contudo, tem sido marcada por grave incompreensão do instituto da escuta especializada. Como o próprio guia reconhece, “a falta de uma definição clara sobre a natureza ou o conteúdo da escuta especializada vem suscitando, nesses últimos cinco anos, muitas dúvidas sobre quais atores devem realizá-la e como realizá-la; vem gerando práticas contraditórias que atenta contra a própria finalidade precípua da Lei nº 13.431/2017, que é a prevenção da revitimização de crianças e adolescentes” (p. 24).

Para sanar qualquer dúvida, o Decreto nº 9.603/2018 foi categórico no §4º do artigo 19, prescrevendo que: “a escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização”. Ela é, na verdade, uma ferramenta da rede de proteção. Nesse sentido, o “Guia” define a EE como “um conjunto de interações com a criança e o(a) adolescente vítima ou testemunha de violência, destinado a coletar informações para o acolhimento e o provimento de cuidados de urgência e proteção integral” (p. 23). Suas finalidades concretas, portanto, não são probatórias, mas protetivas, como a elaboração de estudos psicossociais e a elaboração do Plano de Atendimento Integrado de Criança e Adolescente (Paica).

A EE não é atribuição dos assistentes sociais e psicólogos que atuam no Poder Judiciário, mas sim um instrumento utilizado pelos profissionais da rede de proteção (saúde, educação e assistência social) para subsidiar a elaboração dos diagnósticos que nortearão os processos de atenção e o cuidado da criança e adolescente vítima ou testemunha de violência. Para tanto, o profissional que realiza a EE deve permitir que a vítima ou testemunha infantojuvenil possa relatar livre e espontaneamente o que lhe aconteceu, sem interrupções com questionamentos. Ouvir muito mais do que perguntar: essa é a tônica que deve orientar a escuta especializada.

Nesse sentido, o Guia reforça que, durante a EE, “os profissionais não devem indagá-los sobre os fatos de violência ocorridos” (p. 23). E acrescenta que a EE “não é um procedimento de detalhamento ou confirmação dos fatos de violência ocorridos” (p. 15). O entrevistador que realiza a EE não deve atuar como um investigador de polícia: o seu papel não é esclarecer o ocorrido e punir o culpado. O objetivo da EE, que deve guiar a atuação do profissional entrevistador, é “assegurar o acompanhamento da vítima […] para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados” (art. 19 do decreto).

São diversas as ferramentas que viabilizam o objetivo da EE: entrevista psicossocial, entrevistas vinculares, visita domiciliar, testes psicológicos, grupos operativos, observação do comportamento lúdico, diagnóstico psicossocial etc. Já a entrevista forense, base técnica do depoimento especial, só pode acontecer no Poder Judiciário.

Nas “Orientações Técnicas” para os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), documento do Ministério do Desenvolvimento Social de 2011 (aqui), adverte-se que à política de proteção social especial não cabe “assumir a atribuição de investigação para a responsabilização dos autores de violência, tendo em vista que seu papel institucional é definido pelo papel e escopo de competências do SUAS” (p. 26).

A escuta das supostas vítimas, nesses equipamentos, busca identificar fatores de proteção e vulnerabilidade que, respectivamente, diminuem ou aumentam a probabilidade de a criança ou o adolescente sofrerem um episódio de violência ou um novo episódio de violência. Exemplo: uma criança de 4 anos não está matriculada na rede oficial da educação municipal, fazendo com que sua genitora, ao sair para trabalhar em diferentes “bicos”, deixe-a sob a supervisão de cuidadoras informais, como vizinhas. Em certo momento, surge a suspeita de que a criança teria sido abusada sexualmente pelo marido de uma dessas cuidadoras.

O objetivo da EE desta criança é articular a política de educação para, imediatamente, matriculá-la em uma creche oficial, além de averiguar a pertinência de atuação dos serviços de saúde para auxiliá-la na lide com o impacto traumático do suposto abuso. Também é possível averiguar a possibilidade de incluir a genitora em benefícios socioassistenciais que fomentem sua renda e/ou encaminhá-la para as políticas de empregabilidade do município, retirando-a da informalidade e permitindo-a passar mais tempo junto à prole. Assim, diminui-se o risco de uma nova potencial situação de abuso da criança, independentemente da veracidade da primeira – a qual cabe, via depoimento especial no Judiciário, ser demonstrada ou descartada.

Mesmo com tal clareza, muitos profissionais têm desvirtuado o instituto, utilizando-o como um substituto do depoimento especial. Nessa prática equivocada, o entrevistador atua como um verdadeiro inquisidor, buscando os mínimos detalhes da violência. É o que chamamos de “escuta apuratória”, prática na qual a finalidade protetiva é subvertida por uma ânsia investigativa, gerando relatórios complexos e detalhados que em nada se coadunam com o propósito legal. Que fique claro: causa estranheza sentença judicial que se fundamenta em relatórios baseados em escuta especializada; afinal, EE não é (e não deve ser) prova. De todo modo, o erro é da prática, não do instituto em si.

Possibilidade de uso contingencial como prova

Realçar a finalidade não probatória da EE significa que o profissional do Poder Executivo não deve atuar como um investigador. Sua abordagem deve ser de “questionamentos mínimos e estritamente necessários ao atendimento” (artigo 15 do decreto). Contudo, ao dar espaço à livre narrativa da criança, isso não impede a emergência de um relato espontâneo cujos elementos, contingentemente, possam ser utilizados como prova.

A diferença crucial reside na forma como o entrevistador conduz a escuta. Ele não deve “sapecar” a criança de perguntas, mas pode (e deve) deixá-la falar o que bem lhe aprouver. Em alguns casos, além dos elementos necessários para construir as ações protetivas, aparecerão, espontaneamente, informações valiosas para instruir o inquérito ou processo criminal contra o suposto agressor.

Nisso reside a possibilidade de um uso contingencial da EE como prova. Embora não seja sua vocação, se a própria criança, espontaneamente, relata detalhes da violência, esse relato pode (e deve) ser utilizado. Como bem aponta Flávio Schmidt (2020, p. 199): “a escuta especializada não se destina a tal fim, mas ocorrendo o relato da violência em que haja a violação de direitos de qualquer parte, seu relato deve ser utilizado como meio de prova, até porque a LDE não faz qualquer restrição quanto a essa possibilidade”.

A distinção está na condução: a atuação do entrevistador não pode ser predeterminada à produção de provas. Esse não é o seu papel e essa não é a finalidade da escuta especializada. Ainda assim, em situações excepcionais, o produto da EE poderá ser utilizado como meio de prova, mas são ocasiões que fogem ao controle do profissional responsável pela oitiva.

Criança pode ser ouvida tanto em EE quanto em DE?

Por fim, a dúvida recorrente: é possível que a criança seja ouvida tanto em EE quanto em DE? Interpretando a Lei nº 13.431/2017, verificamos que o art. 11 registra que, sempre que possível, haverá um único depoimento especial – e não uma única oitiva. Logo, a lei veda que haja dois DEs e não que haja uma EE e um DE. Assim, se a EE for realizada como deve ser — com questionamentos mínimos e foco nos fatores de proteção e vulnerabilidade  —, é perfeitamente possível e, em muitos casos, recomendável que o DE ocorra em seguida, pois só nele será produzida prova judicial com a garantia do contraditório.

O cenário muda, contudo, se houver a subversão da escuta em uma “escuta apuratória”. Nesse caso, a criança já foi inquirida detalhadamente, ainda que sob o rótulo de “escuta”. Repetir essa inquirição em um posterior DE seria, aí sim, um ato de flagrante revitimização. Afinal, a “escuta apuratória” nada mais é do que um depoimento especial travestido, e pior, realizado sem a participação democrática das partes e não submetida ao contraditório.

Conclusão

A clareza sobre os papéis de cada procedimento é essencial para a correta aplicação da Lei nº 13.431/2017. O depoimento especial é o palco da prova, um ato de natureza processual-investigativa. A entrevista prévia é sua antessala protetiva, um ato preparatório. A escuta especializada, por sua vez, é reservada à rede de proteção, sendo um conjunto de interações voltadas ao diagnóstico psicossocial, aos encaminhamentos referenciados e às intervenções ambientais necessárias ao cuidado integral da criança e do adolescente, diminuindo as chances de ocorrência de um episódio de violência ou de um novo episódio de violência em sua vida.

Confundir esses espaços, transformando a escuta especializada e a entrevista prévia em um interrogatório, é comprometer não apenas a busca pela verdade processual, mas, fundamentalmente, a proteção integral de crianças e adolescentes. Respeitar as fronteiras de cada instituto é a única forma de garantir, simultaneamente, um processo penal justo e uma proteção social efetiva.

 


Referências:

SAYWITZ, K. J.; GOODMAN, G. S.; LYON, T. D. Interviewing children. In: The APSAC handbook on child maltreatment. Thousand Oaks, CA: Sage, 2011. Disponível aqui

SCHMIDT, Flávio. Lei do Depoimento Especial Anotada e Interpretada artigo por artigo. Editora JHMizuno. 2020.

Autores

  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás), tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra, Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

  • é doutor e mestre em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), com graduação em Psicologia pela mesma instituição. Psicólogo judiciário do TJ-SP desde 2018, lotado nas 1ª e 2ª Varas especializadas de crimes contra crianças e adolescentes da comarca da capital. É professor nos cursos de pós-graduação em Psicologia Jurídica do Centro Universitário São Camilo e da UniSãoPaulo. Palestrante e formador em cursos de capacitação de magistrados para o depoimento especial do TJ-SP, TJ-RJ, TJ-GO, TRF (3ª Região) e da Escola Nacional da Magistratura (ENM). Defensor dativo na Comissão de Ética do CRP/SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP. Psicólogo clínico particular.

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