Opinião

Neuromarketing: mente humana como campo de experimentação comercial

Autores

  • é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

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  • é pesquisador no Legal Grounds Institute advogado e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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  • é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) coordenador do Legal Grounds Institute e advogado.

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24 de junho de 2025, 6h36

A crescente convergência entre os avanços da neurociência, inteligência artificial (IA) e tecnologias da informação e comunicação tem catalisado o surgimento de um novo domínio instrumental no campo do mercado: o neuromarketing, também denominado neurociência do consumidor. Em linhas gerais, trata-se de uma aplicação extraclínica das neurotecnologias, voltada à coleta e análise das respostas neurais, fisiológicas e comportamentais dos indivíduos diante de estímulos mercadológicos, com o objetivo de compreender e influenciar seus processos decisórios de maneira mais eficiente e, por vezes, imperceptível aos próprios sujeitos [1].

Rawpixel/Freepik

A premissa fundante do neuromarketing repousa sobre o reconhecimento, corroborado por evidências empíricas das neurociências, de que boa parte das decisões humanas — inclusive as de consumo — não resulta de um processo racional linear, mas sim de dinâmicas mentais inconscientes, as quais poderiam ser acessadas, decodificadas e exploradas por meio de instrumentos técnicos que monitoram a atividade do sistema nervoso central e periférico [2].

Nesse sentido, ao lado de métodos clínicos clássicos como o eletroencefalograma (EEG) e a ressonância magnética funcional (fMRI), amplia-se o escopo de investigação com tecnologias complementares, tais como o rastreamento ocular (eye tracking), a codificação facial (facial coding), a medição da atividade eletrodérmica (EDA), sensores de variabilidade da frequência cardíaca, além de tecnologias vestíveis que monitoram temperatura da pele, microexpressões e respostas motoras involuntárias [3].

Mais do que um mero repertório instrumental, o neuromarketing representa uma mudança epistemológica radical: a transição de um modelo declarativo — baseado em self-report, entrevistas e grupos focais — para um paradigma empírico-cognitivo, sustentado na coleta massiva de dados biométricos e na sua análise automatizada por sistemas algorítmicos de aprendizado de máquina.

Essa virada metodológica permitiu aos profissionais de marketing acessar camadas emocionais e motivacionais que permanecem invisíveis à introspecção consciente [4]. Tal transformação ganha nova densidade com a incorporação de ambientes de realidade estendida — extended reality (XR) , que integram realidade aumentada, virtual e mista, permitindo que neurotecnologias sejam utilizadas em tempo real durante experiências imersivas.

Nesses contextos, dados neurofisiológicos podem ser correlacionados com a interação dos usuários em ambientes tridimensionais, o que não apenas viabiliza a identificação de estados mentais transitórios — como atenção, excitação, prazer ou aversão —, mas também permite a inferência de processos mentais complexos, como preferências latentes, padrões de impulsividade, heurísticas afetivas e crenças implícitas [5].

Persuasão legítima e manipulação neural

Nesse cenário, a inteligência artificial desempenha papel catalisador, ao permitir a integração analítica de grandes volumes de dados neurais, fisiológicos e comportamentais por meio de sistemas baseados em deep learning. Esses sistemas são capazes não apenas de organizar e correlacionar variáveis observáveis, mas também de gerar inferências preditivas sobre intenções futuras, vulnerabilidades emocionais e estados decisórios inconscientes, que podem ser explorados para personalização de ofertas, ajustes em tempo real de campanhas publicitárias e indução sutil de comportamentos desejados [6].

Configura-se, assim, a passagem de um marketing reativo — baseado na resposta ao comportamento manifesto — para um marketing preemptivo, fundado na antecipação automatizada de reações inconscientes dos consumidores. O neuromarketing deixa, assim, de apenas descrever o comportamento humano e passa a intervir diretamente na construção dos próprios impulsos que orientam decisões de compra, instrumentalizando a mente humana como campo de experimentação comercial [7].

As implicações jurídicas e éticas desse processo são significativas. O uso de neurotecnologias no domínio mercadológico coloca em xeque paradigmas clássicos do direito à privacidade, ao consentimento informado e à autodeterminação informacional. Ao operar com dados mentais que o próprio titular desconhece ou não compreende, essas tecnologias introduzem um deslocamento do locus de controle da vontade, minando as bases normativas que sustentam a legitimidade da atuação persuasiva no mercado [8]. Isso porque o neuromarketing opera em um espaço liminar entre a persuasão legítima e a manipulação neural indireta, por meio da exploração de lacunas cognitivas e heurísticas inconscientes, com impactos diretos sobre a autonomia decisória [9]. Tal dinâmica se torna ainda mais preocupante quando aplicada a públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes, cujas capacidades de discernimento e resistência à influência são reduzidas, o que impõe especial atenção regulatória [10].

Desafio da regulação

Nessa perspectiva, a emergência dos chamados neurodireitos representa um marco inovador na evolução dos direitos fundamentais contemporâneos. Trata-se, em apertada síntese, de um esforço normativo e ético que visa garantir a proteção da integridade mental, da autonomia cognitiva e da privacidade cerebral dos indivíduos diante do avanço de neurotecnologias cada vez mais invasivas, capazes não apenas de acessar e monitorar, mas também de inferir, modular e manipular estados e processos mentais profundos [11].

A formulação conceitual dos neurodireitos adquire especial relevância diante do cenário apontado, em que a neurotecnologia e a IA preditiva vêm sendo aplicadas em contextos extraclínicos, produzindo impactos diretos sobre o livre arbítrio, a identidade pessoal, a autodeterminação informativa e a justa distribuição de capacidades mentais [12]. A proposta mais sistematizada e conhecida de positivação dos neurodireitos foi apresentada pela Fundación Neurorights, liderada pelo neurocientista Rafael Yuste, e apoiada por um grupo interdisciplinar de especialistas. O projeto propõe a consagração de cinco novos direitos fundamentais: (1) privacidade mental, (2) identidade pessoal, (3) livre arbítrio, (4) acesso equitativo ao aprimoramento cognitivo e (5) proteção contra vieses algorítmicos [13].

Spacca

Apesar de sua força propositiva, os neurodireitos não são consensuais. Parte da literatura crítica adverte para o risco de uma inflação normativa desnecessária, sustentando que os direitos propostos poderiam ser abarcados pelo sistema atual de direitos humanos, desde que adequadamente interpretado à luz dos desafios tecnológicos emergentes [14].

Tal visão sugere que, ao invés de criar direitos, deveríamos reforçar as garantias já existentes contra interferências indevidas sobre a mente humana. A posição mais prudente, contudo, reconhece que mesmo os direitos fundamentais tradicionais, como o direito à intimidade, à liberdade de pensamento e à integridade psíquica, requerem adaptações substanciais para lidar com formas inéditas de intrusão cognitiva, muitas das quais operam em níveis inconscientes ou imperceptíveis.

A regulação dos neurodireitos desponta, assim, como um dos desafios mais sofisticados e urgentes do direito contemporâneo, especialmente no contexto de sua aplicação a usos extraclínicos de neurotecnologias, como ocorre no neuromarketing. O uso comercial de técnicas voltadas à extração e análise de dados neurais, com vistas à inferência preditiva de estados mentais e emocionais, desloca os riscos antes circunscritos à bioética clínica para o âmago das liberdades civis, dos direitos da personalidade e da proteção de dados pessoais sensíveis [15], fazendo com o que o verdadeiro desafio esteja na construção de critérios jurídicos capazes de responder às especificidades das tecnologias “leitoras”,  “descritoras” e moduladoras [16] do cérebro, e não meramente na expansão retórica do catálogo de direitos [17].

Isso porque, na realidade, o neuromarketing desafia o direito em múltiplas frentes. Ao empregar tecnologias como fMRI, EEG, rastreamento ocular, reconhecimento facial, EDA e algoritmos de inteligência artificial, estas práticas não apenas operam com dados mentais altamente sensíveis, mas frequentemente extrapolam os limites da privacidade mental, da autodeterminação informacional e do consentimento válido [18]. Outra questão é a capacidade de inferência preditiva dessas tecnologias, que permitem identificar emoções, tendências de comportamento, crenças implícitas e vulnerabilidades emocionais que escapam ao controle consciente do sujeito, pois se trata de uma forma de manipulação neural indireta, que, embora não configure coerção no sentido clássico, pode erosionar o livre arbítrio e a autonomia decisória, sobretudo ao explorar heurísticas inconscientes e vieses afetivos do consumidor [19].

Diante dessa nova realidade, cresce, no cenário internacional, o movimento por uma regulação específica dos usos não clínicos das neurotecnologias. O exemplo mais emblemático é o do Chile, que em 2021 inseriu na sua Constituição o reconhecimento da atividade cerebral como inviolável e dos dados neurais como dignos de proteção especial. Desde então, o país avança em propostas legislativas que visam disciplinar o uso de neurodados, regular práticas de intervenção cognitiva sem consentimento e estabelecer salvaguardas éticas contra manipulações subliminares [20].

Ainda no Chile, a Corte Suprema reconheceu a necessidade de proteção aos neurodireitos, em decisão que condenou empresa que comercializava BCIs [21]. Para além da iniciativa chilena, instâncias multilaterais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Conselho da Europa, têm reconhecido a necessidade de instrumentos jurídicos internacionais específicos para regular neurotecnologias e salvaguardar os direitos mentais dos indivíduos [22].

No Brasil, embora o debate ainda seja incipiente, há espaço para certo desenvolvimento normativo com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da intimidade, da liberdade de consciência (artigo 5º, X e VI, CF), além do reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental (artigo 5º, LXXIX, CF). Ainda, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) representa um avanço importante ao estabelecer garantias para o tratamento de dados sensíveis, categoria na qual os dados neurais poderiam ser incluídos por interpretação extensiva (artigo 5º, II e §2º).

Todavia, a LGPD não prevê de forma expressa os dados neurais ou neurodados, tampouco contempla a complexidade técnica e hermenêutica das inferências mentais derivadas de padrões cerebrais, o que pode comprometer sua eficácia frente às especificidades do neuromarketing, sobretudo em contextos de imersão sensorial e cognitiva, como os ambientes de realidade estendida.

Diante da assimetria informacional entre usuários e corporações, bem como da sofisticação técnica dessas tecnologias, autores têm defendido criação de um marco normativo transversal, que combine elementos do direito à proteção de dados pessoais, da tutela da personalidade, do direito do consumidor e da neuroética aplicada [23]. Tal marco poderia articular princípios como não maleficência cognitiva, autonomia decisional, equidade tecnológica e justiça cognitiva, reconhecendo a integridade mental como bem jurídico autônomo e passível de proteção reforçada frente às ameaças contemporâneas.

Fato é que a intensificação do uso de neurotecnologias por plataformas digitais, anunciantes e provedores de XR seguramente exigirá do Estado brasileiro a adoção de novos mecanismos de controle, como accountability algorítmica, auditoria de inferências e garantias contra manipulação preditiva [24]. O campo do neuromarketing, por sua penetração transetorial e seu poder de modulação comportamental, poderá se tornar um laboratório jurídico e regulatório privilegiado. A regulação desse setor exigirá normas específicas sobre neurodados, bem como a estruturação de órgãos fiscalizadores, mecanismos de responsabilização e diretrizes de boas práticas, incluindo modelos robustos de consentimento, avaliação de impacto algorítmico e limites claros à personalização psicoemocional de conteúdos [25].

O desafio que se impõe, portanto, é assegurar que o avanço das neurotecnologias ocorra sem comprometer valores essenciais, como a autonomia individual e a integridade mental, reconhecendo que a inovação deverá caminhar lado a lado com a proteção efetiva dos direitos fundamentais.

 


[1] MORIN, Christophe. Neuromarketing: The new science of consumer behavior. Society, v. 48, p. 131–135, 2011.

[2] RAMSOY, Thomas Z. Introduction to Neuromarketing & Consumer Neuroscience. Neurons Inc., 2015.

[3] ALSHARIF, Ahmed H. et al. Neuromarketing tools used in the marketing mix: A systematic literature and future research agenda. SAGE Open, v. 13, n. 1, 2023.

[4] MORIN, Christophe. Op. cit.

[5] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Neurotecnologias e neurodireitos: A tutela jurídica da mente humana. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, v. 10, n. 2, 2025.

[6] CHERUBINO, Paola et al. Consumer behaviour through the eyes of neurophysiological measures: State-of-the-art and future trends. Computational Intelligence and Neuroscience, v. 2019, Article ID 1976847.

[7] STANTON, Steven J.; STAHL, David. Neuromarketing: Ethical implications of its use and potential misuse. Journal of Business Ethics, v. 105, n. 2, 2012.

[8] SOUZA, Carlos A.; LEMOS, Ronaldo. A privacidade da mente na era da IA. In: Frazão, Ana (org.). Inteligência Artificial e Direito. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.

[9] SAMPAIO, José Adércio L.; FURBINO, Meire. Proteção da Mente: Neurodireitos na Era do Neuromarketing. Revista da Escola Judicial do TRT da 3ª Região, v. 12, 2024.

[10] BICKART, Barbara A. et al. Children, Adolescents, and Neuromarketing: Ethical Issues. In: Handbook of Research on Digital Media and Advertising. IGI Global, 2010.

[11] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Op. cit.

[12] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Mind the Gap: Lessons Learned from Neurorights. Science & Diplomacy, 28 fev. 2022.

[13] YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, v. 551, n. 7679, 2017.

[14] GILBERT, Frederic; RUSSO, Ingrid. Neurorights: The Land of Speculative Ethics and Alarming Claims? AJOB Neuroscience, v. 15, n. 2, 2024.

[15] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Neurotecnologias e neurodireitos: a tutela jurídica da mente humana. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, v. 10, n. 2, p. 16–39, 2025.

[16] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, v. 13, n. 1, p. 1–27, 2017

[17] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Op. cit.

[18] CHERUBINO, Paola et al. Op. cit.

[19] SAMPAIO, José Adércio L.; FURBINO, Meire. Op. cit.

[20] SILVA, Nathalie W.; AGUILERA, Joaquín R. Neuroderechos: un intento de protección jurídica a las personas frente al uso de neurotecnologías. Revista de Direito Sanitário, v. 23, n. 1, e0014, 2023.

[21] CORNEJO-PLAZA, M. I.; CIPPITANI, R.; PASQUINO, V. Chilean supreme court ruling on the protection of brain activity: neurorights, personal data protection, and neurodata. Frontiers in Psychology, v. 15, 2024.

[22] OECD. Recommendation on Responsible Innovation in Neurotechnology. Paris: OECD Publishing, 2019.

[23] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Op. cit.

[24] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Op. cit.

[25] STANTON, Steven J.; STAHL, David. Neuromarketing and its Implications for Regulation and Ethics. Journal of Business Ethics, v. 105, 2012.

Autores

  • é docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität, especialista em regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório, ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022), membro da Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil brasileiro, coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Legal Grounds Institute. Advogado, consultor jurídico e parecerista.

  • é advogado e consultor, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da International Neuroethcis Society. Fundador do Neurorights Brasil.

  • é doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), mestre em Direito e Inovação e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador no Legal Fronts Institute e Pesquisador do Núcelo Legalité da PUC-Rio e advogado.

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