Controvérsias Jurídicas

Tentativa do golpe que não ocorreu: duas interpretações possíveis

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  • é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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23 de junho de 2025, 12h44

Dando seguimento ao artigo já publicado aqui mesmo nesta ConJur [1], no qual já sustentávamos a evidente atipicidade da conduta apelidada pela mídia de “a minuta golpista” ou “a trama golpista”, voltaremos a abordar o tema com foco na inexistência do crime face à não ocorrência de seu início de execução.

Dos fatos

Resumidamente, são os seguintes: (a) não se sabe quem elaborou ou pegou do Google um rascunho daquilo que se pretendia transformar em decreto de sítio; (b) o ex-presidente Jair Bolsonaro teve esse rascunho em mãos e sofreu pressão para transformá-lo em decreto; (c) não obstante, resistiu às pressões porque, segundo alegou em seu interrogatório, “não havia clima” e não estavam presentes as hipóteses do artigo 137 da CF; (d) por essa razão, abortou desde seu nascedouro, o tresloucado plano, recusou-se a autorizar o decreto, não convocou os Conselhos da República e da Defesa Nacional, nem o Congresso Nacional, como manda a Constituição (cf. artigos 137 a 139); (e) os fatos não ultrapassaram a fase das discussões preliminares; (f) a recusa do ex-presidente em emitir o decreto, ainda que motivada pela constatação de que “não havia clima”, não deixa de ser ato voluntário, uma vez que nada o impedia de agir, salvo a prudente reflexão de que não seria uma boa ideia.

Desistir do estado de sítio porque ‘não havia clima’ é considerado ato voluntário: é a chamada desistência voluntária (CP, artigo 15)

Não se deve confundir ato voluntário com ato espontâneo. O sujeito que decide não executar um homicídio porque foi alertado das graves consequências do ato, tais como ser preso por longo período, ou recusar-se a assinar um decreto acoimado de “golpista” porque “não havia clima” praticou um ato não necessariamente espontâneo, mas certamente voluntário. “A desistência e o arrependimento não precisam ser espontâneos, bastando que sejam voluntários. Por conseguinte, se o agente desiste ou se arrepende por sugestão ou conselho de terceiro, subsistem a desistência voluntária e o arrependimento eficaz. Do mesmo modo, ‘não se faz mister que o agente proceda virtutis amore ou formidine poence, por motivos nobres ou índole ética (piedade, remorso, despertada repugnância pelo crime) ou por motivos subalternos, egoísticos (covardia, medo, receio de ser eventualmente descoberto, decepção com o escasso proveito que pode auferir): é suficiente que não tenha sido obstado por causas superiores, independentes de sua vontade. É indiferente a razão interna do arrependimento ou da mudança de propósito[2].

Ato voluntário

Voluntário é tudo aquilo que fazemos por nossa vontade, sem que ninguém nos obrigue. Se, por exemplo, o sujeito fica com medo das consequências ou reflete melhor sobre elas, sua conduta será voluntária.  “Quero decretar o Estado de Sítio, mas isso pode não dar certo, logo, não vou fazê-lo”. Essa ação é considerada juridicamente uma ação voluntária.

Fases do crime (iter criminis)

São 4: (1) cogitação; (2) preparação; (3) execução e (4) consumação.

Cogitação

Nessa primeira etapa, o sujeito apenas mentaliza, cogita, pensa em praticar o crime. Aqui, ainda não existe crime, pois cada um pode pensar o que bem quiser.

Preparação

Nessa fase também não existe crime, porque ele não começou ainda a ser praticado. Compreende os atos anteriores à sua execução. O agente ainda está planejando a realização do delito. No ensinamento de Maurach, ato preparatório “é aquela forma de atuar que cria as condições prévias adequadas para a realização de um delito planejado[3]. De acordo com o artigo 31 do CP, “o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”.

Execução

A partir desse momento, o crime passa a existir. O verbo do crime começa a ser realizado e tem início o ataque ao bem jurídico protegido pela lei penal.

Consumação

Ocorre quando todos os elementos que se encontram descritos no tipo penal foram realizados.

Tentativa (Conatus)

Tentativa é a não consumação de um crime, cuja execução foi iniciada, por circunstâncias alheias à vontade do agente. São necessários três elementos: (a) início de execução (deve ser ultrapassada a fase da preparação; (b) não consumação (o resultado pretendido não é alcançado); (c) interferência de circunstâncias alheias à vontade do agente, que atuam contra sua vontade e o impedem de obter a consumação, apesar de desejá-la.

Spacca

Início de execução

“Não há crime sem lei que o defina” (CF, artigo 5º, XXXIX). Todo crime está definido em lei e nessa definição existe um verbo (matar, sequestrar, constranger etc.). Enquanto o sujeito não começar a realizar o verbo do crime, não haverá início de execução. Não há homicídio, enquanto o agente não começar a matar; não há furto, enquanto não começar a subtrair; não há falso, enquanto não começar a falsificar; não há estupro, enquanto não começar a constranger e assim por diante. Não se concebe início de execução sem começo de realização do verbo do tipo. É, portanto, imprescindível o início da execução específica do tipo penal, ou seja, o sujeito tem de iniciar a realização do núcleo da norma incriminadora [4].

Início de execução: primeiro ato idôneo e inequívoco à consumação

A realização do verbo do crime se dá com o primeiro ato idôneo e inequívoco à sua consumação. Idôneo é aquele ato apto a produzir o resultado. Planejar um crime ainda não é o primeiro ato capaz de consumá-lo, não é início de execução. Inequívoco significa indubitavelmente destinado à produção do resultado. Somente depois de iniciada a ação idônea e inequívoca é que terá início a realização delituosa, o qual pressupõe a somatória de ambos (ato idôneo + inequívoco = verbo do tipo). Antes disso, não há nada relevante para o universo jurídico, apenas a narrativa jornalística ou política [5]. É a posição que prevalece no STJ.

Tentativa abandonada: mesmo que o decreto de estado de sítio tivesse sido assinado, se não fosse colocado em prática não haveria tentativa

Há casos em que, mesmo iniciada a execução de um crime, não há tentativa. O sujeito muda de ideia e por vontade própria desiste da empreitada criminosa que iniciou. Essa é a tentativa abandonada.

Consequência da tentativa abandonada

O sujeito não responde por tentativa, afinal ele a abandonou. Não há golpe de Estado nem atentado ao Estado Democrático de Direito. Discutir minuta de decreto não é início de execução de crime algum mesmo que seja um decreto fora das hipóteses constitucionais. Planejar, discutir não é executar. Ainda não se operou o primeiro ato idôneo à consumação. Mas, ainda que, por um grande equívoco, se considerasse ter havido início de execução, esta foi abandonada no momento que o ex-presidente decide não transformar o rascunho em ato oficial. Na tentativa abandonada, o agente dá início à execução, mas muda de ideia. Não há tentativa, afinal ela foi abandonada. O sujeito só responde pelos atos anteriores e não pelo delito tentado. Na tentativa, o agente diz “quero, mas não consigo”, ao passo que na tentativa abandonada ele diz “eu não quero mais”.

Espécies de tentativa abandonada: desistência voluntária e arrependimento eficaz

Desistência voluntária

O agente dá início à execução, depois muda de ideia e a interrompe no meio, impedindo a sua consumação. Mesmo para quem, erroneamente, sustenta que a discussão da minuta é início de execução, tal execução acabou abandonada por uma mudança de ânimo do autor, o qual se recusou a transformá-la em decreto. Nesse caso, diz a lei que não há crime.

Arrependimento eficaz

O agente executa o crime até o fim, mas depois muda de ideia e impede a produção do resultado. Nesse caso, a execução vai até o final, não sendo interrompida pelo autor, no entanto, este, após esgotar a atividade executória, arrepende-se e impede o resultado.

Diferença entre desistência voluntária e arrependimento eficaz

Desistência voluntária: sujeito atira para matar, erra o disparo, mas depois muda de ideia e para de atirar. Arrependimento eficaz: o sujeito descarrega a arma, mas se arrepende depois de ter executado o crime até o fim, socorre a vítima e a salva. A diferença está no momento em que muda de ideia.

Crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito: a mera discussão da minuta não é ato idôneo e capaz de abolir coisa alguma

Art. 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. O crime consiste em tentar abolir o Estado Democrático de Direito de duas maneiras: (a) impedindo (totalmente) o exercício dos poderes constitucionais; (b) restringindo (parcialmente) tal exercício. Sua realização exige que o agente efetivamente consiga impedir ou restringir o exercício de pelo menos um dos poderes constitucionais. Se o exercício dos poderes não foi nem ao menos restringido, não há sequer tentativa. Não é preciso muito esforço para concluir que a discussão a portas fechadas que acabou não dando em nada, não restringiu, nem impediu o exercício de nenhum dos poderes da república

Consumação e tentativa

Não basta cogitar golpe ou planejar decreto para atentar contra o Estado Democrático de Direito. O artigo 17 do CP considera ser crime impossível quando a tentativa for impossível pela ineficácia absoluta do meio. É a chamada tentativa inidônea, inadequada ou quase crime. Discutir minuta de golpe ou de decreto é meio absolutamente ineficaz a abolir ou restringir funcionamento de poderes. Ficassem seus idealizadores trancados na sala a vida inteira discutindo, não haveria jamais qualquer golpe. A execução não foi iniciada e mesmo para quem acha que sim, houve desistência voluntária, o que afasta o crime. É imprescindível que a ação tenha efetiva capacidade de impedir ou restringir de fato, o exercício dos poderes constitucionais. Só a intenção e preparação não bastam.

Golpe de Estado

Dispôs o artigo: “Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Golpe de Estado pode ser definido como todo movimento violento de desestabilização da ordem e do regime legal e legitimamente instalado, contra a ordem constitucional, com o fim de impor um novo governo, liderança ou regime político.

Discussão sobre o rascunho do decreto de estado de sítio não configura crime

A discussão em si não é ato idôneo a produzir atentado ao Estado Democrático de Direito ou golpe de Estado. Não ingressa na fase de execução e, portanto, não ultrapassa a fase dos atos preparatórios. E mesmo para quem, em um esforço hermenêutico, forçar aí um início de execução, ficou caracterizada a desistência voluntária, restando apenas os atos preparatórios.

Conclusão: conduta de Jair Bolsonaro ficou nos atos preparatórios e, para quem considera ter havido início de execução, houve desistência voluntária. Em ambos os casos, não houve crime

À luz do Direito Penal, e longe do debate midiático e da interferência das forças políticas favoráveis e contrárias a ele, não houve fato relevante do ponto de vista científico, tendo em vista que os atos se encerraram em sua fase de preparação. O campo moral, político e social não interseccionam neste caso o Direito Penal.

 


[1] Discussão sobre o rascunho da minuta do decreto do golpe é um nada jurídico

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. SP: Saraiva, 29ª ed., pgs. 224/225.

[3]MAURACH, Reinhart Tratado de derecho penal, Parte General, v. 2, 1962, p. 168.

[4] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 3ª ed, pg. 391/392.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. SP: Saraiva, 29ª ed, 2025, p. 219.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP, Conselho Nacional de Defesa do Consumidor e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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