Opinião

Conselhos profissionais devem seguir os regulamentos federais da Lei de Licitações?

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23 de junho de 2025, 16h23

A Lei nº 14.133/2021 estabelece, em diversas disposições, sobre a necessidade de edição de regulamentos para a fiel aplicação da norma. No âmbito federal, foram emitidas inúmeras instruções normativas, decretos e portarias com o desiderato de regulamentar tais previsões e, em quase todas, consta que a aplicação se dá no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Crea/SC

À luz do atual entendimento jurisprudencial, os conselhos de fiscalização profissional devem ser classificados como “administração pública autárquica” para fins de submissão à regulamentação editada pelo Poder Executivo federal? Escassos são os estudos — e até mesmo jurisprudência — sobre o tema.

A resposta intuitiva e simplista de que, por configurarem autarquias federais de direito público deveriam submeter-se aos regramentos emitidos pelo Poder Executivo federal, já não encontra mais eco na realidade jurídica.

A fim de responder ao questionamento proposto, mostra-se importante compreender — ainda que de maneira breve — a evolução do entendimento acerca da  natureza jurídica e do regime jurídico aplicável a tais entidades.

Natureza jurídica e regime jurídico

De forma resumida — e sem pretensão de esgotamento —, percebe-se que, ao longo dos anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu no sentido de reconhecer a natureza jurídica de direito público [1] e, posteriormente, em categorizar os conselhos como autarquias especiais [2]. Recentemente, inclusive, o STF delimitou que tais entidades não integram a estrutura orgânica da administração pública. Ou seja, sob a ótica atual do STF, os conselhos compõem uma espécie sui generis de pessoa jurídica de direito público não estatal [3].

No que diz respeito ao entendimento do Tribunal de Contas da União, em um dos julgamentos mais relevantes no que diz respeito a essas entidades — proferido em sede de Fiscalização de Orientação Centralizada [4] —, a Corte assentou que “é preciso reconhecer que a tese que trata de irmanar os conselhos profissionais às autarquias típicas não tem mais o respaldo de diversos pronunciamentos dentro do Supremo Tribunal Federal”.

Diante da indefinição sobre a natureza jurídica dos conselhos, não é simples definir qual regramento se aplica em cada situação. Muitas vezes, a solução está na interpretação sistemática e principiológica da lei, que leva ao reconhecimento de um regime jurídico híbrido.

Especialmente acerca do caso ora submetido ao debate, importante ressaltar que, na visão da Secretaria de Gestão — então vinculada ao Ministério da Economia —, e um dos principais órgãos federais responsáveis pela edição dos regulamentos, os conselhos profissionais não fazem parte da administração pública indireta. Tal constatação encontra-se presente como fundamento do pedido de reexame interposto em face do Acórdão nº 1925/2019, proferido pelo plenário do Tribunal de Contas da União:

as autarquias profissionais são atípicas, pois têm “características” que não são compatíveis com as regras do Decreto-lei 200/1967 aplicáveis às entidades da Administração indireta (…) não se considera razoável e nem coerente com a realidade atual a proposição de um marco regulatório para intervir na histórica autonomia administrativa das entidades de fiscalização profissional. (…) a burocratização excessiva sem o propósito de criação de valor público e os impactos de ordem orçamentária e financeira decorrentes de um eventual enquadramento das chamadas autarquias profissionais no âmbito da Administração Pública.

Para esclarecer melhor o regime jurídico diferenciado que se aplica às entidades profissionais, em manifestação recente [5], importante ressaltar o entendimento expresso da Secretaria de Gestão sobre o tema: “os conselhos profissionais são autarquias especiais, que não têm natureza típica de entes da Administração Pública Federal, e, portanto, não estão obrigados a utilizar a IN 5/2017, que se destina aos órgãos e entidades jurisdicionados (…) Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional.”

Spacca

Ou seja, na visão de um dos principais órgãos responsáveis por emitir tais regulamentos, os conselhos profissionais não estariam obrigados a seguir fielmente as normativas por ele editadas.

Na maior parte dos casos submetidos à apreciação do Tribunal de Contas da União no que diz respeito às licitações efetivadas pelos conselhos profissionais, quando constatada alguma infringência ao regulamento federal, a Corte só considera tal fato se constar, na instrução do processo licitatório, que o próprio Conselho adotou aquela determinada norma como parâmetro [6].

Realidades distintas

No âmbito do executivo federal, a edição dos regulamentos considerou a realidade de órgãos que, no geral, já atingiram certa maturidade burocrática e contam com estrutura estatal mais consolidada. Além disso, foram estruturadas de acordo com a configuração e particularidades operacionais e, consequentemente, não se amoldam de maneira indiscriminada à totalidade das entidades públicas.

Os conselhos profissionais contam com estrutura e realidade operacional totalmente diferentes dos órgãos componentes da administração indireta federal. Além disso, também possuem imensa heterogeneidade entre si, como constatado na auditoria analisada por meio do Acórdão 395/2023 — plenário, do Tribunal de Contas da União.

Quer dizer, mesmo considerando a realidade conjunta dos quase 600 conselhos profissionais atualmente existentes, ainda assim seria difícil pensar na edição de regulamento que se adequasse de maneira homogênea para todos.

Inaplicabilidade compulsória da regulamentação federal aos conselhos profissionais

Assim, por todo exposto anteriormente, defende-se no presente estudo que não há obrigatoriedade de os conselhos profissionais seguirem fielmente as regulamentações editadas pelo Poder Executivo federal, isto é: tal qual entende-se em relação aos estados, aos municípios, e aos Poderes Legislativo e Judiciário, aos conselhos deve ser conferida a liberdade para regulamentar a legislação, desde que, é claro, não inovem ou contrariem a Lei nº 14.133/2021.

A principal fundamentação para tal conclusão, de caráter dogmático, encontra-se no caminho trilhado pelos recentes pronunciamentos judiciais, no sentido de que as entidades profissionais são pessoas jurídicas de direito público, porém, não têm caráter estatal, isto é, não pertencem à administração pública.

Outro embasamento, de ordem prática, se dá no sentido de que as regulamentações não foram pensadas para a realidade operacional dos conselhos profissionais, uma vez que deixaram de ser consideradas suas vicissitudes e particularidades. Tampouco considerou-se a heterogeneidade entre os sistemas de fiscalização profissional.

Soluções

Apresenta-se, então, duas soluções possíveis para delimitar a regulamentação a ser seguida pelas entidades profissionais.

Primeiramente, o modo que mais atenderia ao princípio da eficiência seria cada conselho, ou cada sistema — considerando o Conselho Federal e os regionais — editarem seu próprio regulamento. Dessa maneira, seria considerado o nível de maturidade burocrática e de realidade operacional de cada entidade.

Tal solução respeita o supracitado princípio pois, como já destacado, a principal função do regulamento é estabelecer os procedimentos que serão adotados com a intenção de conferir maior segurança jurídica adaptada à realidade do órgão, para que os responsáveis se sintam mais confortáveis na aplicação da lei. Se não há possibilidade de editar o regulamento utilizando-se do próprio quadro de empregados, nada impede de contratar consultoria especializada para diagnóstico e emissão de regulamentação adaptada à realidade.

Como exemplos de conselhos que inovaram e emitiram sua própria regulamentação, cita-se, primeiramente, o Crea-SC, que publicou a Portaria nº 233/2023 [7] e, inclusive, detalhou de modo diverso algumas questões tratadas pelas normativas federais.

Sobre a “dispensa eletrônica”, por exemplo, sabe-se que a IN Seges/ME nº 67/2021 determina que os órgãos e entidades a ela submetidos adotarão, de modo compulsório, a dispensa de licitação na forma eletrônica. Porém, o Crea-SC, em interessante iniciativa adaptada a sua realidade, dispôs:

6 – As dispensas em razão do valor previstas nos incisos I e II do Artigo 75 da Lei n. 14.133/2021 serão processadas da seguinte forma, observadas as demais disposições deste Regulamento:

a) as contratações até o limite de 30% (trinta por cento) dos valores estabelecidos nos incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, atualizados nos termos do art. 182 da citada Lei, serão preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial do CREA-SC, pelo prazo mínimo de 03 (três) dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa;

b) as contratações acima de 30% (trinta por cento) até o limite dos valores estabelecidos nos incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, atualizados nos termos do art. 182 da citada Lei, serão processadas por meio de dispensa eletrônica, nos termos da regulamentação e do Sistema de Dispensa Eletrônica instituídos pelo Governo Federal.

Ao estabelecer um valor mínimo para deixar de realizar a dispensa eletrônica, o Crea-SC, ao que tudo indica, analisou, de acordo com a realidade dos processos instruídos pela instituição, as vantagens e a mitigação de riscos na utilização indiscriminada da ferramenta disponibilizada pelo governo federal.

A segunda solução proposta trata da possibilidade de o Conselho adotar, de modo expresso, a regulamentação federal como parâmetro. O entendimento defendido neste estudo – no sentido de tais entidades não serem obrigadas a seguirem a regulamentação emitida pelo Poder Executivo federal — não impede que se adote, voluntariamente, tal regramento como referência.

Considerando-se a realidade — e as dificuldades operacionais, financeiras e gerenciais de cada entidade profissional — nada impede que determinado Conselho opte por seguir as normativas federais, desde que o faça expressamente. O artigo 187 da Lei nº 14.133/2021 determina que os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução da Lei e, por interpretação sistemática, a mesma autorização legislativa deve ser estendida aos conselhos profissionais.

O CRF-SP adotou essa solução por meio da Portaria nº 42/2023[8]:

art. 2º

(…)

§ 3°. As contratações diretas via dispensa de licitação deverão ser precedidas dos parâmetros contidos na Instrução Normativa SEGES/ME nº 67/2021, ou normativa que sobrevenha.

art. 7º

(…)

§ 3º. A elaboração do ETP deverá observar os requisitos constantes da Instrução Normativa SEGES/ME nº 58/2022 ou norma posterior que sobrevenha.

Art. 8°. Para a elaboração da pesquisa de preços, observar-se-ão os parâmetros da Instrução Normativa SEGES/ME nº 65/2021 ou norma que sobrevenha.

Ou seja, para o CRF-SP, os normativos já editados no âmbito federal para tratar de determinados assuntos, tais como dispensa eletrônica, elaboração de ETP e pesquisa de preços, servirão de parâmetro obrigatório para os processos instruídos pela entidade.

Por fim, ressalta-se que não devem os conselhos profissionais optarem por utilizar as normativas federais de maneira esporádica, isto é: segui-las em determinado processo licitatório e, em outro, não, sob a justificativa de que não seria obrigado a observá-las. Isso traz insegurança jurídica e torna duvidoso o procedimento adotado.

Tais soluções apresentadas visam auxiliar, no curto e médio prazo, os gestores dos conselhos de fiscalização profissional, considerando-se a premissa verificada neste estudo sobre a inaplicabilidade compulsória dos regulamentos federais a tais entidades.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.717.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário n° 938.837/SP.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 36

[4] Tribunal de Contas da União (Plenário). Acórdão n° 1237/2022.

[5] Constante no Acórdão de Relação nº 694/2020 – Plenário/TCU

[6] Tribunal de Contas da União (Plenário). Acórdão n° 2105/2024.

[7] CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA E AGRONOMIA DE SANTA CATARINA. Portaria nº 233/2023. Dispõe sobre a regulamentação da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, no âmbito do Crea-SC. CREA-SC, Florianópolis/SC: Presidência do CREA-SC, 30 dez. 2023. Disponível aqui.

[8] CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DE SÃO PAULO. Portaria nº 42/2023. CRF-SP, São Paulo/SP: Presidência do CRF-SP, 18 set. 2023. Disponível aqui

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