Novo relatório do Banco Mundial: quebra de paradigmas na transferência imobiliária
24 de junho de 2025, 13h18
Após alguns anos de espera para que o Banco Mundial retomasse a divulgação de estudos sobre o ambiente jurídico-econômico em 180 países do mundo, a edição do novo Relatório Business Ready (B-Ready) 2024, lançada em substituição ao antigo Doing Business, trouxe revelações que, se não surpreendem a comunidade jurídica especializada, derrubam paradigmas tidos como “verdades absolutas” que o tempo mostrou nem serem verdades, muito menos absolutas.

O estudo, que apresenta nova metodologia há muito cobrada do Banco Mundial, incorpora temas antes relativizados, como segurança e clareza jurídica, assim como eficiência das transferências imobiliárias, ganhando respaldo empírico ao avaliar com transparência tópicos como qualidade do marco regulatório, dos serviços públicos e eficiência operacional, oferecendo dados concretos que permitem comparar, de forma objetiva, os resultados obtidos por países que adotam o modelo de notariado existente no Brasil, do tipo latino, e aqueles que operam sob modelos alternativos, como os países que adotam o modelo do direito consuetudinário, ou “common law”.
A iniciativa do Banco Mundial, concebida para coletar e analisar dados sobre o ambiente de negócios e investimentos em nível global, busca em sua essência fornecer ferramentas para que entes públicos e privados possam analisar investimentos, estimular a criação de empregos e melhorar a produtividade de forma inclusiva e sustentável. A versão inicial do relatório, lançada originalmente em 2003 e encerrada em 2019, subsidiou durante anos políticas públicas e distribuição de capitais, embora sua metodologia fosse há muito questionada, bem como a seleção de respondentes e seu entendimento enviesado.
Metodologia mais abrangente
A nova versão do relatório, agora batizado Business Ready (B-Ready), foi reformulada incorporando uma nova metodologia mais abrangente, técnica e qualitativa para avaliar o ambiente jurídico-econômico dos países, corrigindo distorções anteriores e valorizando aspectos estruturais dos ambientes regulatórios. Desta forma, o foco quase exclusivo em métricas quantitativas do antigo relatório foi equalizado, adotando-se a observação de tópicos como marco regulatório, serviços públicos e eficiência operacional, considerando temas como segurança jurídica e transparência nos negócios.
No tópico específico referente à transferência de propriedades agora se considera a existência de mecanismos jurídicos de proteção de terceiros, como publicidade registral e continuidade dominial, que antes passavam ao largo das metrificações. Da mesma forma, procedimentos aos quais antes eram atribuídos um dia para sua realização, mesmo que vários deles fossem realizados simultaneamente, passaram a ser computados de forma real, eliminando distorções que penalizam sistemas com várias etapas formais, mas que possuíam prazos consideravelmente mais curtos.
Transferência de propriedades
Foi então que o jogo começou a virar no quesito transferência de propriedades. Entre os dez temas do relatório — mesmo número de quesitos do anterior, mas agora reformulados —, encontra-se o de “Business Location” (Local do Negócio), que abrange os processos de compra e venda de imóveis e está diretamente ligado à facilitação de negócios imobiliários, que encontra assento em uma subcategoria intitulada “Property Transfer” (Transferência de Propriedade). Observado em detalhes, os resultados apresentados neste tópico mudam completamente o cenário vigente até então.

O tópico está estruturado em três pilares: Qualidade do Marco Regulatório (Pilar I), Qualidade dos Serviços Públicos (Pilar II) e Eficiência Operacional (Pilar III). Neste contexto, os países que possuem sistemas notariais em funcionamento já consolidado — como é o caso do Brasil —, apresentaram, nos três pilares avaliados, desempenho superior à média dos demais países nos quais vigoram outros modelos jurídicos.
No primeiro pilar, que examina a qualidade do marco regulatório, evidenciou-se o papel fundamental do notariado na estruturação de leis claras, previsíveis e protetivas do direito de propriedade. Os países com sistemas notariais, em média, alcançaram 73 pontos nessa dimensão, superando os 66 pontos obtidos por países que não adotam o modelo do notariado latino. Essa diferença se explica pela atuação técnica e imparcial dos notários, que não apenas conferem legalidade aos atos, mas também asseguram a higidez formal e material dos contratos, prevenindo litígios e consolidando um ambiente de negócios confiável.
No segundo pilar, que mede a qualidade dos serviços públicos envolvidos na transferência de propriedade, o desempenho dos países com sistemas notariais já em funcionamento foi ainda mais expressivo: uma média de 68 pontos, frente aos 60 dos demais. Esse resultado demonstra que a presença de notários estruturados sob controle público e dotados de fé pública contribui para uma maior transparência e acessibilidade dos procedimentos, inclusive no meio digital. A atuação do notariado, especialmente com o avanço dos serviços eletrônicos e da interoperabilidade com plataformas reguladas nacionalmente, tem permitido uma prestação de serviços mais ágil, clara e auditável, aproximando o cidadão da administração da justiça sem renunciar à segurança.
O terceiro pilar, que trata da eficiência operacional — ou seja, do tempo, custo e número de procedimentos para concluir uma transferência imobiliária —, reforça a efetividade do modelo notarial. A média avaliada no estudo foi 75 entre os países com notariado latino implantado, contra apenas 68 nos demais. Dados que deixam claro que, ao contrário do senso comum, a atuação do notário não gera burocracia, mas sim racionalização procedimental. A análise prévia de legalidade feita pelos notários permite reduzir o retrabalho, os indeferimentos administrativos e os litígios judiciais futuros, liberando o sistema judicial para resolução de conflitos mais complexos e especializados.
Modelo notarial brasileiro
Na análise detalhada dos dados brutos, é possível observar que, nos países onde vigora modelo notarial semelhante ao brasileiro, verifica-se um menor tempo médio de tramitação, menor número de procedimentos e menor custo proporcional para a transferência imobiliária em relação a outros sistemas jurídicos, em particular ao anglo-saxão. Em média, os países com notariado implantado levam até 24 dias para realizar a completa transferência de propriedade, cobram — em média — até 2,5% do valor do imóvel e realizam a transferência em até quatro procedimentos. Já nos países sem este modelo em vigência se demora em média 38 dias para transferência de um imóvel, cobra-se — em média — 4,1% do valor da transação e se exigem um total de até seis procedimentos.
Importa destacar que o relatório do Banco Mundial, ao avaliar especificamente a subcategoria “Property Transfer“, não distingue sistemas apenas pela titularidade formal do serviço, mas pelos efeitos práticos que ele produz no ambiente de negócios. Assim, os países que possuem modelos de notariado do tipo latino não se destacam apenas porque operam com notários, mas porque estes profissionais exercem uma função pública qualificada e indispensável ao equilíbrio entre liberdade contratual e proteção jurídica.
Mais do que números, o relatório demonstra que a presença de um sistema notarial fortalecido confere maior qualidade institucional aos processos de transferência imobiliária. O notário atua como garantidor da legalidade, imparcialidade e transparência, prevenindo litígios, protegendo terceiros e assegurando a função social da propriedade. Esses aspectos são especialmente relevantes em economias emergentes, onde a confiança institucional é determinante para a segurança dos investimentos.
Análise francesa
Em recente artigo publicado na Revista La Semaine Juridique — Notariale et Immobilière, os notários franceses Marie-Florence Zampiero Bouquemont e Frédéric Varin, assim como o também notário e economista italiano Antonio Cappiello aprofundam essa análise ao mostrar que 88% dos países com sistemas notariais existentes ficaram acima da média no índice geral de “Business Location”, sendo que 63% deles estiveram no quartil superior. Além disso, em 85% dos subindicadores, os países com notariado latino tiveram desempenho superior àqueles vinculados aos demais modelos. Esses dados, ainda que qualitativos, reforçam que o sistema notarial não apenas assegura direitos, mas contribui diretamente para a melhoria do ambiente de negócios.
Essa constatação se alinha à própria evolução normativa brasileira. Desde a Constituição de 1988, que consolidou o caráter público e exercício privado por delegação aos serviços notariais e registrais, até leis mais recentes como a 11.441/2007, a 13.105/2015 e a 14.711/2023, o Brasil tem reconhecido a capacidade do notariado para atuar como vetor de extrajudicialização, eficiência administrativa e pacificação social. O modelo de notariado latino, ao contrário de ser uma relíquia do passado, é uma resposta moderna às exigências da sociedade contemporânea: acessível, responsável e tecnicamente qualificado.
O novo relatório do Banco Mundial corrobora essa visão ao demonstrar que os países que apostam em um modelo notarial fortalecido e vinculado ao Estado, colhem os frutos de um sistema mais confiável, célere e menos oneroso para o cidadão. A experiência internacional mostra que transferências imobiliárias sob responsabilidade de um tabelião reduzem não apenas o tempo de tramitação, mas os riscos de nulidade, fraudes e litígios, representando verdadeira economia sistêmica para o Estado e para os indivíduos.
Conclusão
Em tempos de inovação digital, é legítimo buscar soluções tecnológicas para otimizar processos. No entanto, essas inovações devem se somar, e não substituir, os filtros de legalidade e segurança que o notariado representa. A tecnologia, sem o controle de um terceiro imparcial e juridicamente responsável, pode ampliar a insegurança jurídica e comprometer a própria confiança nos negócios. A lição extraída do relatório do Banco Mundial é clara: onde há notários, há mais segurança, mais eficiência e menos custos.
Visto sob todos estes aspectos parece claro que o modelo notarial do tipo latino, há mais de 460 anos garantindo as relações jurídicas no Brasil, atende não somente aos interesses do mercado imobiliário por menor custo, prazo e burocracia, mas também valoriza o papel do tabelião na segurança jurídica das relações pessoais e patrimoniais, na proteção daqueles com menor poder econômico e no aconselhamento imparcial que possibilita o equilíbrio nas relações comerciais.
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