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As viúvas da tributação bifásica dos lucros e dividendos

Autor

  • é sócio fundador do escritório Brigagão Duque Estrada – Advogados presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro former member of the Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA) membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica (Britcham) diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE) e professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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25 de junho de 2025, 11h25

O fatiamento das reformas tributárias em curso

Diferentemente do que ocorreu na reforma tributária de 1965 — consagrada pela EC 18/65 e pelo Código Tributário Nacional —, as reformas em curso da tributação do consumo, da renda e do patrimônio vêm sendo conduzidas de forma assíncrona e desconexa.

A reforma do consumo já nos levou à maior alíquota de IVA do planeta.

Vivemos, agora, a fase da reforma da tributação da renda.  De forma igualmente perniciosa, ela em si vem também sendo conduzida de maneira fatiada e desconcatenada, por meio de normas esparsas que não guardam relação entre si.

Seguem alguns exemplos:

(1) a criação do “come-cotas” para fundos fechados e exclusivos, instituída pela Lei 14.754/23;

(2) a tributação de empresas offshore, prevista na mesma Lei 14.754/23;

(3) a possibilidade de atualização do valor de bens imóveis declarados na DIRPF, com aplicação de alíquota definitiva de 4%, conforme a Lei 14.973/24;

(4) o retorno do voto de qualidade no Carf, com nítido intuito arrecadatório, implementado pela Lei 14.689/23;

(5) a aprovação do novo marco legal das regras de preço de transferência, pela Lei 14.596/23;

(6) a instituição da tributação mínima de 15% para pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que integrem grupos multinacionais com receita anual superior a 750 milhões de euros, nos termos da Lei 15.079/2025;

(7)  a disciplina das subvenções para fins de tributação pelo IR, estabelecida pela Lei 14.789/24, entre tantas outras medidas.

O Projeto de Lei 1.087

A bola da vez, como todos sabemos, é o PL 1.087/25, sobre o qual tive a oportunidade de comentar alguns de seus equívocos e retrocessos, tanto em audiência realizada recentemente na Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre a Alteração da Legislação do Imposto de Renda quanto, dias depois, em reunião no gabinete do relator do projeto, deputado Arthur Lira.

Spacca

Esse projeto foi encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, sob o amparo de um discurso político “robinhoodiano”: o de retirar dos ricos para dar aos pobres.  Propõe-se a isenção do imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil mensais e a redução das alíquotas para rendas de até R$ 7 mil e, para compensar a consequente perda de arrecadação, propõe-se também a instituição do Imposto de Renda Mínimo na Fonte (IR Mínimo), com alíquotas progressivas que podem chegar a 10%, aplicáveis a contribuintes pessoas físicas com rendimentos superiores a R$ 50 mil mensais, ou R$ 600 mil por ano.

O caráter populista da medida

Como demonstram as pesquisas, essa iniciativa é tomada pelo Governo em momento de franco declínio do seu prestígio perante a população brasileira. Ela decorre, em grande parte, das idas e vindas na implementação de medidas polêmicas (ou polemizadas) — como a oneração das “blusinhas importadas”, a suposta tributação do PIX, as alterações nas regras de tributação do IOF —, bem como da forma atabalhoada como foram apresentadas pelo Executivo.

Num cenário como esse, principalmente em ano pré-eleitoral, nada melhor do que propostas tributárias que encham os olhos de 10 milhões de eleitores, ainda que tomadas em momento marcado por intempéries orçamentárias, e em detrimento de “ínfimos” 143 mil contribuintes, os chamados “super-ricos”, que o senador Ciro Nogueira, por meio de emenda ao PL, se esforça para ressignificar em algo que seja um pouco mais merecedor dessa adjetivação (ele propõe a alteração da faixa mínima de remuneração sujeita à nova incidência de R$ 50 mil para R$ 150 mil).

Esquece-se o governo de que é exatamente esse pequeno grupo de 143 mil que oferece oportunidades de emprego àquela multidão de beneficiados.

As características do PL

Na forma proposta pelo PL 1.087/25, os cálculos exigidos para a aplicação da nova forma de imposição são marcados por excessiva complexidade.

O contribuinte com rendimentos superiores aos limites mencionados deve, em um primeiro momento, apurar se está sujeito à tributação mínima e a qual alíquota será submetido, considerando, para tanto, alguns ajustes previstos na norma. Em seguida, novos cálculos deverão ser feitos para a verificação do valor a ser efetivamente retido na fonte, com base em novos critérios de apuração. Por fim, no momento da entrega da declaração anual, o contribuinte deverá verificar se há imposto a pagar ou a restituir. Para tanto, somará os valores que lhe foram retidos na fonte ao montante de IRPJ e CSLL efetivamente pagos pela pessoa jurídica que distribuiu os dividendos (alíquota efetiva), e comparará esse total com o montante resultante da aplicação da alíquota nominal de 34% sobre o lucro auferido. Se o valor do referido somatório for inferior ao resultante da aplicação da alíquota nominal de 34%, o contribuinte pessoa física deverá recolher o saldo, em sua declaração anual.  Se for superior, receberá um crédito correspondente a esse saldo.

No caso de distribuição de dividendos a investidores estrangeiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas, haverá retenção fixa de 10% na fonte, que não variará conforme o valor distribuído, em franca ofensa à isonomia com o tratamento dado aos nacionais. Será, também, necessário realizar todos os cálculos acima mencionados para verificar se haverá saldo a pagar ou a ser restituído, conforme a comparação entre a carga efetiva suportada e a referida alíquota nominal.

Toda essa complexidade tem como principais objetivos: (a) submeter à tributação os dividendos distribuídos a pessoas físicas (e também a pessoas jurídicas, se localizadas no exterior), hoje isentos; e (b) transferir a esses contribuintes a responsabilidade por complementar, ao fim e ao cabo, os tributos que deixaram de ser recolhidos pela pessoa jurídica, nos casos em que a alíquota efetiva aplicada sobre o lucro tenha sido inferior à alíquota nominal de 34%.

Tributação de dividendos no Brasil: entre mitos, falácias e retrocessos

Como já tive a oportunidade de dizer nas discussões sobre esse tema ocorridas nas últimas três décadas, os dividendos recebidos pelos sócios têm origem no lucro auferido pelas empresas.  Disso, decorre haver, portanto, três únicas maneiras possíveis de tributação dessa circulação de riqueza: (a) de forma concentrada na origem, ou seja, na pessoa jurídica, isentando-se a distribuição ao acionista ou quotista; (b) de forma concentrada no destinatário, tributando apenas o sócio, sem qualquer incidência na pessoa jurídica (as denominadas partnerships, por exemplo, sobre as quais falaremos no final desta coluna); ou (c) de forma bifásica, com tributação tanto sobre o lucro da pessoa jurídica quanto sobre os dividendos distribuídos.

No Brasil, adotou-se a tributação bifásica durante os primeiros setenta anos de existência do imposto sobre a renda. Nos anos 1990 (com o advento da Lei 9.249/95), houve a migração para a tributação monofásica, com a instituição de uma alíquota bastante severa — de 34% — incidente, de forma concentrada, sobre o lucro auferido pelas pessoas jurídicas (na OCDE, as alíquotas incidentes sobre o lucro das pessoas jurídicas são, em média, de 22%).

Ou seja, não se pretendeu, no Brasil, desonerar qualquer parte da circulação do lucro  verificada desde a sua formação na pessoa jurídica até o momento em que os seus frutos chegam às mãos dos seus sócios.  Optou-se por tributar-se a totalidade dessa circulação de riqueza exclusivamente na primeira fase.

É falaciosa, portanto, a afirmação de que, no Brasil, os quotistas e acionistas são desonerados do pagamento de tributos quando recebem lucros ou dividendos. Eles são, sim, onerados – e excessivamente – já na fonte, na própria formação do lucro na pessoa jurídica.

Também falaciosa a argumentação adotada pelas eternamente enlutadas viúvas da tributação bifásica – esse luto já dura 30 anos – no sentido de que o Simples e o lucro presumido provocam essa desoneração em decorrência da forma como são apurados. Ora, se é esse é o problema, que se ajustem as suas margens de tributação para níveis supostamente mais adequados, mas que não se destrua uma estrutura de tributação criada há décadas, que tantos males eliminou na tributação da renda no país.

De fato, como tantas vezes já se demonstrou, foram muitas e variadas as desvantagens decorrentes da adoção da tributação bifásica nos setenta anos em que predominou, tais como: a distribuição disfarçada de lucros (DDL), que tanto contencioso trouxe entre fisco e contribuintes nas décadas que antecederam à determinação de incidência concentrada do IR sobre formação do lucro, ainda na pessoa jurídica; a excessiva utilização da administração pública para a fiscalização dessas infrações; a complexidade na apuração das incidências pelo contribuinte e a consequente necessidade de adoção de estruturas voltadas a esse fim; e o denominado lock-in effect, consistente na trava na distribuição de lucros pelas empresas, com o objetivo de evitar a tributação, impedindo, assim, a diversificação da aplicação de recursos pelos investidores.

Todos esses efeitos malignos, contudo, não consolam aquelas viúvas da tributação bifásica. Ao longo das duas últimas décadas, projetos e projetos de lei são encaminhados ao Legislativo propondo a revogação da não incidência do imposto de renda sobre dividendos e o consequente retorno àquela malsucedida forma de tributação.

A totalidade desses projetos, contudo, foi arquivada. O mais recente deles, o PL 2.337/21, foi objeto de quatro manifestos subscritos por 207 instituições representativas de todos os setores da economia e de todas as regiões do país. Tivemos a oportunidade de entregá-los, todos, ao relator do projeto no Senado, senador Ângelo Coronel, e ele, de forma muito louvável e sensata, decidiu arquivá-lo.

Atualmente, temos uma nova tentativa por meio da apresentação do PL 1.087/25, que tramita na Câmara dos Deputados

A audiência realizada na Comissão Especial da Câmara dos Deputados

Na audiência de que participei na “Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre a Alteração da Legislação do Imposto de Renda”, tive a oportunidade de enaltecer todos os aspectos a que me referi acima, concentrando esforços em cinco deles, que me parecem essenciais:

(1) a necessidade de que as sociedades de pessoas sejam tratadas de forma a atender às suas especificidades;

(2) o risco de fuga de capitais do país tendo em vista a mudança abrupta e inadequada do tratamento a que os investidores estrangeiros passarão a estar submetidos;

(3) a necessidade de que sejam excluídos da nova forma de tributação os lucros formados em períodos anteriores àquele em que ela passará a vigorar;

(4) a necessidade de que relevantes benefícios fiscais – entre eles, o da Sudam e Sudene – sejam desconsiderados para fins de diminuição da alíquota efetiva, a fim de evitar que o ônus relativo ao valor do tributo dispensado de pagamento na pessoa jurídica seja indevidamente transferido aos seus sócios; e

(5) a necessidade de que a compensação à renúncia fiscal decorrente dos ajustes nas faixas iniciais de tributação da renda se dê por meio de corte de gastos pelo governo federal. Nesse sentido, destaca-se a excelente sugestão do ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, que propõe condicionar a eficácia das alterações na tabela do IR à sanção de lei, de iniciativa do Poder Executivo, que promova corte de despesas ou eliminação de benefícios fiscais em montante equivalente à perda de receita. Com isso, devolve-se ao Executivo a responsabilidade de compensar a renúncia fiscal pretendida, sem que ele possa, para tanto, recorrer a aumento ainda maior da carga tributária.

Após a minha apresentação, alguns deputados governistas presentes (defensores do projeto, portanto) fizeram uso da palavra para contestar, alguns de forma exaltada, diversos dos pontos que apresentei, em especial a advertência quanto ao risco de que o projeto provocaria fuga ou desencorajamento de investimentos estrangeiros.

Segundo eles, esse risco seria inexistente, tendo em vista que os tratados celebrados pelo Brasil, bem como as regras de reciprocidade estabelecidas na comunidade internacional, permitiriam que o valor do imposto pago ao País fosse compensado com o devido na jurisdição de domicílio do investidor.

Em seguida, foram-me formulados quatro questionamentos pelo deputado Arthur Lira, sendo que um deles também tinha por objeto o risco de evasão de investimentos provenientes do exterior, ao qual repliquei dizendo que, a mim, parecia óbvia a probabilidade de que isso ocorresse.

Afinal, que reação esperar de um investidor ao saber que o retorno do seu investimento, originalmente isento, passou a ser tributado na fonte à alíquota flat de 10%? Ao saber que cálculos mirabolantes terão de ser feitos para a verificação da necessidade do recolhimento de saldos devedores relacionados a cada uma das pessoas jurídicas investidas (cujas alíquotas efetivas terão de ser previamente averiguadas)? Ou, ainda, ao saber que, na hipótese de o valor retido ser maior do que o devido, ele passará a ser titular de um crédito contra a Fazenda de que nada lhe servirá?

Por outro lado, são absolutamente falaciosas as alegações dos deputados governistas presentes à audiência de que tratados e normas de reciprocidade – cujas regras determinam que o valor do imposto pago no Brasil será compensado com o imposto devido ao país de domicílio do investidor – seriam suficientes para evitar a dupla tributação desses rendimentos.

Quanto a isso, temos de ter em mente, em primeiro lugar, que há países com os quais o Brasil não tem tratado (Reino Unido e Estados Unidos são exemplos disso); em segundo lugar, que, mesmo que adotadas as regras de reciprocidade, o fato de a legislação brasileira prever hipóteses de devolução de valores pagos a maior (por meio daqueles créditos inúteis a que nos referimos acima) levará os países de domicílio do investidor a negar-lhe o crédito correspondente, sob o fundamento de que isso acarretaria enriquecimento ilícito da sua parte.

Diante de toda a troca de ideias ocorrida na Comissão Especial, entendemos que alguns aspectos do PL 1.087/25 precisavam ser reforçados junto ao relator e, por essa razão, solicitamos nova audiência ao gabinete do deputado Arthur Lira. Para essa reunião, convidamos também duas câmaras de comércio de países com os quais o Brasil não mantém tratados de dupla tributação, além de duas instituições cujos quadros incluem pessoas jurídicas com participações estrangeiras.

O objetivo foi demonstrar ao deputado relator do projeto que o risco de fuga de capital estrangeiro a que me referi na audiência da Comissão Especial é real e consistente.

Aproveitei a ocasião para também reforçar a necessidade de que as sociedades de pessoas recebam, nas novas regras, tratamento que atenda às suas especificidades.

De fato, como muito bem acentua a professora Misabel Derzi, há que se diferenciar a distribuição de dividendos, que remunera a aplicação de capital (investimentos em bolsa, mercado de capitais etc.), da distribuição de lucros de sociedades de pessoas, que remunera tão-somente o serviço prestado pelos seus sócios.

Trata-se de rendimentos de natureza diversa, cujo tratamento tem de ser diferenciado.

Tanto assim, que a legislação de diversos países do mundo desenvolvido (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, entre tantos outros) prevê a tributação de atividades profissionais (advocacia, contabilidade, consultoria etc.) por meio das já citadas partnerships, cujos lucros não são tributados na entidade, mas diretamente na pessoa dos sócios (pass-through), como receita ordinária e proporcional à sua participação.

Essa metodologia de tributação oferece tratamento mais adequado às sociedades de pessoas, evita a dupla tributação (na sociedade e no sócio) e já foi adotada no nosso ordenamento jurídico em bases bem semelhantes (Decreto-Lei 2.397/1987, artigos 1º e 2º).

Enfim, há muito a discutir-se, mas é inegável que o debate em torno do PL 1.087/25 deve ser conduzido com cautela, técnica e responsabilidade, afastando-se de discursos simplificadores que apenas reforçam antagonismos superficiais. O retorno à tributação bifásica dos lucros e dividendos, além de resgatar distorções superadas há décadas, ignora as especificidades de estruturas empresariais legítimas e a necessidade de segurança jurídica para investidores nacionais e estrangeiros. Mais do que nunca, o Brasil precisa de um sistema tributário que promova desenvolvimento, eficiência e justiça fiscal — e não de retrocessos travestidos de justiça social.

Autores

  • é presidente nacional do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados); presidente honorário da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro); vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro; ex-membro do Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA – 2017/18); membro do conselho de administração da Câmara Britânica (Britcham); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); membro do Caeft (Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação), da Associação Comercial de São Paulo; professor da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes (1993/2004); professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getulio Vargas – FGV; sócio fundador do escritório Brigagão, Duque Estrada — Advogados.

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