Neuromarketing: mente humana como campo de experimentação comercial
24 de junho de 2025, 6h36
A crescente convergência entre os avanços da neurociência, inteligência artificial (IA) e tecnologias da informação e comunicação tem catalisado o surgimento de um novo domínio instrumental no campo do mercado: o neuromarketing, também denominado neurociência do consumidor. Em linhas gerais, trata-se de uma aplicação extraclínica das neurotecnologias, voltada à coleta e análise das respostas neurais, fisiológicas e comportamentais dos indivíduos diante de estímulos mercadológicos, com o objetivo de compreender e influenciar seus processos decisórios de maneira mais eficiente e, por vezes, imperceptível aos próprios sujeitos [1].

A premissa fundante do neuromarketing repousa sobre o reconhecimento, corroborado por evidências empíricas das neurociências, de que boa parte das decisões humanas — inclusive as de consumo — não resulta de um processo racional linear, mas sim de dinâmicas mentais inconscientes, as quais poderiam ser acessadas, decodificadas e exploradas por meio de instrumentos técnicos que monitoram a atividade do sistema nervoso central e periférico [2].
Nesse sentido, ao lado de métodos clínicos clássicos como o eletroencefalograma (EEG) e a ressonância magnética funcional (fMRI), amplia-se o escopo de investigação com tecnologias complementares, tais como o rastreamento ocular (eye tracking), a codificação facial (facial coding), a medição da atividade eletrodérmica (EDA), sensores de variabilidade da frequência cardíaca, além de tecnologias vestíveis que monitoram temperatura da pele, microexpressões e respostas motoras involuntárias [3].
Mais do que um mero repertório instrumental, o neuromarketing representa uma mudança epistemológica radical: a transição de um modelo declarativo — baseado em self-report, entrevistas e grupos focais — para um paradigma empírico-cognitivo, sustentado na coleta massiva de dados biométricos e na sua análise automatizada por sistemas algorítmicos de aprendizado de máquina.
Essa virada metodológica permitiu aos profissionais de marketing acessar camadas emocionais e motivacionais que permanecem invisíveis à introspecção consciente [4]. Tal transformação ganha nova densidade com a incorporação de ambientes de realidade estendida — extended reality (XR) —, que integram realidade aumentada, virtual e mista, permitindo que neurotecnologias sejam utilizadas em tempo real durante experiências imersivas.
Nesses contextos, dados neurofisiológicos podem ser correlacionados com a interação dos usuários em ambientes tridimensionais, o que não apenas viabiliza a identificação de estados mentais transitórios — como atenção, excitação, prazer ou aversão —, mas também permite a inferência de processos mentais complexos, como preferências latentes, padrões de impulsividade, heurísticas afetivas e crenças implícitas [5].
Persuasão legítima e manipulação neural
Nesse cenário, a inteligência artificial desempenha papel catalisador, ao permitir a integração analítica de grandes volumes de dados neurais, fisiológicos e comportamentais por meio de sistemas baseados em deep learning. Esses sistemas são capazes não apenas de organizar e correlacionar variáveis observáveis, mas também de gerar inferências preditivas sobre intenções futuras, vulnerabilidades emocionais e estados decisórios inconscientes, que podem ser explorados para personalização de ofertas, ajustes em tempo real de campanhas publicitárias e indução sutil de comportamentos desejados [6].
Configura-se, assim, a passagem de um marketing reativo — baseado na resposta ao comportamento manifesto — para um marketing preemptivo, fundado na antecipação automatizada de reações inconscientes dos consumidores. O neuromarketing deixa, assim, de apenas descrever o comportamento humano e passa a intervir diretamente na construção dos próprios impulsos que orientam decisões de compra, instrumentalizando a mente humana como campo de experimentação comercial [7].
As implicações jurídicas e éticas desse processo são significativas. O uso de neurotecnologias no domínio mercadológico coloca em xeque paradigmas clássicos do direito à privacidade, ao consentimento informado e à autodeterminação informacional. Ao operar com dados mentais que o próprio titular desconhece ou não compreende, essas tecnologias introduzem um deslocamento do locus de controle da vontade, minando as bases normativas que sustentam a legitimidade da atuação persuasiva no mercado [8]. Isso porque o neuromarketing opera em um espaço liminar entre a persuasão legítima e a manipulação neural indireta, por meio da exploração de lacunas cognitivas e heurísticas inconscientes, com impactos diretos sobre a autonomia decisória [9]. Tal dinâmica se torna ainda mais preocupante quando aplicada a públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes, cujas capacidades de discernimento e resistência à influência são reduzidas, o que impõe especial atenção regulatória [10].
Desafio da regulação
Nessa perspectiva, a emergência dos chamados neurodireitos representa um marco inovador na evolução dos direitos fundamentais contemporâneos. Trata-se, em apertada síntese, de um esforço normativo e ético que visa garantir a proteção da integridade mental, da autonomia cognitiva e da privacidade cerebral dos indivíduos diante do avanço de neurotecnologias cada vez mais invasivas, capazes não apenas de acessar e monitorar, mas também de inferir, modular e manipular estados e processos mentais profundos [11].
A formulação conceitual dos neurodireitos adquire especial relevância diante do cenário apontado, em que a neurotecnologia e a IA preditiva vêm sendo aplicadas em contextos extraclínicos, produzindo impactos diretos sobre o livre arbítrio, a identidade pessoal, a autodeterminação informativa e a justa distribuição de capacidades mentais [12]. A proposta mais sistematizada e conhecida de positivação dos neurodireitos foi apresentada pela Fundación Neurorights, liderada pelo neurocientista Rafael Yuste, e apoiada por um grupo interdisciplinar de especialistas. O projeto propõe a consagração de cinco novos direitos fundamentais: (1) privacidade mental, (2) identidade pessoal, (3) livre arbítrio, (4) acesso equitativo ao aprimoramento cognitivo e (5) proteção contra vieses algorítmicos [13].

Apesar de sua força propositiva, os neurodireitos não são consensuais. Parte da literatura crítica adverte para o risco de uma inflação normativa desnecessária, sustentando que os direitos propostos poderiam ser abarcados pelo sistema atual de direitos humanos, desde que adequadamente interpretado à luz dos desafios tecnológicos emergentes [14].
Tal visão sugere que, ao invés de criar direitos, deveríamos reforçar as garantias já existentes contra interferências indevidas sobre a mente humana. A posição mais prudente, contudo, reconhece que mesmo os direitos fundamentais tradicionais, como o direito à intimidade, à liberdade de pensamento e à integridade psíquica, requerem adaptações substanciais para lidar com formas inéditas de intrusão cognitiva, muitas das quais operam em níveis inconscientes ou imperceptíveis.
A regulação dos neurodireitos desponta, assim, como um dos desafios mais sofisticados e urgentes do direito contemporâneo, especialmente no contexto de sua aplicação a usos extraclínicos de neurotecnologias, como ocorre no neuromarketing. O uso comercial de técnicas voltadas à extração e análise de dados neurais, com vistas à inferência preditiva de estados mentais e emocionais, desloca os riscos antes circunscritos à bioética clínica para o âmago das liberdades civis, dos direitos da personalidade e da proteção de dados pessoais sensíveis [15], fazendo com o que o verdadeiro desafio esteja na construção de critérios jurídicos capazes de responder às especificidades das tecnologias “leitoras”, “descritoras” e moduladoras [16] do cérebro, e não meramente na expansão retórica do catálogo de direitos [17].
Isso porque, na realidade, o neuromarketing desafia o direito em múltiplas frentes. Ao empregar tecnologias como fMRI, EEG, rastreamento ocular, reconhecimento facial, EDA e algoritmos de inteligência artificial, estas práticas não apenas operam com dados mentais altamente sensíveis, mas frequentemente extrapolam os limites da privacidade mental, da autodeterminação informacional e do consentimento válido [18]. Outra questão é a capacidade de inferência preditiva dessas tecnologias, que permitem identificar emoções, tendências de comportamento, crenças implícitas e vulnerabilidades emocionais que escapam ao controle consciente do sujeito, pois se trata de uma forma de manipulação neural indireta, que, embora não configure coerção no sentido clássico, pode erosionar o livre arbítrio e a autonomia decisória, sobretudo ao explorar heurísticas inconscientes e vieses afetivos do consumidor [19].
Diante dessa nova realidade, cresce, no cenário internacional, o movimento por uma regulação específica dos usos não clínicos das neurotecnologias. O exemplo mais emblemático é o do Chile, que em 2021 inseriu na sua Constituição o reconhecimento da atividade cerebral como inviolável e dos dados neurais como dignos de proteção especial. Desde então, o país avança em propostas legislativas que visam disciplinar o uso de neurodados, regular práticas de intervenção cognitiva sem consentimento e estabelecer salvaguardas éticas contra manipulações subliminares [20].
Ainda no Chile, a Corte Suprema reconheceu a necessidade de proteção aos neurodireitos, em decisão que condenou empresa que comercializava BCIs [21]. Para além da iniciativa chilena, instâncias multilaterais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Conselho da Europa, têm reconhecido a necessidade de instrumentos jurídicos internacionais específicos para regular neurotecnologias e salvaguardar os direitos mentais dos indivíduos [22].
No Brasil, embora o debate ainda seja incipiente, há espaço para certo desenvolvimento normativo com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da intimidade, da liberdade de consciência (artigo 5º, X e VI, CF), além do reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental (artigo 5º, LXXIX, CF). Ainda, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) representa um avanço importante ao estabelecer garantias para o tratamento de dados sensíveis, categoria na qual os dados neurais poderiam ser incluídos por interpretação extensiva (artigo 5º, II e §2º).
Todavia, a LGPD não prevê de forma expressa os dados neurais ou neurodados, tampouco contempla a complexidade técnica e hermenêutica das inferências mentais derivadas de padrões cerebrais, o que pode comprometer sua eficácia frente às especificidades do neuromarketing, sobretudo em contextos de imersão sensorial e cognitiva, como os ambientes de realidade estendida.
Diante da assimetria informacional entre usuários e corporações, bem como da sofisticação técnica dessas tecnologias, autores têm defendido criação de um marco normativo transversal, que combine elementos do direito à proteção de dados pessoais, da tutela da personalidade, do direito do consumidor e da neuroética aplicada [23]. Tal marco poderia articular princípios como não maleficência cognitiva, autonomia decisional, equidade tecnológica e justiça cognitiva, reconhecendo a integridade mental como bem jurídico autônomo e passível de proteção reforçada frente às ameaças contemporâneas.
Fato é que a intensificação do uso de neurotecnologias por plataformas digitais, anunciantes e provedores de XR seguramente exigirá do Estado brasileiro a adoção de novos mecanismos de controle, como accountability algorítmica, auditoria de inferências e garantias contra manipulação preditiva [24]. O campo do neuromarketing, por sua penetração transetorial e seu poder de modulação comportamental, poderá se tornar um laboratório jurídico e regulatório privilegiado. A regulação desse setor exigirá normas específicas sobre neurodados, bem como a estruturação de órgãos fiscalizadores, mecanismos de responsabilização e diretrizes de boas práticas, incluindo modelos robustos de consentimento, avaliação de impacto algorítmico e limites claros à personalização psicoemocional de conteúdos [25].
O desafio que se impõe, portanto, é assegurar que o avanço das neurotecnologias ocorra sem comprometer valores essenciais, como a autonomia individual e a integridade mental, reconhecendo que a inovação deverá caminhar lado a lado com a proteção efetiva dos direitos fundamentais.
[1] MORIN, Christophe. Neuromarketing: The new science of consumer behavior. Society, v. 48, p. 131–135, 2011.
[2] RAMSOY, Thomas Z. Introduction to Neuromarketing & Consumer Neuroscience. Neurons Inc., 2015.
[3] ALSHARIF, Ahmed H. et al. Neuromarketing tools used in the marketing mix: A systematic literature and future research agenda. SAGE Open, v. 13, n. 1, 2023.
[4] MORIN, Christophe. Op. cit.
[5] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Neurotecnologias e neurodireitos: A tutela jurídica da mente humana. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, v. 10, n. 2, 2025.
[6] CHERUBINO, Paola et al. Consumer behaviour through the eyes of neurophysiological measures: State-of-the-art and future trends. Computational Intelligence and Neuroscience, v. 2019, Article ID 1976847.
[7] STANTON, Steven J.; STAHL, David. Neuromarketing: Ethical implications of its use and potential misuse. Journal of Business Ethics, v. 105, n. 2, 2012.
[8] SOUZA, Carlos A.; LEMOS, Ronaldo. A privacidade da mente na era da IA. In: Frazão, Ana (org.). Inteligência Artificial e Direito. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
[9] SAMPAIO, José Adércio L.; FURBINO, Meire. Proteção da Mente: Neurodireitos na Era do Neuromarketing. Revista da Escola Judicial do TRT da 3ª Região, v. 12, 2024.
[10] BICKART, Barbara A. et al. Children, Adolescents, and Neuromarketing: Ethical Issues. In: Handbook of Research on Digital Media and Advertising. IGI Global, 2010.
[11] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Op. cit.
[12] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Mind the Gap: Lessons Learned from Neurorights. Science & Diplomacy, 28 fev. 2022.
[13] YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, v. 551, n. 7679, 2017.
[14] GILBERT, Frederic; RUSSO, Ingrid. Neurorights: The Land of Speculative Ethics and Alarming Claims? AJOB Neuroscience, v. 15, n. 2, 2024.
[15] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Neurotecnologias e neurodireitos: a tutela jurídica da mente humana. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, v. 10, n. 2, p. 16–39, 2025.
[16] IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, v. 13, n. 1, p. 1–27, 2017
[17] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Op. cit.
[18] CHERUBINO, Paola et al. Op. cit.
[19] SAMPAIO, José Adércio L.; FURBINO, Meire. Op. cit.
[20] SILVA, Nathalie W.; AGUILERA, Joaquín R. Neuroderechos: un intento de protección jurídica a las personas frente al uso de neurotecnologías. Revista de Direito Sanitário, v. 23, n. 1, e0014, 2023.
[21] CORNEJO-PLAZA, M. I.; CIPPITANI, R.; PASQUINO, V. Chilean supreme court ruling on the protection of brain activity: neurorights, personal data protection, and neurodata. Frontiers in Psychology, v. 15, 2024.
[22] OECD. Recommendation on Responsible Innovation in Neurotechnology. Paris: OECD Publishing, 2019.
[23] FERREIRA, Versalhes E. N. et al. Op. cit.
[24] ROMMELFANGER, Karen S. et al. Op. cit.
[25] STANTON, Steven J.; STAHL, David. Neuromarketing and its Implications for Regulation and Ethics. Journal of Business Ethics, v. 105, 2012.
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