Opinião

STF, cursos de medicina e a importância de examinar a legalidade antes da adequação técnica

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23 de junho de 2025, 21h25

A ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade) nº 81 teve o objetivo de confirmar a constitucionalidade do artigo 3º, da Lei 12.871/2023. Em 2024, o julgamento reconheceu a constitucionalidade desse artigo e a exclusividade dos chamamentos públicos. Entretanto, restam pendentes os embargos que tratam da modulação da decisão do STF, que permitiu o seguimento de processos administrativos em andamento, especialmente quanto às novas restrições impostas pela Portaria MEC/Seres nº 531/2023.

Elza Fiúza/Agência Brasil

Essas restrições, que incluem a limitação geográfica da avaliação da necessidade social e a redução do número máximo de vagas, foram objeto de embargos justamente por suscitar questionamentos quanto à sua legalidade e ao impacto que têm sobre processos já em trâmite. De um lado, a autora da ADC e a União defendem que essas condições estariam amparadas; de outro, as entidades que representam as instituições, inclusive a autora da ADI 7.178, que tramita paralelamente, apontam que os critérios são retroativos, criam barreiras indevidas e carecem de respaldo normativo válido.

Os três votos proferidos até aqui foram uníssonos em afastar a análise da legalidade da portaria. Essa postura reflete um entendimento correto quanto aos limites da jurisdição constitucional, pois o STF, no âmbito da ADC, não pode julgar a legalidade de atos infralegais, tampouco pode apreciar provas. A única divergência relevante partiu do ministro Dias Toffoli, que entendeu que os embargos nem sequer deveriam ser conhecidos, enquanto o relator, Gilmar Mendes, e o ministro Flávio Dino deram parcial provimento a um deles para “acrescer fundamentação”.

Nesse ponto, há uma sutileza importante que justifica este artigo: embora os três votos já proferidos tenham reconhecido expressamente que não havia omissão alguma a ser suprida, o relator decidiu “tecer algumas considerações” para responder às alegações de descumprimento do acórdão pelo MEC. Trata-se de uma sutileza porque, sob a aparência de um simples esclarecimento, essas considerações reforçam a legitimidade das medidas adotadas pelo Ministério, conferindo-lhes um peso adicional e potencialmente decisivo, mesmo diante de um acórdão já completo.

Certamente, a intenção foi positiva e buscou, provavelmente, evitar possíveis reclamações ao STF. Contudo, o efeito prático não foi exatamente esse. Já existem decisões em primeira instância que interpretam essas considerações como uma validação da Portaria nº 531/2023, e a União tem utilizado esses trechos como fundamento em praticamente todas as suas defesas.

Essa situação decorre do efeito interpretativo natural das decisões do STF e também de uma heurística — um atalho mental estudado pela econômica comportamental, que simplifica a tomada de decisões — causada pela alta representatividade das opiniões da Corte. O problema é que decisões influenciadas por tais efeitos geram um viés, juridicamente injustificado, porém muito poderoso, no sentido de que a legalidade da Portaria nº 531/2023 teria sido definitivamente analisada.

Qual é o problema?

A questão é saber se essa interpretação está correta. Afinal, considerações feitas em sede de controle abstrato de constitucionalidade têm, tecnicamente, força decisiva na análise de legalidade de normas infraconstitucionais?

A resposta está no próprio voto do relator, que assentou:

“Em caso de eventual equívoco da Administração na condução de um dado processo administrativo ou na apreciação da situação particular de uma determinada instituição de ensino, surgirá questão jurídica a ser solucionada no âmbito de eventual pretensão individual e subjetiva”;

“Reitero que eventual equívoco da Administração Pública na condução de um dado processo administrativo ou na apreciação da situação particular de uma determinada instituição de ensino ensejaria, ao menos em tese, pretensão individual e subjetiva a ser manejada no foro judicial adequado.”

Apesar dessas afirmações enfáticas, o conteúdo e a estrutura do voto acabaram gerando um efeito prático contrário.

O relator adentrou explicitamente na análise técnica da compatibilidade dos critérios adotados pela Portaria MEC/Seres nº 531/2023 com os objetivos da política pública. Nesse sentido, afirmou claramente que os embargos “não foram capazes de demonstrar que a limitação de vagas a serem criadas (…) teria o condão de, na prática, inviabilizar o cumprimento das decisões destes autos”, concluindo expressamente que não há que se falar em descumprimento da decisão do Plenário pelo MEC por meio da Portaria MEC/Seres nº 531/2023″. Essas afirmações acabaram, na prática, reforçando a tese de validade da portaria.

Spacca

A própria estrutura do voto fortalece essa interpretação. São diversas páginas dedicadas às questões técnicas — como a delimitação territorial para análise da necessidade social e o limite máximo de vagas —, enquanto as referências aos limites da competência da Corte aparecem apenas brevemente no final de frases, por meio de expressões como “o exame da legalidade extrapola”; “em âmbito de controle objetivo de constitucionalidade”; “a nível de controle objetivo da política pública”; e “desborda dos limites cognitivos da presente demanda”.

Esse desequilíbrio entre a fundamentação detalhada sobre a razoabilidade técnica dos critérios e as referências sucintas aos limites do controle abstrato contribui significativamente para o viés interpretativo favorável às teses da União.

Porém, a interpretação correta é que o STF não analisou a legalidade da portaria. O Tribunal remeteu essa análise ao “foro judicial adequado” (instâncias ordinárias), esclarecendo que suas considerações têm validade restrita ao âmbito do controle administrativo, com o objetivo específico de prevenir, por exemplo, o uso indevido de reclamações constitucionais.

Questão de ordem: primeiro a ilegalidade

O problema aqui vai além do impacto interpretativo dos votos — que sempre existirá. O que merece reflexão é a opção por provocar essa interpretação antes que haja qualquer análise da legalidade da norma. Em um Estado cuja base é o direito, a sequência correta exige verificar a legalidade da portaria antes da adequação dos critérios.

Talvez esteja aí a verdadeira “questão prejudicial”: antes da apreciação dos critérios da Portaria nº 531/2023, caberia ao STF aguardar o exame da legalidade da norma. Isso poderia ter sido feito dentro da própria ADC, à luz da segurança jurídica e da proteção da confiança, mas o mais adequado segue sendo remeter a questão às instâncias ordinárias para exame com contraditório.

Esse caminho lógico — examinar a legalidade antes da adequação — foi desconsiderado pelos primeiros votos. O que se viu foi o voto do relator, acompanhado pelos demais ministros, discorrendo longamente sobre os critérios da portaria e citando a OCDE, o edital do Mais Médicos, Notas Técnicas e até o potencial risco à própria política pública, sem antes questionar se a norma que embasa essas restrições tem validade jurídica. Mais que isso: essa análise foi feita destacando que o exame da legalidade ficará para outro momento.

Em última análise, o STF nem sequer precisava examinar a adequação da portaria, pois os votos já haviam afastado a omissão da ADC nº 81. Isso evidencia que a análise detalhada desses critérios, embora bem-intencionada, pode ser, no mínimo, precipitada.

Assim, quando os votos faltantes forem proferidos, o Tribunal teria duas opções que merecem reflexão cuidadosa: conhecer e dar provimento aos embargos para, a partir da própria ADC, declarar a ilegalidade da portaria — colocando um ponto final em qualquer dúvida interpretativa; ou simplesmente não conhecer os embargos, como já fizeram os primeiros votos, mas com o cuidado expresso de não reforçar, em momento algum, os critérios defendidos pela União.

Dessa forma, o Supremo preservaria a segurança que a modulação na ADC nº 81 buscou garantir, asseguraria o controle adequado pelos foros competentes e, acima de tudo, reafirmaria a centralidade da legalidade como pressuposto indispensável do Estado democrático de direito.

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