é doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e advogada sócia do RMMG Advogados.
No final do século 18, os irmãos Montgolfier desenvolveram o primeiro balão inflado com ar quente tripulado, que decolou de Paris no dia 21 de novembro de 1783, [1] marcando o início da era da aviação e impulsionando a regulamentação do espaço aéreo e de regras para sobrevoo. [2] Atualmente, embora a prática de voo em balões livres tripulados tenha se tornado corriqueira tanto para fins profissionais quanto amadores, a queda de um balão com mais de 30 pessoas em uma área rural de Capela do Alto (SP), no dia 15 de junho de 2025, [3] e de outro balão com 21 tripulantes na cidade de Praia Grande (SC), apenas seis dias depois, [4] totalizando nove óbitos nos dois acidentes, evidencia a necessidade premente de uma regulamentação robusta e específica para os passeios turísticos com balões no Brasil.
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Segundo a Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), o balonismo pode ser realizado de forma profissional ou amadora. O balonismo profissional está sujeito às regras previstas no Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) nº 91, sendo necessária, para a sua prática, o certificado de aeronavegabilidade válido, a Licença de Piloto de Balão Livre Válida (PBL) e a matrícula do balão no Registro Aeronáutico Brasileiro. Por seu turno, o balonismo puramente desportivo ou amador está sujeito às regras previstas no RBAC nº 103, exigindo-se apenas os cadastros do desportista, que deve ser maior de 18 anos, e do balão, ambos realizados por associação desportiva credenciada pela Anac, tal qual ocorre com veículos ultraleves motorizados. [5] Não há, portanto, necessidade de habilitação de piloto ou de certificado de aeronavegabilidade emitidos pela Agência Reguladora (item 103.7(a) da RBAC nº 103).
Esporte aéreo por conta e risco dos envolvidos
O artigo 15, §1º, do Código Brasileiro de Aeronáutica, ao mencionar que a prática de esportes aéreos deve ser realizada em áreas delimitadas pela autoridade aeronáutica, estabelece que o balonismo é um exemplo de esporte aéreo. Nessa mesma linha, o relatório diagnóstico do Ministério do Turismo sobre regulamentação, normalização e certificação em turismo de aventura elenca o balonismo como uma modalidade de turismo de aventura, isto é, uma atividade oferecida comercialmente que possui caráter recreativo, adaptada de atividades esportivas de aventura, envolvendo riscos avaliados, controlados e assumidos. [6]
Da mesma forma, em que pese a essencialidade de apresentação de PBL pelo operador e de registro de matrícula do balão nos casos de balonismo comercial à luz do RBAC nº 91, a Anac recentemente afirmou que o balonismo é uma atividade desportiva de alto risco, levando a crer que se submete às normas preconizadas no RBAC nº 103 [7], bem como que os voos são feitos “por conta e risco dos envolvidos”. [8] Diante do risco que lhe é inerente, segundo estabelece o item 103.11(e) do mencionado regulamento, antes de outas pessoas embarcarem no balão, o operador tem o dever de informar que a atividade é de alto risco e que ele (o operador), assim como o balão, “não dispõem de qualquer qualificação técnica emitida pela Anac, não havendo, portanto, qualquer garantia de segurança”. [9]
Outrossim, consoante salienta o diretor-executivo da Associação Brasileira de Empresas de Turismo e Aventura, Luiz Del Vigna, os passeios de balão para fins puramente recreativos não são reconhecidos pela Anac como uma atividade de transporte, razão pela qual a agência reguladora não tem como garantir que os prestadores desses passeios estejam operando dentro de quaisquer regras, já que elas, em realidade, não existem. [10]
Empresas devem zelar pela incolumidade dos tripulantes
De fato, ainda que o passeio de balão não se enquadre no conceito de contrato de transporte previsto no artigo 730 do Código Civil, já que não há propriamente um transporte de pessoas ou objetos para um determinado destino — o voo parte de um local previamente delimitado pela autoridade aeronáutica e retorna para este mesmo local —, entende-se que as empresas que prestam serviços de balonismo para fins turísticos, tal qual os transportadores, têm o dever de zelar pela incolumidade dos seus tripulantes durante todo o deslocamento. [11]
Isso porque, ao disponibilizarem esse serviço no mercado de consumo mediante contraprestação pecuniária, criam a legítima expectativa nos seus potenciais consumidores de que possuem a expertise necessária para realizar tal atividade de maneira segura, razão pela qual eventual informação, no momento do embarque, quanto à ausência de qualquer garantia de segurança por parte do operador ou do próprio balão, não tem o condão de, por si só, afastar a responsabilidade pela reparação de eventuais danos decorrentes de falhas na prestação do serviço.
Em se tratando de relação típica de consumo, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que disciplina normas de ordem pública e interesse social (artigo 1º), é plenamente aplicável aos passeios turísticos com balões, mormente porque evidente a assimetria fática, técnica e informacional entre o operador do serviço e do consumidor, dado o alto risco da atividade, como ressalta a própria Anac. Outrossim, não se pode olvidar que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é princípio basilar da Política Nacional das Relações de Consumo (artigo 4º, I), além do fundamento para a existência de um código voltado para tutelar este sujeito de direitos específico em todas as suas relações.
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Padrões de segurança devem estar checados
Dessa forma, com fulcro no artigo 6º, inciso I, o qual preconiza ser direito básico do consumidor a proteção da vida, da saúde e da segurança contra riscos provocados por serviços considerados perigosos, é dever do prestador de serviços de passeios turísticos de balão garantir a segurança e integridade física dos tripulantes independentemente de alertá-los sobre os riscos do voo, mormente porque é vedada a disponibilização de serviços perigosos à saúde ou segurança dos consumidores sem as devidas cautelas (artigos 8ª e 9º).
Ou seja, o operador tem de checar o balão e todos os seus componentes antes de iniciar o voo, estabelecendo padrões de segurança operacional em todas as suas viagens para evitar a ocorrência de danos. De todo modo, caso o serviço cause danos aos passageiros, tem o operador o dever de repará-los, independentemente da existência de culpa (artigo 14), de maneira integral (artigo 6º, VI), uma vez que o fundamento da responsabilidade civil nas relações de consumo é o risco proveito: o fornecedor, em virtude da vantagem pecuniária auferida pela atividade que desenvolve (o bônus), tem o dever de reparar todos os danos que ela causar (o ônus). [12]
Cumpre destacar, no mais, que os passeios turísticos realizados por balões se submetem à Lei Geral do Turismo, sendo certo que um dos objetivos da Política Nacional de Turismo é “estabelecer padrões e normas de qualidade, de eficiência e de segurança na prestação de serviços turísticos” (artigo 5º, XVII). Além disso, constitui dever dos prestadores de serviços turísticos manter estrita obediência aos direitos do consumidor (artigo 34, IV), em constante e verdadeiro diálogo com o Código do Consumidor, de modo a acrescentar direitos ao sujeito vulnerável da relação de consumo e assegurar sua tutela integral (artigo 7º, caput, do CDC).
Apesar de as normas preconizadas no CDC e da Lei Geral do Turismo assegurarem de maneira eficaz a necessária segurança dos consumidores em serviços turísticos e a reparação dos danos eventualmente sofridos, considerando que a RBAC nº 103 reconhece o elevado risco inerente à atividade do balonismo, mostra-se imprescindível a aprovação de regras de prevenção de danos, que disciplinem requisitos mínimos de segurança a serem observados, estabeleçam a comprovação periódica de qualificação técnica dos operadores de balões e de certificação de aeronavegabilidade do balão; e determinem a fiscalização pela Anac, em conjunto com o Ministério do Turismo, dessas certificações e do cumprimento das medidas de segurança.
Os recentes acidentes servem de alerta para conscientizar a população acerca da necessidade premente da elaboração dessas normas, para coibir o despreparo em situações de emergência e, principalmente, para evitar que outras vidas sejam perdidas.
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Referências
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AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. RBAC n.º 103. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/rbha-e-rbac/rbac/rbac-103. Acesso em 23 jun. 2025.
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RIBEIRO JR, Euardo; MONTEIRO, Carla; GONÇALVES JR., Wilson. Balão com mais de 30 pessoas cai em área rural de Capela do Alto e deixa um morto. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2025/06/15/balao-cai-em-area-rural-no-interior-de-sp.ghtml. Acesso em 23 jun. 2025.
SAND, Peter; FREITAS, Jorge de Sousa; PRATT, Geoffrey N. An historical survey of international air law before the Second World War. McGill Law Journal, Montreal, v.7, n. 1, 1960.
[1] MORSELLO, Marco Fábio. Responsabilidade civil no transporte aéreo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 45.
[2] SAND, Peter; FREITAS, Jorge de Sousa; PRATT, Geoffrey N. An historical survey of international air law before the Second World War. McGill Law Journal, Montreal, v.7, n. 1, 1960, p. 24-42, p. 25.
[3] RIBEIRO JR, Euardo; MONTEIRO, Carla; GONÇALVES JR., Wilson. Balão com mais de 30 pessoas cai em área rural de Capela do Alto e deixa um morto. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2025/06/15/balao-cai-em-area-rural-no-interior-de-sp.ghtml. Acesso em 23 jun. 2025.
[4] PACHECO, John. Oito pessoas morrem em queda de balão que pegou fogo em Praia Grande (SC). G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2025/06/21/balao-pega-fogo-durante-passeio-mortos-feridos-praia-grande-santa-catarina.ghtml. Acesso em 23 jun. 2025.
[5] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Balonismo. Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/aerodesporto/balonismo. Acesso em 23 jun. 2025.
[6] MINISTÉRIO DO TURISMO. Regulamentação, normalização e certificação em turismo de aventura. Relatório Diagnóstico. Brasília: Ministério do Turismo, 2005, p. 9.
[7] Nos termos do item 103.1, o Regulamento se aplica nas operações aerodesportivas em “balão livre tripulado que não seja detentor de um certificado de aeronavegabilidade” (AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. RBAC n.º 103. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/rbha-e-rbac/rbac/rbac-103. Acesso em 23 jun. 2025)
[8] BRUM, Gabriel. Ministério planeja regulamentar balonismo turístico no Brasil. AGÊNCIA BRASIL. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2025-06/ministerio-planeja-regulamentar-balonismo-turistico-no-brasil. Acesso em 23 jun. 2025.
[9] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. RBAC n.º 103. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/rbha-e-rbac/rbac/rbac-103. Acesso em 23 jun. 2025.
[10] JORNAL NACIONAL. Acidentes com voos turísticos de balão acendem alerta para falhas de regulamentação no Brasil. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2025/06/21/acidentes-com-voos-turisticos-de-balao-acendem-alerta-para-falhas-de-regulamentacao-no-brasil.ghtml. Acesso em 23 jun. 2025.
[11] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 15ª ed., rev., atual. e ampl. Barueri: Atlas, 2022, p. 853-854.
[12] MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 274.
é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc, em Direito do Consumidor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS e em Direito Público pelo UniCeub e advogada.
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