Os limites de atuação do Ministério Público e das autoridades coatoras nos Habeas Corpus de cannabis
24 de junho de 2025, 7h03
Nas ações de Habeas Corpus de cultivo de cannabis, é comum que autoridades coatoras se manifestem sobre o mérito da ação de HC. Ainda que usual, essa conduta está longe de permear pela ótica da legalidade. Cada vez mais, o poder de polícia usurpa a competência a que é destinada e se manifesta de forma ilegal à medida que excede a função fiscalizatória destinada. O embate, portanto, está justamente entre o alcance e o limite da função que lhe é atribuída.

A breve título de contextualização, as autoridades coatoras representam as instituições que representam uma ameaça direta a liberdade de locomoção do paciente. Pretende-se ao elencar o rol exaustivo, delimitar as autoridades que possam de alguma maneira oferecer um perigo a liberdade daquele que cultiva cannabis com fins medicinais e, com isso, dar à essas autoridades, ciência de que o paciente encontra respaldo jurídico para o cultivo de sua própria medicina, obstaculizando uma possível apreensão indevida.
Badaró (2024) [1] explica que nas ações de Habeas Corpus, o legitimado passivo é a própria autoridade coatora. No âmbito da Justiça Estadual, elenca-se a Polícia Militar (Brigada Militar do Rio Grande do Sul), Polícia Civil e Guarda Civil Municipal, enquanto que, no âmbito da Justiça Federal, elenca-se também a Polícia Federal. O papel da fiscalização policial, ou seja, das autoridades coatoras, centram-se ou deveriam pautar-se, sobretudo pela verificação de fatos que desabonem a conduta do impetrante. Porém, o que ocorre é a manifestação dessas autoridades sobre o mérito das ações de HC.
Além de ilegal, poderia se pensar uma analogia com um caso criminal de uma flagrante ilegalidade face um ato de um juiz de primeiro grau em que, na ação de HC, figuraria o juiz como autoridade coatora. Agora, pensemos que nesse Habeas Corpus no Tribunal de Justiça em segundo grau, essa mesma autoridade coatora pudesse se manifestar sobre o mérito da ação, discorrendo, por exemplo, de motivos pelos quais o habeas corpus não deveria ser provido. A contradição é evidente e não demanda maiores explicações para o entendimento de que essa prática cria um desequilíbrio processual inaceitável.
Primeiro, porque a polícia enquanto autoridade coatora, não é parte no processo, representando tão somente uma função fiscalizatória, podendo informar, por exemplo, sobre algum procedimento investigativo em curso. Admitir o contrário, seria ferir princípios processuais elementares, visto que incumbe ao Ministério Público a função de fiscalização da lei e que aqui não representa também a função de parte no processo.
Por outro lado, cabe questionar qual seria a função do MP nessas ações. Para Pacelli e Costa (2022) [2], a função do Ministério Público nesses casos é tão somente de atuar como custos legis, ou seja, atuando como fiscal da ordem jurídica, e não como parte adversarial. Dito de outra forma, a inexistência de relação processual se reflete pelo fato de que figura como parte tão somente o impetrante do habeas corpus, de modo que a função ministerial se restringe a fiscalização da lei.

No Habeas Corpus n° 202.522/RN [3], relator: ministro Dias Toffoli, DJe: 4/12/2023, a 2° Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu que “na ação constitucional do Habeas Corpus, a legitimidade ativa é formada pelo impetrante e pelo paciente e a legitimidade passiva pela autoridade coatora”, afirmando ainda que “o Ministério Público não é parte, cabendo ao órgão ministerial atuar como custos legis perante a autoridade judiciária competente”.
Nesse sentido, a relação bipartite existe entre parte-paciente e autoridade estatal que pratica a ilegalidade, sendo essa a única relação possível na ação mandamental, de modo que qualquer interesse alheio, como o acusatório do parquet, configura objeto alheio, em evidente contradição a finalidade pretendida [4].
Perpetuação de preconceitos
O segundo ponto de desequilíbrio consiste e se direciona ao magistrado que analisa a demanda. Ao analisar o pedido de Habeas Corpus preventivo, o juiz se encontra diante de vários vieses. Isto é, analisa-se o pleito da defesa, o parecer do Ministério Público como fiscal da lei, ao passo que também se analisa os pareceres das autoridades coatoras, o que aqui representa um grande equívoco. Essa manifestação extrapola e cria uma percepção subjetiva no âmbito do magistrado, um induzimento que, por vezes, se mostra apresentado de forma desconexa com a demanda, pois, é comum a presença de elementos dissociados com o objeto versado, seja com manifestações contra o uso da cannabis, ou simplesmente com resoluções desatualizadas que não dizem respeito ao objeto em questão.
Para além de violar garantias processuais fundamentais, essas práticas também contribuem para a perpetuação de estigmas e preconceitos em torno da cannabis medicinal, desviando o foco principal de proteção à saúde para a manutenção de um aparato repressivo desnecessário.
Assim, é imprescindível reafirmar os limites legais da atuação de cada agente público. O Ministério Público deve manter sua posição de custos legis, jamais atuar como parte, da mesma forma que as autoridades coatoras devem se restringir a fornecer informações objetivas, nunca opiniões sobre o mérito da causa.
O rigor legal se dá pela imparcialidade e a efetividade do Habeas Corpus depende da observância destes papéis institucionais, especialmente para a preservação do direito à saúde e da dignidade de pacientes que buscam o reconhecimento de que suas condutas são atípicas no âmbito do Poder Judiciário.
[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. 7ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil. 2024.
[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; COSTA, Domingos Barroso da. O Habeas Corpus e o MP nos tribunais superiores: dupla face institucional?. Consultor Jurídico. 2022. Disponível aqui
[3] STF, AgR no AgR no HC nº 202.522/RN, rel. min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe: 4/12/2023
[4] Aguiar, Pedro Bahdur de; Dias, Débora Perez; Simantob, Fábio Tofic, 2024. Ilegitimidade recursal do Ministério Público estadual em HC nas cortes superiores. Consultor Jurídico, 2024. Disponível aqui
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