Participação social no processo legislativo na jurisprudência do TJ-SP e do STF
24 de junho de 2025, 8h00
Há um debate corrente no Direito brasileiro sobre a densidade normativa do princípio constitucional da participação social no processo legislativo, em especial na formulação de políticas públicas. Como já destacamos em outro trabalho, há “um princípio constitucional para a participação social na legislação: um mandamento prima facie para a participação social no processo legislativo”, derivado de diversos dispositivos constitucionais para além dos mecanismos previstos no artigo 14 da Constituição e, também, que as constituições estaduais e leis orgânicas municipais têm sido utilizadas para ampliar a participação social no processo legislativo, com destaque a para a Constituição do Estado de São Paulo e a jurisprudência de seu Tribunal de Justiça [1].
O presente artigo analisa um julgado recente do TJ-SP proferido em ação direta de inconstitucionalidade (2303717-10.2023.8.26.0000) [2] e o julgamento do respectivo recurso extraordinário pelo STF (RE 1.531.909) [3], em que essa questão foi debatida. Como será apontado, ainda há espaço para uma maior reflexão sobre a natureza constitucional do princípio da participação social entendido como um requisito de validade do processo legislativo, cuja legitimidade procedimental não pode ser relativizada em nome dos objetivos substantivos de uma política pública.
Na ADI movida pelo procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, objetiva-se a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 17.819, de 29 de junho de 2022, do município de São Paulo (“Lei Municipal”), que instituiu o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, o Auxílio Reencontro, a Vila Reencontro, além de criar o Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo (Faasp). O objetivo central dessas políticas é enfrentar a insegurança alimentar, promover saúde e qualidade de vida, especialmente para a população economicamente vulnerável do município.
Entre outros argumentos, pretendia-se a declaração da inconstitucionalidade formal da lei municipal impugnada pelo fato de não ter havido participação social durante o respectivo processo legislativo, em violação aos artigos 144 e 232 [4] da Constituição do Estado, bem como dos artigos 29 e 204, II [5], da Constituição Federal. Isso porque não houve realização de audiências públicas ou utilização de outros mecanismos formalizados de participação social da sociedade em geral, como os afetados pelas políticas públicas em debate, autoridades públicas, atores privados e academia.
O TJ-SP julgou a ação procedente. No que se refere ao ponto em questão, registrou que não houve controvérsia em relação à falta de participação social no processo legislativo. Dessa feita, a Relatora, citando os mencionados dispositivos da Constituição do Estado e os artigos 193 e 204, II, da Constituição Federal, apontou que “A participação popular na elaboração de políticas públicas na área de assistência social é, como se vê, nos termos da Constituição, obrigatória, pelo que não pode ser flexibilizada, pesem os nobres objetivos do legislador com a edição da lei em questão. (…) O fato de o projeto de lei ter sido amplamente discutido por vereadores eleitos em pleito democrático, que representam o povo de São Paulo, do mesmo modo, não retira a inconstitucionalidade da lei. Com efeito, o artigo 204, II, da Constituição Federal, prevê hipótese de exercício de democracia direta, não representativa (…)” [6]. Tendo em vista os impactos positivos da Lei Municipal, houve modulação de seus efeitos por 18 meses a partir da data de julgamento.
Em face de tal decisão, o prefeito e o presidente da Câmara Municipal de São Paulo interpuseram recursos extraordinários. O STF, por decisão unânime, deu provimento aos recursos para reformar a decisão do TJ-SP e declarar a constitucionalidade da lei municipal. No que interessa ao presente artigo, houve um único parágrafo da decisão que tocou a questão da falta de participação social durante o processo legislativo da lei: “De outro, não se sustenta o argumento do acórdão recorrido de que a ausência de participação popular macula de vício formal a lei contestada. Ora, a norma visa conferir efetividade a direitos sociais na área de saúde da população mais vulnerável, pois é voltada a segurança alimentar e nutricional da população de baixa renda” [7].
Em face de tais decisões, cumpre fazer três observações
A primeira é a respeito do parâmetro de controle de constitucionalidade da Lei Municipal. Como registrado pelo TJ-SP, há normas da Constituição do Estado de São Paulo que tratam do tema da participação social na formulação de políticas públicas. Considerando-se a longa vigência de tais normas e a jurisprudência da Corte Estadual, deveria ter sido avaliado se são normas autônomas e não apenas reprodução das normas da Constituição. Em caso positivo, seguindo a jurisprudência do STF, os recursos extraordinários, neste ponto, não deveriam ser conhecidos, pois há parâmetro de controle de constitucionalidade estadual autônomo em face da Constituição [8].

A segunda observação diz respeito à densidade normativa do princípio da participação social no processo legislativo previsto na Constituição. Há diversos dispositivos constitucionais que apontam para a existência desse princípio, entre eles: soberania popular (artigo 1º, inciso I, e artigo 14, caput), direito de acesso à informação (artigo 5º, incisos XIV e XXXIII), direito de petição (artigo 5º, XXXIV), possibilidade de realização de audiências públicas com entidades da sociedade civil (artigo 58, § 2º, inciso II), direito de qualquer pessoa exigir providências perante o Poder Legislativo (artigo 58, § 2º, inciso IV), formas específicas de participação social em alguns desses ambientes mediante iniciativa legislativa popular, plebiscito e referendo (artigo 1º, parágrafo único, e artigo 14, caput) e participação nas atividades do poder público em determinados setores sociais (artigo 10, artigo 18, §§ 3º e 4º, artigo 37, § 3º, artigo 74, § 2º, artigo 187, artigo 194, inciso VII, artigo 198, inciso III, artigo 204, inciso II – este citado na decisão do TJ-SP – , artigo 206, inciso VI, artigo 216-A, caput e § 1º, inciso X, e artigo 227, § 7º). Mais recentemente foi acrescentado o parágrafo único ao artigo 193 da Constituição Federal: “O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas” [9].
Também o STF tem reconhecido a existência desse princípio em algumas de suas decisões [10]. Dessa forma, deveria ter sido feita uma análise mais minuciosa de qual é a projeção de eficácia do princípio constitucional da participação social no processo legislativo no caso concreto, especialmente tendo em vista tratar-se de uma política social de grande relevância para a proteção de direitos fundamentais como o direito à alimentação, previsto no artigo 6º da Constituição. Dentre outros elementos do caso concreto, deveriam ter sido avaliadas a amplitude e inovação das políticas públicas criadas, o potencial de impacto sobre seus destinatários e sobre o setor público, bem como o grau de concretização ou restrição a direitos fundamentais para, então, avaliar-se o grau de exigência de participação social efetiva no respectivo processo legislativo.
A terceira observação diz respeito às breves considerações relativas ao fato de que a política em questão visa justamente proteger a população mais vulnerável – o que poderia afastar eventual consideração de vício formal de constitucionalidade por falta de participação social. Neste ponto, deve-se diferenciar com clareza o plano da validade (inconstitucionalidade) do plano da eficácia das normas impugnadas [11].
A eventual violação do princípio constitucional da participação social no processo legislativo está no plano da validade constitucional, ou seja, trata-se de vício formal que torna a norma violadora inconstitucional. Considerações sobre a avaliação positiva ou negativa dos efeitos da norma formalmente inconstitucional e da possível desconstituição de seus efeitos ex tunc devem ser considerados em momento de modulação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade, ou seja, no plano da eficácia. Isso permite claramente diferenciar o exame de constitucionalidade do exame da manutenção ou não dos efeitos da norma jurídica inconstitucional, com ganhos de clareza e segurança jurídica.
Em conclusão, deve-se refletir sobre o significado constitucional da participação social na elaboração de leis. Uma abordagem estruturada, sensível à natureza da política pública, à sua inovação institucional, às pessoas afetadas e à respectiva esfera de competência legislativa promoveria maior segurança jurídica, responsividade e legitimidade democrática. Isso é particularmente importante em um contexto em que direitos sociais são protegidos constitucionalmente, mas os procedimentos para sua formulação não recebem a devida significância constitucional em nome da eficiência ou de uma intenção benevolente. A participação social, no entanto, não é mera formalidade, mas uma condição de validade constitucional.
[1] Tímea Drinóczi e Victor Marcel Pinheiro, “The normative potential of the principle of public participation in Brazil: an example from the São Paulo Court of Justice”, in Bernardo Gonçalves Fernandes, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira and Maurício Sullivan Balhe Guedes, eds, A Constituição e o Passado. A Constituição e o Futuro. A Constituição e o que não Veio – Em Homenagem aos 35 anos da Constituição Brasileira de 1988, D’plácido, 2023, p. 545-561.
[2] TJ/SP, Órgão Especial, ADI 2303717-10.2023.8.26.0000, Rel. Des. Silvia Rocha, j. 19/06/2024.
[3] STF, Pleno, ARE-AgR 1.531.909, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 17/03/2025.
[4] Constituição do Estado de São Paulo: “Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
“Artigo 232 – As ações do Poder Público, por meio de programas e projetos na área de promoção social, serão organizadas, elaboradas, executadas e acompanhadas com base nos seguintes princípios:
I – participação da comunidade; (…)”
[5] Constituição Federal: “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (…)”
“Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
(…)
II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. (…)”
[6] TJ/SP, Órgão Especial, ADI 2303717-10.2023.8.26.0000, Rel. Des. Silvia Rocha, j. 19/06/2024, p. 33.
[7] STF, Pleno, ARE-AgR 1.531.909, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 17/03/2025, p. 17.
[8] Ver, por exemplo, RE-AgR 1.156.016, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 06/05/2019.
[9] Victor Marcel Pinheiro, “Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira”, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2024, p. 132-3.
[10] Por exemplo, ADI-MC 6.121, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13/06/2019, e ADPF 622. Rel. Min. Roberto Barroso, j. 26/02/2021.
[11] Victor Marcel Pinheiro, “Uma proposta de compreensão da modulação de efeitos das decisões da jurisdição constitucional”, Revista Publicum 4 (2018), pp. 153-180.
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