Estamento algorítmico: entre reflexões de Raymundo Faoro ao poder das big techs
23 de junho de 2025, 18h29
No final dos anos 1950, o jurista e historiador Raymundo Faoro escreveu “Os Donos do Poder — Formação do Patronato Político Brasileiro”, obra seminal que perscruta as raízes de nossa deformação institucional. Inspirado na teoria weberiana, Faoro identificou no Brasil um poder que não nasce da sociedade civil, mas de uma elite estatal fechada, o chamado “estamento burocrático“, que transforma a administração pública em propriedade privada — comportamento trazido por Sergio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” na figura do homem cordial.

Digno de exemplo nos dias atuais são as trocas de favores políticos utilizando as estatais, cujas nomeações para cargos de direções e conselhos em empresas públicas demonstram, infelizmente, este aparelhamento ou “estamento” político.
O Brasil não conheceu, segundo Faoro, uma burguesia autônoma. Em vez disso, formou-se uma casta que domina o Estado — e por meio dele, as relações econômicas e sociais. Esse patrimonialismo moderno, travestido de progresso, bloqueia qualquer tentativa de construção de um espaço público democrático, onde o mérito e a lei substituam o favor e a conveniência.
Domínio das big techs
Corta para o século 21. As estruturas do poder mudaram de forma, mas não de essência. O que antes era o domínio do Estado por um grupo fechado, hoje se expressa no domínio das big techs sobre a vida social: A nova face do patrimonialismo.
As gigantes da tecnologia — Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft entre outras — não são apenas empresas: são plataformas infraestruturais, sobre as quais a comunicação pública, o acesso à informação e até os processos políticos passaram a depender.
Shoshana Zuboff, em “A Era do Capitalismo de Vigilância” (2019), define esse fenômeno como uma nova forma de dominação: a extração e comercialização de nossos dados comportamentais para fins de previsão e manipulação. As plataformas passaram a ser donas da linguagem, da visibilidade e da memória.

Byung-Chul Han, em “Psicopolítica — Neoliberalismo e as novas técnicas de poder” (2014), mostra que a dominação contemporânea é mais sutil do que nunca. Em vez da repressão estatal, temos o controle digital disfarçado de liberdade. Em vez do estamento burocrático visível, um poder algorítmico invisível.
Favoritismo algorítmico
O poder mudou de endereço, mas não de natureza. A lógica patrimonial descrita por Faoro está viva e transfigurada. O que antes era o compadrio nas nomeações, hoje é o favoritismo algorítmico. O que antes era o acesso privilegiado ao Estado, hoje é o acesso privilegiado à visibilidade digital, mediado por regras opacas que escapam da regulação pública.
As big techs atuam como novos donos do poder, em escala global, sem controle democrático, sem jurisdição clara e sem accountability. Suas normas privadas passaram a reger a convivência pública. Seus interesses comerciais moldam eleições, opiniões, hábitos e até afetos. Exemplos não faltam: uso de dados do Facebook nas eleições americanas em 2016 (digno de leitura o livro “Uma verdade incômoda” de Sheera Frenkel e Cecilia Kang) e o documentário “Privacidade Hackeada” de 2019. A propósito, se caminha atualmente o debate pelo uso da inteligência artificial generativa e seu controle de riscos, tema já regulamentado na Europa e em debate parlamentar no Congresso Brasileiro — em que visa não uma contenção como os críticos idealizam, mas sim um monitoramento humano para evitar vieses e/ou alucinações da máquina.
A política, em muitos casos, tornou-se refém dessas plataformas, seja por dependência comunicacional, seja pela fragilidade dos Estados em enfrentá-las com regulação eficaz. Muito embora, tenha havido o surgimento da lei de dados europeia na qual foi base fundante na legislação brasileira, se observa que dentro dessa metamorfose global a queda de braço pende favoravelmente para as plataformas.
Tecnofeudalismo
Do capitalismo ao tecnofeudalismo. Yanis Varoufakis, em “Tecnofeudalismo: O que matou o Capitalismo” (2025) aprofunda essa crítica com uma provocação radical: o capitalismo, como o conhecíamos, já não existe. Em seu lugar, emergiu uma nova ordem econômica — o tecnofeudalismo —, onde os donos da infraestrutura digital operam como senhores de feudos conectados, extraindo valor sem mediação de mercados livres ou contratos típicos do capitalismo clássico. O capitalismo morreu. Ele foi substituído por um novo sistema econômico em que o capital não mais comanda os lucros. Agora, quem detém o controle dos feudos digitais — como Amazon, Google, Facebook e Microsoft — extrai rendas como senhores feudais da nuvem.
Se os cidadãos do passado eram contribuintes, consumidores e eleitores, os de hoje são usuários — cuja atividade cotidiana é explorada para fins de predição, vigilância e controle. No lugar do contrato, temos o termo de uso; no lugar do mercado, a plataforma; no lugar da cidadania, o perfil.
A analogia com Faoro se intensifica: se o estamento burocrático brasileiro transformava o público em patrimônio privado, hoje assistimos à colonização do espaço público digital por interesses tecnoprivados, blindados contra os mecanismos clássicos de responsabilização democrática.
Precisamos redescobrir a esfera pública
Faoro escreveu sua obra para revelar as engrenagens ocultas do poder no Brasil em 1950. É nosso papel, hoje, fazer o mesmo com as engrenagens do poder digital transnacional. A crítica ao patrimonialismo precisa ser atualizada, pois os novos “estamentos” não vivem mais no Palácio do Planalto, mas em datacenters espalhados pelo mundo.
Se a modernidade brasileira falhou ao não romper com o patrimonialismo estatal, o desafio do presente é impedir que a sociedade se curve ao patrimonialismo algorítmico — ou pior, ao tecnofeudalismo digital.
O que deve ser ressaltado, é que não se nega a evolução econômica, cultural, comunicacional advindo da tecnologia em vários seguimentos. A preocupação trazida é inerente à potestade das plataformas dentro dessa opacidade digital. A crítica voltada é pela necessidade de uma regulação democrática global e, sobretudo, por novos pactos sociais que não entreguem a vida pública aos termos de uso privados.
___________________________
Referências
Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2021.
Zuboff, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Editora Intrínseca:, 2021.
Han, Byung-Chul. Psicopolítica: Neoliberalismo e as novas técnicas de poder: Âyiné, 2020.
Varoufakis, Yanis. Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo: tradução Érica Nogueira Vieira. São Paulo. Critica. 2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!