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Américas: esse outro desconhecido

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  • é advogada doutora em Direito professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

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25 de junho de 2025, 16h03

As instituições da democracia representativa atravessam um processo de desgaste crônico. A desconfiança em relação à capacidade dos sistemas democráticos de cumprirem suas promessas fundacionais é alimentada por disfunções institucionais persistentes — partidos políticos em declínio, desigualdade no acesso à deliberação pública, precarização das formas de escuta e participação.

Mesmo com eleições regulares, cresce a sensação de que os espaços institucionais não operam como canais autênticos de representação popular. A desconexão entre elites dirigentes e demandas sociais transforma o processo democrático em ritual esvaziado, marcado pelo cinismo e pela alienação. A ascensão do populismo, a judicialização da política e a crise de confiança são sintomas de um mal-estar mais profundo: a fratura entre soberania popular e legitimidade institucional.

Na América Latina, essa crise adquire contornos particulares. Nossos Estados foram fundados por pactos excludentes, escritos sem povo, voltados mais à contenção do que à emancipação. A promessa republicana foi frequentemente instrumento de dominação. Como advertiu Gargarella, a “sala de máquinas” do poder permanece intocada — mesmo quando os direitos se acumulam no plano simbólico, o núcleo decisório resiste à democratização [1].

Nesse cenário, as cortes constitucionais se tornaram tanto palco quanto espelho da crise democrática. Instituições desenhadas para moderar conflitos transformam-se, cada vez mais, em arenas de disputa ou blindagem. A crítica não se limita à sua composição elitista ou à seletividade de suas decisões, mas aponta para um esgotamento mais estrutural: a ausência de dispositivos consistentes de escuta, deliberação e responsabilização.

A hipótese aqui sustentada é que, para enfrentar essa erosão, é preciso incorporar mecanismos de deliberação pública permanentes, como múnus públicos constitucionais, que reintroduzam o dissenso social na formação das decisões estruturantes. Para tanto, observamos três experiências paradigmáticas do continente: México, Colômbia e Brasil [2].

México

No México, o Judiciário está no centro da disputa pela soberania popular. A proposta de eleição direta para a Suprema Corte, anunciada pela presidenta Claudia Sheinbaum como um “dia histórico”, busca romper com o elitismo judicial. Trata-se de um gesto radical: deslocar a legitimidade da magistratura do mérito técnico para o sufrágio universal, sob a promessa de aproximar o Judiciário do povo.

A simbologia é potente, mas os riscos são inegáveis. Gargarella interpreta essa proposta como uma inflexão plebiscitária que dissolve a separação entre governo e Constituição. O discurso da soberania popular, quando instrumentalizado por maiorias organizadas, pode abrir caminho para a erosão das garantias contramajoritárias [3]. Atienza reforça essa advertência: ao transformar juízes em candidatos, o projeto compromete a imparcialidade e reconfigura a justiça como clamor [4].

Damares Medina

A crise mexicana, nesse sentido, escancara uma tensão própria dos constitucionalismos latino-americanos: a compulsão por refundações. A cada frustração institucional, uma nova promessa constitucional é desenhada — sem que se consolidem mediações duráveis. O caso mexicano revela tanto o anseio legítimo por democratização quanto a fragilidade de fazê-lo sem âncoras normativas estáveis.

Colômbia

A Colômbia apresenta uma ambivalência distinta. Herdeira de uma das constituições mais inovadoras do continente — a Carta de 1991 — o país vive hoje o desafio de preservar seu projeto deliberativo diante do uso estratégico da participação popular. O governo propôs uma consulta direta mesmo após rejeição parlamentar, suscitando o debate: trata-se de ativação democrática legítima ou captura plebiscitária?

Jorge Ernesto Roa Roa vê nessa tensão o risco de converter mecanismos de escuta em ferramentas de imposição majoritária. A consulta, longe de ser apenas um instrumento de escuta, pode tornar-se palco de reafirmação de vontades já cristalizadas [5]. O desafio, portanto, é diferenciar uso e abuso, escuta e mobilização, deliberação e performance.

Ainda assim, a Colômbia permanece como horizonte normativo vital. Sua Constituição conserva dispositivos que podem sustentar uma reconfiguração plural da democracia. A dúvida, nesse caso, não é sinal de fraqueza, mas de vitalidade constitucional: a abertura à tensão é também condição de reinvenção.

Brasil

O Brasil materializa uma trajetória marcada não por rupturas formais, mas por um colapso simbólico e procedimental da jurisdição constitucional. Desde o julgamento do Mensalão, passando pela “lava jato” e culminando no 8 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal oscilou entre protagonismo e omissão, ativismo e retração. Essa alternância corroeu sua autoridade normativa e comprometeu sua função estabilizadora.

A corte, que deveria conter a exceção, tornou-se parte dela: ao legitimar práticas penais de exceção, ao silenciar diante de abusos e ao adaptar suas regras ao caso concreto, dissolveu qualquer âncora procedimental estável. A jurisdição penal originária, instável e volátil, tornou-se terreno fértil para arbitrariedades legitimadas em nome da conjuntura.

O episódio de 8 de janeiro não inaugura a crise: apenas escancara sua cronicidade. A destruição do STF não foi apenas física, mas simbólica. E a resposta institucional — ainda em curso — deve ir além da punição: é preciso reconstruir os fundamentos procedimentais da legitimidade democrática.

Conclusão

As Américas compartilham um destino de fraturas: constituições nascidas sob o signo da exclusão, promessas democráticas incompletas e instituições vulneráveis ao fechamento. No entanto, também compartilham uma pulsão vital por reinvenção. O México tenta reabsorver o Judiciário pela soberania popular; a Colômbia tensiona os limites da consulta; o Brasil tenta reconstruir sua autoridade institucional a partir do trauma.

Nesse campo de disputas, a pergunta permanece: como reimaginar a democracia constitucional sem repetir os vícios do centralismo, do elitismo e da normatividade abstrata? A resposta talvez não esteja na forma das Cortes, mas nos modos de escuta que conseguimos produzir.

Lembrar, ouvir, reconstituir: eis o gesto inaugural de todo pacto democrático. E talvez seja este, ainda, o único caminho possível para que as promessas constitucionais deixem de ser ficções performadas e se tornem compromissos vivos com a justiça e com a pluralidade.

 


[1] GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de constitucionalismo en América Latina (1810–2010). Buenos Aires: Katz, 2014.

[2] O presente texto é uma versão adaptada de uma pesquisa maior que será publicada brevemente como capítulo de um livro da autora que se encontra no prelo.

[3] GARGARELLA, Roberto. Democracia y constitucionalismo. Conferência apresentada no Encuentro Jurídico Universitario, promovido pelo Poder Judicial de la Federación (México), 2024. YouTube. Disponível em: https://youtu.be/OHmiHSKOB6g. Acesso em: 24 jun. 2025.

[4] ATIENZA, Manuel. El Estado de Derecho y la Reforma Judicial en México. Conferência apresentada no Encuentro Jurídico Universitario, organizada pela Suprema Corte de Justicia de la Nación e o Consejo de la Judicatura Federal, 2024. YouTube. Disponível em: https://youtu.be/OHmiHSKOB6g?si=OjhyOlPuNDGjX5qT. Acesso em: 24 jun. 2025.

[5] ROA ROA, Jorge Ernesto. La democracia y la consulta antideliberativa. El País – América Colombia, 24 maio 2024. Disponível em: https://elpais.com/america-colombia/2024-05-24/la-democracia-y-la-consulta-antideliberativa.html. Acesso em: 24 jun. 2025.

 

Autores

  • é advogada, professora doutora de Direito Constitucional com pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

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