Opinião

Uso de contas vinculadas em contratos de concessão rodoviária e ferroviária

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  • é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

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23 de junho de 2025, 20h57

Para se entender o mecanismo de contas vinculadas em contratos de concessão rodoviária é necessário, inicialmente, conhecer o processo evolutivo das cinco etapas de concessão rodoviária, pertencentes ao Programa de Concessões de Rodovias Federais (Procrofe), instituído pela Portaria do Ministério dos Transportes nº 10/1993.

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Na primeira etapa, realizada na década de 1990, os contratos tinham como características, principalmente: (1) elevados prazos de concessão e (2) disposições sobre a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, esta última em consonância com o artigo 10 [1] da Lei nº 8.987/1995.

Entretanto, o Brasil passava por um momento de grande instabilidade econômica, com a transição da moeda para o real, além do cenário macroeconômico de altos índices inflacionários. Diante desses desafios, as modelagens econômico-financeiras nesse período eram elaboradas utilizando o dólar como moeda, tendo em vista a sua maior estabilidade e segurança aos investidores.

Em seguida, o governo deu início à segunda etapa de concessões rodoviárias, realizada entre os anos de 2008 e 2009.

Nessa segunda etapa, algumas inovações regulatórias foram instituídas, como: (1) modicidade tarifária; (2) redução da Taxa Interna de Retorno (TIR); (3) adoção do Fluxo de Caixa Marginal; (4) alocação de riscos ao concessionário, como insumos, financiamento e passivos ambientais; (5) revisões Ordinárias e Extraordinárias; e (6) gatilhos para obras não obrigatórias.

Observa-se que, na segunda etapa, a moeda brasileira já era o Real e os índices de inflação estavam controlados, ensejando a possibilidade de redução das Taxas Internas de Retorno (TIR) dos contratos, em comparação com aquelas previstas nos contratos da primeira etapa (anos 1990), que eram necessariamente altas com o fito de atrair investidores em um cenário macroeconômico de incertezas.

Em seguida, foi realizada a 3ª etapa de concessões rodoviárias, entre 2013 e 2014. Nessa etapa, surgiram as seguintes novidades regulatórias: (1) concessões com longos trechos concedidos; (2) concentração de obras no começo do contrato; (3) utilização de fatores de reequilíbrio; (4) incorporação do WACC [2] no Fluxo de Caixa Marginal; e (5) cobrança de pedágio somente depois de, pelo menos, 10% de duplicação da rodovia.

Com o afã de gerar benefícios de curto prazo à sociedade, os contratos passaram a prever uma grande concentração de obras nos primeiros anos do contrato. Conquanto isso possa gerar uma percepção de vantajosidade pelo célere início das obras, houve um impacto considerável na modelagem dos contratos, vez que, quanto mais próximo do termo inicial do contrato, maior é o impacto dos investimentos no Valor Presente Líquido (VPL) daquele projeto.

Explico: quando tratamos com modelagens econômico-financeiras utilizamos um fluxo de caixa para prever receitas e despesas durante os anos daquele empreendimento. Pois bem. Precisamos ter em mente que o dinheiro perde seu poder de compra com o passar do tempo. Assim, a título de exemplo, R$ 1 mil hoje não valerão os mesmos R$ 1 mil daqui a dez anos. Por certo que valerá menos, pois a moeda perde poder de compra com o tempo, principalmente pela incidência da inflação.

Dito isso, é necessário que valores projetados para o futuro sejam trazidos a Valor Presente, de modo que todo o projeto seja tratado com a mesma base de valor e tempo. Essa métrica que traz para o hoje valores previstos para o futuro é chamada de Valor Presente. Ao unirmos os valores presentes de todos os anos do fluxo de caixa (anos 1, 2, 3, …, 30), temos o VPL.

Assim, quanto mais próximo o investimento estiver da data inicial do projeto, maior será o impacto no valor presente. Por exemplo: imagine-se um fluxo de caixa de 10 anos em que se prevê a realização de mil reais de investimentos no ano 1 até o ano 10. Neste caso, em uma simulação, esses mil reais do ano 2 valem hoje, aproximadamente, R$ 826, utilizando-se uma taxa de desconto de 10%. Igualmente, esses mil reais, no ano 10, valeriam hoje cerca de R$ 385, aplicando-se a mesma taxa.

Instabilidades políticas e a quarta etapa de concessões rodoviárias

Desta feita, quanto mais próximo dos anos iniciais do contrato, maior o impacto no valor do projeto, ou seja, inobstante possa parecer vantajosa ao senso comum a concentração de investimentos nos primeiros anos do contrato, há um efeito adverso no valor final que o projeto gera, pois maior é o impacto no Valor Presente Líquido do projeto.

Assim, a concentração de obras nos primeiros anos do contrato gerou desafios no que toca à modelagem e sustentabilidade do contrato.

Importa destacar que, nesse período (2013-2014), o Brasil vivia um cenário de otimismo excessivo em relação ao cenário macroeconômico do país. Decorrência disso foram as propostas agressivas nos leilões rodoviários, que impulsionaram as tarifas para baixo.

Todavia, o cenário político passou por grandes mudanças nos anos seguintes, com o impedimento da então presidente da República, Dilma Rousseff, no ano de 2016. Tais instabilidades políticas dificultaram o financiamento das obras, ocasionando excessivos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, além do aumento dos valores de pedágio.

Tal conjuntura foi refletida na quarta etapa de concessões rodoviárias, realizadas entre os anos de 2019 e 2022.

Na quarta etapa, surgiram as seguintes inovações regulatórias: (1) fator E [3] de reequilíbrio; (2) limitação à inclusão de investimentos no início do contrato; (3) descontos para usuários frequentes – duf; (4) utilização do free flow [4] e (5) instituição do mecanismo de contas vinculadas.

Recentemente, o governo lançou a quinta etapa de concessões rodoviárias, iniciada no ano de 2023, que trouxe como inovações, principalmente: (1) compartilhamento de riscos de demanda e (2) compartilhamento de riscos ambientais.

Neste ponto, é necessário que se discorra sobre o mecanismo de contas vinculadas (surgido no bojo da quarta etapa de concessões rodoviárias), seus objetos e funções, bem como a discussão ora travada no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Advocacia Geral da União (AGU).

Resumidamente, as contas vinculadas são contas bancárias vinculadas à concessão, geridas por um banco depositário, cuja movimentação ocorre apenas mediante autorização da ANTT e nos casos previstos em contrato.

Assim, as contas vinculadas compõem mecanismo de contas que funciona ao largo do orçamento público, tendo como principal objetivo a criação de um colchão de liquidez no contrato, com vistas à: (1) autossustentabilidade do projeto; (2) modicidade e estabilidade tarifárias; (3) transparência e controle dos fluxos financeiros; (4) maior previsibilidade e atratividade de investidores e (5) mitigação dos riscos relacionados ao Orçamento Geral da União (OGU).

Dito isto, as contas vinculadas atuam como repositório de recursos para: (1) compensações decorrentes do mecanismo de proteção cambial; (2) mitigação do risco de demanda; (3) descontos para usuários frequentes — DUF; (4) reequilíbrio econômico-financeiro da concessão e (5) pagamento de indenizações em casos de extinção da concessão.

Subespécies de conta vinculada

As contas vinculadas interagem entre si, com a transferência de recursos entre elas, cada uma com a sua respectiva finalidade.

Neste prisma, faz-se necessário discorrer sobre as características de cada subespécie de conta vinculada, conforme apresentado pelo Parecer nº 01/2024/Cnir/CGU/AGU, da Advocacia Geral da União:

– Contra centralizadora: assume a função primordial de receptáculo da receita tarifária bruta da Concessão, podendo também receber receitas acessórias. Esta conta opera como o ponto focal do sistema, a partir do qual os recursos são distribuídos conforme regras contratuais predefinidas.

– Conta free flow: quando prevista, destina-se ao recebimento das receitas operacionais decorrentes da utilização do sistema de cobrança por fluxo livre nas rodovias. Os recursos nela depositados são posteriormente distribuídos, em percentuais contratualmente estipulados, entre a Conta de Livre Movimentação e a Conta de Ajuste.

– Conta de aporte: é destinada ao depósito inicial dos Recursos Vinculados correspondentes ao lance vencedor do certame licitatório, constituindo assim uma reserva financeira inicial para o projeto.

– Conta de retenção: é dedicada ao recebimento de uma parcela dos Recursos Vinculados, especificamente destinada à aplicação do Mecanismo de Proteção Cambial, quando previsto no contrato.

– Conta de ajuste: desempenha um papel central no sistema. Ela recebe valores gerados pela Concessão e eventuais aportes de terceiros, sendo utilizada para operacionalizar o Ajuste Final de Resultados, o Desconto de Usuário Frequente e os reequilíbrios econômico-financeiros do contrato.

– Conta de livre movimentação da concessionária: abriga os recursos que ficam à disposição da concessionária para a gestão cotidiana do negócio concessório.

Conquanto o mecanismo de contas vinculadas tenha sido aprovado em mais de dez processos de concessões rodoviárias, recentemente, em decorrência do processo TC 008.723/2023-0 (TCU), relator ministro Walton de Alencar, foi determinada uma auditoria sobre a utilização do mecanismo de contas vinculadas em contratos de concessão. Em seu voto condutor, o ministro relator assim dispôs:

“A ANTT, porém, adotou mecanismo híbrido, em que procura reservar recursos para custear, também, obrigações da União, a exemplo de indenizações e reequilíbrios econômico-financeiros do contrato de concessão, na hipótese de materialização de riscos alocados ao Poder Concedente. (…)
Em verdade, na forma em que concebido o mecanismo de contas vinculadas, há mistura de receitas da concessão (recursos privados obtidos com a exploração da concessão) com valores que deveriam ser pagos ao poder concedente (receita pública decorrente da outorga da concessão), o que ocasiona perplexidades. (…)
Não há óbices para que receitas advindas da exploração da concessão sejam depositadas em contas vinculadas para garantir o cumprimento de obrigações do concessionário. Todavia, não existe respaldo jurídico para que valores, devidos pela outorga, sejam destinados, por contrato, para conta vinculada, em vez de serem recolhidos à conta única do Tesouro. (…)
Obviamente, a previsão contratual de vinculação de determinada receita pública a gastos da preferência de determinado órgão não se sobrepõe à obrigatoriedade de observância do regramento jurídico aplicável às receitas e despesas públicas, que incluem a necessidade de autorização orçamentária, o princípio da unidade de caixa, a contabilização no teto de gastos etc., sob pena de instituição de orçamentos paralelos, em prejuízo ao controle e à responsabilidade na gestão fiscal (art. 1º da LRF).”

Ao ser instada a se manifestar sobre o assunto, a AGU prolatou o Parecer nº 01/2024/Cnir/CGU/AGU, que assim concluiu:

– Os valores depositados nas contas vinculadas ao contrato de concessão são recursos privados, não se confundindo com valores devidos a título de outorga, sua natureza jurídica é de bens reversíveis.

– A natureza privada destes recursos implica que os princípios e normas de direito financeiro e orçamentário público não são aplicáveis a este mecanismo.

– A sua previsão contratual está pautada na discricionariedade administrativa na modelagem de contratos de concessão. Trata-se de mecanismo contratual desenvolvido para garantir a sustentabilidade financeira e operacional das concessões ao longo da sua vigência.

– A forma de restabelecimento da equação financeira pode ser efetivada por diversos meios, inclusive com a dispensa de obrigações contratuais de natureza privada. O fato de ser utilizada em reequilíbrio econômico-financeiro não retira seu caráter privado.

Em que pese a discussão ora travada acerca do mecanismo de contas vinculadas, tem-se que esse instituto é um importante instrumento para garantir a sustentabilidade econômica do contrato, gerando segurança jurídica e mitigando riscos que, ao final, seriam precificados e transferidos ao consumidor usuário do serviço público.

Observa-se uma janela de oportunidade para utilização, mutatis mutandis, do mecanismo de contas vinculadas no setor de ferrovias, adaptando o mecanismo à realidade desse setor.

Seria de bom alvitre a previsão de uma conta de aporte, apta a receber parte dos recursos oriundos do lance vencedor, além de uma conta de retenção, que funcionaria para amortecer variações cambiais inerentes à concessão.

Além disso, entende-se como possível e válida a utilização de uma conta de ajuste vocacionada a resolver questões inerentes à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Desta feita, os projetos ferroviários agregariam maior atratividade junto ao setor privado, permitindo a expansão do setor de ferrovias na matriz de transportes do Brasil, potencializando este modo de transporte tão importante para a logística do Brasil.

O setor de ferrovias é vocacionado a utilizar o mecanismo de contas vinculadas, o que permitirá a mitigação de riscos inerentes a esses contratos de longo prazo, com a redução dos seus custos correlatos, precificados a partir dos riscos identificados.

 


[1]   Art. 10. Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro.

[2] Weighted Average Capital Cost (Custo Médio Ponderado de Capital)

[3] Referente ao Estoque de Melhorias. Se a concessionária realizasse uma obra contida no estoque de melhorias, então o contrato deveria ser reequilibrado.

[4] Sistema de cobrança de pedágio sem a necessidade de instalação de praças de pedágio.

Autores

  • é advogado, diretor de Outorgas Ferroviárias no Ministério dos Transportes (MT), especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), mestrando em Direito pelo IDP e vice-presidente da Comissão de Assuntos Regulatórios, na OAB-DF.

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