Reeleição e unificação das eleições: desvelando as obviedades do óbvio
23 de junho de 2025, 9h25
Foi aprovada, pois, na CCJ do Senado, a chamada PEC da Reeleição, de relatoria do senador Marcelo Castro (MDB/PI). A referida proposta de emenda à Constituição prevê, a seu turno, basicamente o seguinte, a saber: a) fim da reeleição para os cargos majoritários relativos ao Poder Executivo (presidente, governadores e prefeitos); b) estabelecimento do prazo de duração dos mandatos eletivos na monta de cinco anos; c) unificação das eleições em todos os níveis da Federação, que passariam, por via de consequência, a serem realizadas em uma única data; e d) regras de transição até a aplicação plena da nova sistemática, que se daria a partir de 2034.

O texto de hoje, nesse caminho, vem para trazer algumas luzes a respeito dessa temática, inclusive com tons de crítica, na esteira daquilo que Lenio Streck sempre procura propagar em suas intervenções acadêmicas, isto é: desvelar as obviedades do óbvio [1]. E o foco, para tanto, será: fim da reeleição e unificação dos pleitos nos três níveis federativos.
De onde viemos e para onde iremos? O despontar da crítica ou… de como a institucionalidade brasileira precisa ser submetida ao divã
O Brasil, infelizmente, é um país de parca memória, todavia. E o Direito Constitucional-Eleitoral, o que tem a ver com isso? A resposta é: tudo! E mais um pouco… ora, o campo do Direito Eleitoral, notadamente no âmbito do Parlamento (porém, não apenas dele, diga-se), tem sido usado desde há muito como uma espécie de “laboratório” tendente a “testar” pretensas “soluções” para os males do nosso regime. Ocorre que essas “soluções”, não raramente, provém do supetão, de maneira acrítica, atabalhoada e, também nada raramente, linguisticamente populista. Citemos alguns exemplos – três, em especial (embora sejam vários os outros).
O primeiro exemplo é o modelo de financiamento das campanhas eleitorais. Em 1989 tivemos a primeira eleição direta para presidente da República pós-ditadura militar. Naquele pleito, como sabemos, Fernando Collor se sagraria vitorioso. O que nos interessa aqui, entretanto, é o modelo de financiamento que norteou aquela campanha eleitoral. E qual foi? Um modelo de financiamento predominantemente público, acreditem.
Já no relatório da CPI PC Farias sobreveio uma sugestão bem contundente posta pelo relator, qual tenha sido a seguinte: a modificação do modelo de financiamento das campanhas eleitorais, pois o modelo daquela época alegadamente favorecia a corrupção. E assim foi feito. A partir dali, desde 1997 com o advento da Lei das Eleições, o modelo de financiamento passou a ser misto, mas com predominância privada. E assim o tempo passou.
E a mudança se estabeleceu continuamente. Até que surge a operação “lava jato”. E o modelo de financiamento das campanhas eleitorais, com a indigitada operação, virou a Geni da institucionalidade brasileira. O STF, então, desengavetou uma ADI que tramitava há tempos junto a Corte e, num golpe de morte, fulminou aquele modelo, notadamente quanto ao financiamento privado por pessoas jurídicas. Veio, então, o modelo de financiamento predominantemente público. O mesmo que, agora, parece não servir mais. E aí? Como ficamos? Difícil caminho.
O segundo exemplo é o nosso regime de inelegibilidades. 2010, Lei da Ficha Limpa, o instrumento destinado a purgar o espaço público nacional. Deu certo? Eis a pergunta. Não, não deu, a Ficha Limpa nada purgou. Já era esperado. Populismo, linguístico nesse caso, geralmente não frutifica. Ou tem prazo de validade curto. Porém, quero rememorar rapidamente de onde veio a inspiração para este diploma legal, coisa que os seus defensores, notadamente por intermédio dos seus pais ou padrinhos, assim autointitulados, ou esqueceram, ou fizeram questão de “jogar para debaixo do tapete” — o artigo 148 da “Constituição” de 1967, o artigo 151 da “Constituição” de 1969, proveniente do regime do AI-5 (!), e, ainda, a Lei Complementar nº 05/1970, ou seja, a lei de inelegibilidades do regime militar na vigência do AI-5, ato institucional que representou o suprassumo da exceção naquela quadra da história. Caminho tortuoso.
E o terceiro recai justamente na temática da reeleição, o exemplo mais recente. Até 1997/98, no pós-Constituição de 1988, portanto, não havia reeleição para cargos do Poder Executivo no Brasil. Houve, então, em 1995, uma proposta de emenda, que alteraria a redação do §5º do artigo 14 da CF, no sentido de autorizar a reeleição para os cargos de presidente, governadores e prefeitos.
A autoria foi do deputado Mendonça Filho (PFL/PE). Qual foi a justificativa? A resposta vai entre aspas: “Entendemos que o amadurecimento do processo democrático passa pelo instituto da reeleição, entendido este aqui como um fator importante da constituição de corpos administrativos estáveis. À população brasileira deve ser dada a opção de decidir pela continuidade de uma administração bem-sucedida, como já acontece na maioria dos países”.
Amadurecimento democrático, estabilidade na constituição de corpos administrativos, opção de decidir pela continuidade administrativa, cumprimento de metas governamentais, eis as justificativas. De lá para cá, desde 1997, por via de consequência, é autorizada uma única reeleição consecutiva para os postos do Executivo.
Ocorre que, décadas após, sobreveio a “descoberta” de que a reeleição não funciona, de que ela representa um malefício para o regime democrático brasileiro. Seria mesmo um mal? Se sim, só perceberam agora? Investida de ocasião, eis a verdade, é o que temos aqui. E só. Idas e vindas, vindas e idas. De novo… e de novo… até quando? Até quando seguiremos em busca de soluções fáceis para problemas complexos? Ou propagando truísmos, até quando?
Daí o divã referido no bojo do tópico. Vivemos uma “crise de identidade” tamanha, que sequer mesmo conseguimos, enquanto institucionalidade, ter em conta o caminho a ser percorrido, para onde desejamos caminhar. Isso é grave, demasiado grave, simplesmente porque envolve uma Nação continental como o Brasil, assim como a vida de dezenas de milhões de pessoas. Inobstante a importância das temáticas, no entanto, as “soluções fáceis” seguem brotando em ritmo industrial, sendo que a abordagem acerca da reeleição é uma delas, fruto de uma simplificação e de um lapso de memória tremendos.
PEC que fulmina a reeleição: seria mesmo, o instituto da reeleição, o problema do país e a causa dos “desmandos” no bojo dos processos eleitorais?
Simplificações, tenhamos cuidado com elas. Há, entre os inimigos da República e da Democracia, um que precisa ser destacado. Sem isso, conforme Georges Abboud bem alerta, “não o percebemos, ficamos cegos à sua presença no debate público e na vida privada. Trata-se do seu antagonista mais mortífero e silencioso: a simplicidade” [2]. A chave de leitura necessária para entendermos a República, a Democracia e as suas crises “é a apreensão da sua complexidade”, sigo com Abboud [3]. Nesse cenário, se elas não adquirirem a dimensão necessária para lidar com a complexidade, volto ao autor, ficarão cada vez mais fragilizadas, “correndo o risco de ser(em) degenerada(s) pela estupidez” [4]. É o caso? Sim, é o caso.
Nós, brasileiros, parece que sempre estamos atrás de soluções fáceis para problemas complexos. E geralmente não dá certo. Digo isso para lembrar que temos, pois, no âmago do mesmo Parlamento, apresentada a chamada PEC do semipresidencialismo, que foi jogada às traças de 2022 para cá. Pois falar em término da reeleição, sobretudo neste contexto, é ignorar a discussão acerca do sistema de governo. Seria, pois, muito mais producente discutirmos, aí sim, as intempéries do nosso sistema de governo, que é presidencialista, ainda mais em um contexto no qual o Parlamento acabou por abocanhar parcela considerável do orçamento, como se coubesse a ele a administração dos recursos e as decisões acerca de políticas públicas.
Vejamos mais.

Acabar com a possibilidade de reeleição para os cargos majoritários do Executivo, antes de qualquer coisa, representaria cercear a possibilidade de livre escolha do eleitorado, inclusive observadas as justificativas que deram ensejo à aprovação do instituto da reeleição há décadas. É claro que a reeleição não poderia ser indefinida. Se assim fosse, estaríamos diante de um panorama de violação ao princípio republicano e ao princípio democrático, a partir da ausência de modificações no exercício do poder. Uma reeleição consecutiva, todavia, é algo razoável.
No mais, atentemos para uma fala do relator da PEC no Senado, onde ele disse que a reeleição “resultou num viés pernicioso, de estímulo aos chefes do Poder Executivo pela opção de agendas imediatistas, de fácil retorno eleitoral”.
Pergunto: será que isso seria uma intempérie da reeleição? Mais ainda: o que é que garante, uma vez aprovado o fim da reeleição, que a realidade não permaneceria a mesma, num pessoalismo contraproducente, antirrepublicano, inclusive, típico dos presidencialismos da América Latina em geral, e do Brasil em específico? Lembremos: as pessoas não poderiam ser reeleitas, mas os partidos sim, as bases governistas sim, os projetos de poder sim! Qual a garantia?
E quanto aos aspectos eleitorais, que garantia teríamos de que o término da reeleição faria com fossem evitados os desmandos no uso da máquina pública, ou mesmo de que eles seriam reduzidos? Ora, não há comprovação empírica disso, sendo que quem assim se manifesta defende um ponto de vista tão raso quanto um pires. Lembremos: o mandatário da vez não poderia ser eleito. Mas procuraria fazer sucessão. Logo, falar em término ou redução do uso da máquina pública para fins eleitorais é uma abstração, além de uma ingenuidade.
O importante, por outro lado, é a previsão de ilícitos eleitorais, inclusive passíveis de cassação, como ocorre hoje. Os mesmos ilícitos, aliás, podem restar configurados por benefício, sem a participação direta do candidato, como ocorre com o abuso de poder e as condutas vedadas. Foquemos nas vedações, nos mecanismos de controle e no contínuo aperfeiçoamento da jurisdição eleitoral.
Abstrações e mais abstrações, entretanto, é o que vemos e ouvimos, sendo que estariam, tal como o Relator da PEC, mirando no padre e acertando a Igreja. Nada de empírico há para comprovar as alegações. E nem haverá, aposto.
PEC que impõe a unificação das eleições: a quem interessa isso?
Atrelada ao fim da reeleição, há a proposta de unificação das eleições, ou seja, as eleições em todos os níveis da federação seriam realizadas conjuntamente, na mesma data. A pergunta é: a quem interessa isso? Pergunto, no mais: a quem interessa reduzir os debates político-eleitorais? Somente aos “donos do poder”, para utilizar uma expressão do grande e centenário Raimundo Faoro, consagrada na década de 1960 do século passado.
Ocorre que unificar as eleições, considerada a impossibilidade de debater os temas municipais que daí derivará, representará o golpe de morte no Estado federal brasileiro. Será, dito de outra forma, o golpe de morte em uma federação que já nasceu às avessas, porquanto pautada em um centralismo em prol da União desde a Proclamação da República, fenômeno que se intensificou, deveras, pós-década de 30 do século passado.
Note-se: assim fosse o caso, estaríamos lidando com eleições conjuntas, cujo orçamento será concentrado nos postos mais graúdos, sem que os Municípios tivessem voz e vez. Os debates, a partir daí, ficariam evidentemente concentrados nas questões nacionais, e numa tacada só. Os municípios perderiam, a esse respeito, a sua autonomia, agora nos aspectos eleitorais, naquilo que se refere ao debate dos seus próprios assuntos. Isso, portanto, suplantará, e por completo, as discussões de interesse local. Não haverá mais espaço para debatermos os municípios. Os municípios ficarão sufocados, a mais não poder. Acabará a autonomia, que já é pouca. As pessoas vivem nos municípios. Porém, os debates de interesse municipal inexistirão. E isso, como dito, será a morte da federação brasileira. A pergunta é: a quem interessa isso?
E há outro problema, ademais. Vejam que as eleições municipais são um importante instrumento de controle contra quem ocupa os demais cargos, como presidente e governadores. Elas funcionam como um termômetro considerável acerca da administração. Um freio e contrapeso por excelência, vindo das ruas e das urnas, algo que os norte-americanos muito bem já estabeleceram desde há muito com as suas eleições de meio de mandato. Portanto, ao contrário de tentar despersonalizar a chefia do Executivo, a PEC da reeleição, atrelada a unificação das eleições, só faria intensifica-la.
Mas há quem diga: isso reduzirá custos! Bom, de quanto será a redução? Não dizem. E que proveito teríamos a partir dessa redução? Nada é dito. Perguntem, inclusive, aos dedicados funcionários da Justiça Eleitoral as intempéries operacionais que a unificação causaria para os pleitos eleitorais vindouros. Eles dirão, inclusive, que unificar eleições, ao invés de reduzir custos, os aumentará. Façam isso, e vejam, na fonte, os problemas que essa investida acabaria por ensejar, isso sem contar questões inerentes à competência jurisdicional, a celeridade dos processos judiciais eleitorais e afins.
Unificar, para quê(m)? Eis a pergunta derradeira. E a resposta é: somente para quem deseja concentrar mais poder, além de reduzir o debate público, político e eleitoral, sufocando por completo os Municípios como entes federativos dotados de autonomia que são. A quem interessa? A quem vos escreve, sinceramente, não.
À guisa de conclusão
Empurrar a história. Também é preciso que tenhamos cuidado com esse tipo de frase ou investida, afinal, o empurrão sempre poderá ser para o abismo. A reeleição, como procuramos expor, não é a raiz dos problemas que aqueles que defendem o seu término pretendem atingir. Já a unificação, é de bom alvitre reforçar, representa um ataque à Federação brasileira.
Dizem outros, entretanto: fiquem tranquilos, há regras de transição. Cuidado, novamente! A regra de transição prevista seria apenas um respiro, tal como ocorre com aqueles condenados à cadeira elétrica. Há tempo, se diz. Pois é. Há mesmo (2034 é longe…). Porém, o tempo é implacável. Ele sempre chega.
Desvelemos, no fim das contas, as obviedades do óbvio.
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[1] A esse respeito, p. ex.: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Dialética, 2023.
[2] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 194.
[3] Ibid., p. 194.
[4] Ibid., p. 198.
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