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PNE: 11 anos do atual e sugestões ao projeto do novo plano educacional

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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24 de junho de 2025, 8h00

O Plano Nacional de Educação (PNE) vigente no Brasil ainda é o contido na Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. A despeito de haver sido inicialmente concebido para reger o decênio de 2014 a 2024, o alcance do atual PNE foi prorrogado até 31 de dezembro de 2025 pela Lei nº 14.934, de 25 de julho de 2024.

Daí se explica porque o plano decenal que orienta a política pública de educação em nosso país, na forma do artigo 214 da Constituição de 1988, completará 11 anos nesta quarta-feira ainda em pleno vigor. Tal prorrogação se revelou solução precária para remediar a falta de edição do novo PNE em tempo hábil e, sobretudo, para acomodar o elevado estágio de descumprimento das metas e estratégias inscritas na Lei 13.005/2014.

Há cerca de um ano, denunciei nesta coluna Contas à Vista tal contexto:

como tem sido muito fácil ignorar e descumprir os comandos do PNE 2014-2024, nunca foi necessário alterá-lo. Pelo mesmo motivo, agora tende a ser igualmente fácil prorrogá-lo nominalmente, sem que seja gerada maior celeuma ou polarização política. Não há conflito, porque, na prática, desde sempre tem sido negada uma efetiva aplicação ao PNE vigente,

[…] o núcleo do problema reside no desvio dos recursos educacionais para atender a finalidades outras que não aquelas identificadas como metas e estratégias do respectivo planejamento setorial, em afronta […] ao artigo 10 da Lei 13.005/2014.

O alto nível de descumprimento do PNE decorre, em grande medida, do fato de que muitos gestores passam despesas discricionárias à frente das obrigações de fazer fixadas no correspondente planejamento setorial. Tal inversão de prioridades compromete não só o alcance do planejado, mas também fragiliza o debate acerca da qualidade do gasto público em educação.

Diante do diagnóstico de fragilidade do atual plano educacional, seria prudente que houvesse, no mínimo, um consciente esforço de correção de rumos na federação brasileira, para tentar evitar que os erros incorridos no ciclo ainda em curso pudessem vir a se repetir no decênio subsequente, provavelmente 2026 a 2036.

Todavia, não tem sido esse o escopo primordial dos debates até aqui promovidos durante a tramitação do Projeto de Lei 2614/2024 (cujo inteiro teor está disponível aqui). A bem da verdade, o processo legislativo em torno do novo PNE se ressente tanto da ausência de regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE) e do Custo Aluno Qualidade (CAQ); quanto da falta de edição da Lei de Responsabilidade Educacional (LRE). Aludida omissão configura-se como afronta às obrigações a termo estabelecidas pelo artigo 13 e pelas estratégias 7.21, 20.6, 20.7, 20.8 e 20.11 do atual PNE e dá origem ao mal-estar federativo que não só empurra uns para os outros, como também todos empurram para adiante a responsabilidade de tirar do papel o planejamento setorial conforme as respectivas determinações constitucionais.

O Tribunal de Contas da União, em seu Acórdão 969/2024 – Plenário (disponível aqui), prolatado em 22/5/2024, sugeriu melhorias na elaboração do novo PNE, com destaque para a necessidade de claramente distribuir as responsabilidades federativas pelo cumprimento das metas, bem como para o imperativo de aprimoramento das fases de monitoramento e avaliação dos planos estaduais e municipais de educação:

“[…] 9.1.2. no processo de definição das metas do Novo Plano Nacional de Educação:

9.1.2.1. especifique a responsabilidade de cada ente no cumprimento de metas cuja responsabilidade pela execução possa ser atribuída a mais de um ente ou que possam suscitar dúvida quanto a tal ônus, de forma a respeitar as atribuições descritas na Constituição Federal/1988 e na Lei 9.394/1996 (LDB);

9.1.2.2. identifique os problemas a serem enfrentados por cada meta e evite a inserção de metas que tenham finalidades semelhantes;

9.1.2.3. elabore metas pautadas pela objetividade quanto aos conceitos e definições utilizados, sem deixar margem de dúvida quanto ao seu público-alvo; […]

9.1.4. no que se refere às fases de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais:

9.1.4.1. estabeleça diretrizes mínimas para as competências das instâncias de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais de educação no âmbito dos estados e municípios.

9.1.4.2. estabeleça uma padronização de conteúdo mínimo dos relatórios de monitoramento e de avaliação, com objetivos claros e distintos para ambas as fases, bem como um detalhamento dos procedimentos a serem seguidos; […]”

Nesse contexto, causa preocupação que o artigo 8º do PL 2614/2024 tenha remetido para regulamentação infralegal a governança, o monitoramento e a avaliação do PNE. Isso porque a falta do SNE e da LRE não pode ser colmatada apenas e tão somente pelo exercício de um volátil e frágil poder normativo do Ministério da Educação, ou mesmo por meio de atos dos chefes dos Poderes Executivos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, como dispõem o caput e o §3º do citado artigo 8º.

“Art. 8º Ato do Ministério da Educação disporá sobre a governança, o monitoramento e a avaliação do PNE, considerados:

I – o escopo, as competências, os critérios e os mecanismos para o monitoramento e a avaliação do PNE; e

II – as formas de participação da sociedade nos processos de monitoramento e de avaliação do PNE.

§1º As atividades de monitoramento e avaliação de que trata o caput serão realizadas com a participação, dentre outros:

I – do Ministério da Educação;

II – do Conselho Nacional de Educação – CNE;

III – da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados;

IV – da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal; e

V – do Fórum Nacional de Educação – FNE.

§2º A governança do PNE disporá de instância permanente de negociação, cooperação e pactuação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

§3º Atos dos Chefes dos Poderes Executivos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disporão sobre a governança, o monitoramento e a avaliação dos planos de educação, em consonância com o PNE.

§4º A governança de que trata o § 3º disporá de instâncias permanentes de negociação, cooperação e pactuação entre os Estados e os respectivos Municípios.”

O que se almeja é flexibilizar a estatura normativa da governança federativa da educação, contornando a necessidade do respectivo Sistema Nacional. Não há, porém, suficiente segurança jurídica acerca desse arranjo tão potencialmente instável, sobretudo porque faltam garantias de que haverá adequada distribuição de responsabilidades e de recursos que as suportem.

Spacca

Semelhante impasse se sucede com a remessa feita no artigo 10 do PL 2614 para que ato do Ministro da pasta disponha sobre a composição e o funcionamento do Fórum Nacional de Educação, como instância consultiva de controle social, competente para acompanhar a execução e o cumprimento das metas do PNE e promover a articulação das Conferências Nacionais de Educação com as conferências estaduais, distrital e municipais que as precederem.

Quanto ao financiamento, os artigos 14 e 16 do projeto de lei do novo PNE repercutem – direta ou indiretamente – as normas constitucionais de regência, mas não conseguem avançar, a partir do vazio deixado pela ausência do CAQ. É longa e persistente, aliás, a trajetória de omissão a respeito da falta de regulamentação do padrão mínimo de qualidade e dos seus correspondentes insumos para fins de dever de custeio suficiente na política pública de educação brasileira. A constitucionalização do CAQ no §7º do artigo 211 da CF, feita pela Emenda do Fundeb Permanente (EC 108/2020), foi um esforço de tentar tirar do papel o artigo 4º, IX da LDB (Lei 9.394/1996) e as estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 da Lei 13.005/2014.

Mas mesmo a exigência constitucional acerca da regulamentação do custo aluno qualidade tem sido descumprida e tal omissão normativa acaba por franquear a ocorrência de desvios consideráveis na aplicação dos recursos vinculados à educação, a pretexto de divergência hermenêutica sobre gastos elegíveis, ou não, no cômputo do piso em manutenção e desenvolvimento do ensino e do Fundeb.

Na contramão da necessidade de maior financiamento e melhor gestão, como Jhonatan Almada e esta articulista escrevemos, o governo federal tem aventado propostas de pura e simples redução da complementação que a União é obrigada constitucionalmente a verter ao Fundeb, bem como de revisão do piso educacional.

Sugestões

A esse respeito é sintomática a tentativa de reduzir os recursos federais destinados à educação básica obrigatória por meio do alargamento indevido do conceito do que seja manutenção e desenvolvimento do ensino. Aqui, em especial, é oportuno resgatar a denúncia que Lucas Sachsida e eu fizemos acerca do risco de desvio de recursos do piso educacional e do Fundeb empreendido pela Medida Provisória nº 1.303/2025, mediante a concessão de incentivos financeiros e de bolsas de estudos em escolas privadas.

Fato é que a causa do mal-estar do financiamento da política pública de educação persiste sem resolução, haja vista a falta de regulamentação do CAQ. Daí se explica porque os artigos 14 e 16 e meta 18 do projeto de lei do novo PNE (PL 2614/2024) também tendem a ser descumpridos, tanto quanto o foram o artigo 10 e as estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 da Lei nº 13.005/2014 (atual PNE).

Para evitar a reprodução desse círculo vicioso, sugerimos, desde já, que o PL 2.614/2024 seja emendado para inserir um parágrafo único no artigo 16, que dialogue com o artigo 59, §1º, inciso V da Lei de Responsabilidade Fiscal, expressamente permitindo que os Tribunais de Contas emitam alertas quanto à tempestividade e ao estágio de cumprimento do PNE, no exame diuturno das leis orçamentárias e das respectivas execuções, em termos de aplicação dos recursos vinculados à educação. Tal emenda reforçaria objetiva e concretamente o nível de aderência das leis orçamentárias em relação ao planejamento educacional e resguardaria, em especial, o cumprimento das estratégias 18.10 e 18.13 do novo PNE:

“Estratégia 18.10. Alinhar a legislação orçamentária (Plano Plurianual – PPA, Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA) às disposições dos planos nacional e subnacionais de educação. […]

Estratégia 18.13. Aprimorar o controle interno, externo e social do uso dos recursos públicos da educação.”

Noutro giro, configura-se como retrocesso inadmissível a “Meta 1.c”, que dá prazo adicional de três anos (contado a partir da entrada em vigor do novo PNE), para que seja cumprido o dever de universalização da pré-escola em prol das crianças de 4 e 5 anos de idade, para além do prazo máximo anteriormente fixado pelo artigo 6º da Emenda Constitucional 59/2009, o qual já havia se esgotado em 31/12/2016. Ou seja, se aprovada tal meta do novo PNE, será prorrogada inconstitucionalmente para o final de 2029 a universalização da pré-escola que deveria ter ocorrido até o final de 2016. Aludido adiamento burla o dever de oferta regular de ensino da educação básica obrigatória e tende a anistiar o correlato crime de responsabilidade, de que trata o artigo 208, §2º da CF/1988.

Retrocesso análogo se sucede com a “Meta 16.d” do novo PNE, quando comparada com a estratégia 18.1 do atual PNE. A “Meta 16.d” do PL 2614/2024 reduz de 90% para 70% a proporção de profissionais do magistério que devem ter vínculo estável, por meio de concurso público, em cada rede pública de ensino, para fins de cumprimento do artigo 206, inciso V, da Constituição Federal. Trata-se de flexibilização que franqueia a precarização da contratação de profissionais docentes e acomoda a tendência de muitas redes de ensino absorverem, volumosa e indevidamente, professores por meio de contratações temporárias e outros vínculos controversos, como pagamento por RPA, cargos comissionados etc.

Por fim, mas não menos importante, sugerimos que os educandos que estejam em situação de rua sejam inseridos, formal e expressamente, em todas as oportunidades em que forem arroladas as hipóteses de vulnerabilidade socioeconômica para fins de priorização de acesso e garantia de permanência na escola, a exemplo do que se sucede com as Estratégias 6.5, 10.4, 10.9, 10.10, 11.7 e 11.8. Trata-se de medida que visa resguardar a consonância do novo PNE com as determinações do Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 976, que tem debatido o estado de coisas inconstitucional na política nacional para a população em situação de rua.

Sabemos que diversos outros aspectos poderiam ser ainda suscitados, mas não temos aqui pretensão de exaustividade. O que nos mobilizou neste artigo foi tão somente o esforço de promover uma leitura preliminar de natureza criticamente construtiva em torno do PL 2614/2024 neste 11º aniversário do ainda vigente PNE (Lei nº 13.005/2014).

Afinal, interessa-nos republicanamente que o novo plano educacional supere os gargalos do atual e, sobretudo, que ele tenha melhores chances de mudar a realidade da educação brasileira no próximo decênio.

 

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