Opinião

Ilegitimidade do poder normativo do CNJ sobre exercício da jurisdição

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  • é juiz do Trabalho titular da 12ª Vara do Trabalho de Fortaleza e especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza (Unifor).

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23 de junho de 2025, 17h26

Em recente evento promovido pelo Fórum Esfera, o presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministro Luís Roberto Barroso, manifestou preocupação com o volume de ações trabalhistas no país, sugerindo, sem amparo em qualquer estudo, que essa litigiosidade afetaria negativamente a empregabilidade. Naquele mesmo evento, prometeu providências, a cargo do CNJ.

Luiz Silveira/Agência CNJ
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, durante sessão

O presidente do conselho certamente se referia à edição da Resolução nº 586/2024, que dispõe sobre as consequências jurídicas dos acordos extrajudiciais homologados na Justiça do Trabalho, prevendo quitação ampla, geral e irrevogável do contrato de trabalho, além de vedar a homologação parcial de acordos (§3º do artigo 1º) e, segundo veiculado pela imprensa, a posterior judicialização de demandas.

Além dos evidentes obstáculos constitucionais para esse tipo de iniciativa, a serem abordados adiante, a tendência de autoridades judiciárias brasileiras dialogarem exclusivamente com o setor empresarial, desprezando o diálogo social mais amplo, produz essa retórica tão difundida, lastreada em falsas premissas, como dizer que o Brasil concentraria 98% das ações trabalhistas do mundo, em volume muito superiores a países como Estados Unidos e Alemanha [1], fruto de uma  suposta “indústria de reclamações trabalhistas”, patrocinada por advogados sem escrúpulos, como subliminarmente referido, evidenciando preconceito contra aqueles que militam na Justiça do Trabalho e ignorância sobre a complexidade e a realidade das relações laborais em um país tão desigual como o nosso, realidade com a qual se deparam os juízes, todos os dias, nas milhares de audiências trabalhistas por eles realizadas em todo o Brasil.

Se é verdade que a Justiça do Trabalho recebeu 2,1 milhões de novos processos no ano de 2024, representando um aumento de 14,1% em comparação com o ano anterior, com um estoque de 5,4 milhões de processos pendentes, verdade também é que a Justiça estadual possui um acúmulo de 64,9 milhões de casos em tramitação, representando 77% do total de processos ativos no Brasil, enquanto a Justiça Federal brasileira tem cerca de 12,6 milhões de processos em tramitação.

Mais que isso, segundo dados informativos produzidos pelo CNJ, os maiores litigantes do sistema judicial brasileiro são o INSS, a Fazenda Pública e as instituições do sistema financeiro, realidade que não muda substancialmente quando filtrada a pesquisa apenas para a Justiça do Trabalho.

O Conselho Nacional de Justiça, para tratar casos de litigância abusiva e predatória, anteriormente havia editado a Resolução CNJ nº 471/2022, que, ao contrário da Resolução nº 586/2024, não se dispôs a disciplinar atos de natureza jurisdicional, limitando-se a identificar  padrões de demandas predatórias; estimular a comunicação entre unidades judiciárias e corregedorias; o intercâmbio de dados com órgãos como o MP, OAB e Defensorias; e o controle estatístico para monitoramento de ajuizamento massivo e incentivo à conciliação e autocomposição real.

Ilegitimidade do poder normativo

Mesmo que o Conselho Nacional de Justiça esteja atento, de uma forma global, a esses fenômenos de uma economia forte como a nossa, mas imersa em vícios culturais, como o uso do sistema de justiça para forcejar o malogro de direitos das classes menos favorecidas e de segmentos das pequenas e médias empresas nacionais, as suas ações encontram limites claros e objetivos, não sendo permitida, em hipótese alguma, a extrapolação de suas atribuições institucionais.

Spacca

O papel reservado constitucionalmente ao Conselho Nacional de Justiça, na forma do parágrafo 4º do artigo 103-B , da CF, compreende deveres de zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo editar atos normativos dentro de sua competência e recomendar providências, além de fiscalizar a legalidade dos atos administrativos dos membros e órgãos do Judiciário com base no artigo 37 da Constituição, podendo revogar, modificar ou fixar prazo para correção dos atos, mas sem interferir nas decisões judiciais.

Fruto da Emenda Constitucional nº 45, o papel dessa benfazeja novidade institucional já foi objeto de muitas ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal como, por exemplo, a ADI 3.367, na qual restou assentado que o CNJ é órgão de natureza exclusivamente administrativa, destinado ao “controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura”, destacando o ministro Eros Grau, naquele julgamento, que “(…) ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída competência nenhuma que permita a sua interferência na independência funcional do magistrado. Cabe a ele, exclusivamente, o ‘controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes‘, nada mais do que isso. (..) razão pela qual desempenha autêntico controle interno — não exerce função jurisdicional.

Nessa mesma linha, no julgamento do MS 28.598-MC-AgR/DF o relator ministro Celso de Mello, disse que o CNJ não possui competência constitucional para apreciar, revisar ou interferir em atos de conteúdo jurisdicional praticados por magistrados ou tribunais, sendo-lhe vedado, inclusive por seus membros ou corregedor, fiscalizar ou suspender decisões judiciais, destacando que qualquer tentativa nesse sentido configura atuação “ultra vires”, revelando-se arbitrária e sem amparo jurídico-constitucional.

Assim, quaisquer provimentos administrativos, de que natureza forem — ainda que dotados de intenções legítimas ou lastreados em pretensões organizacionais —, não podem ser alçados à condição de fontes normativas vinculantes para a atuação jurisdicional e isso porque, à luz do artigo 22, I, da Constituição da República, a competência legislativa sobre direito processual é privativa da União, exercida mediante o devido processo legislativo nas Casas do Congresso Nacional, razão pela qual os atos administrativos, desprovidos de força normativa primária, não ostentam legitimidade para reger o exercício da atividade judicante.

No caso da Justiça do Trabalho, essa cláusula de reserva de lei (artigo 22,I) fica ainda mais clara quando o artigo 113 , da Lei Maior, preceitua que a lei disporá sobre a constituição, investidura, jurisdição, competência, garantias e condições de exercício dos órgãos da Justiça do Trabalho”.

Dever de todos

Não é custoso lembrar que o juiz-administrador, atuando como tal, unipessoalmente ou na composição do colegiados de conselhos judiciários, está vinculado ao princípio da legalidade, comprometendo-se, por decorrência, com o primado da reserva da lei, acima referido, cuja quadratura foi referida pelo ministro Celso de Mello,  nos autos da ACO-QO nº 1.048, “como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações (..)”.

Fora desses limites, apenas as decisões judiciais, em ações de controle objetivo da constitucionalidade ou em temas de repercussão geral, podem vincular legitimamente a jurisdição, ao que não se equiparam os atos administrativos do Conselho Nacional de Justiça.

No caso específico dos efeitos da quitação passada em sede acordos judiciais ou extrajudiciais, a lei material comum já disciplina, em seus artigos 319 e 328 do CC, a extinção da obrigação pelo pagamento, sem ampliar os efeitos da quitação para além da obrigação específica, muito longe, portanto, de conferir eficácia expansiva automática para alcançar matérias estranhas à transação ou ao negócio jurídico subjacente.

Mesmo o CPC, a exemplo do artigo 869, §6º, estabelece que a quitação é restrita às quantias recebidas, o que se repete no artigo 906, do mesmo Código, também distante da ideia de abarcar o conjunto da relação jurídica a que se refere.

Da mesma forma, não se pode interpretar ampliativamente o disposto no artigo 477-B, da CLT, que a partir de 2017 estabeleceu a quitação geral de contratos de trabalho quando houver adesão a acordos em planos de demissão voluntária, até porque, nessas situações, os aderentes recebem valores expressivos como estímulo ao desligamento, o que não ocorre nas rescisões contratuais comuns.

Os  juízes não podem descumprir os regramentos legais de quitação, mas é igualmente ilegítimo, à luz da ordem jurídica, lhes impor determinações de natureza administrativa, como se índole processual tivessem, o que, além de contrariar os objetivos institucionais do CNJ, malfere cláusula constitucionais de reserva de lei e  agride a independência [2] dos juízes, tema de relevância indiscutível, em todos as democracias, como assinalado no Código de Bangalore e no Estatuto do Juiz Ibero-Americano, neste último constando, em linhas gerais, que “os juízes não estão submetidos a autoridades judiciais superiores, sem prejuízo da faculdade destas de revisar as decisões jurisdicionais por meio dos recursos legalmente estabelecidos e da força que cada ordenamento nacional atribua à jurisprudência e aos precedentes emanados das Cortes Superiores e Tribunais Superiores”, ideias às quais se acostam doutrinadores da estirpe de José Frederico Marques, Cândido Rangel Dinamarco, Moacyr Amaral Santos, Ada Pellegrini e  Fábio Konder Comparato.

Em conclusão, não é favor, mas dever de todos, em prol da magistratura independente e da sociedade livre, respeitar e assegurar a independência dos juízes, os princípios da legalidade e da reserva de lei, sob pena de se consumar intervenção imprópria , a comprometer o funcionamento das instituições judiciárias e o Estado de Direito.

 


[1] Estudo do professor Cássio Casagrande, Professor de Direito Constitucional da UFF e Procurador do Trabalho, aponta que 11,18% das ações cíveis na Justiça Federal americana são de natureza trabalhista, com estimativa de 1,7 milhão de ações por ano, enquanto na Alemanha o número chega a 600 mil/ano, como revelado do Professor Wolfgang Daubler, da Universidade de Bremen. A própria OIT já declarou não haver estudo confiável que permita comparação direta entre países, dada a diversidade de contextos populacionais, econômicos, jurídicos e culturais.

[2] Nas palavras do professor Dalmo de Abreu Dallari, “[…] longe de ser um privilégio para os juízes, a independência (..) é necessária para o povo”, já que “[…] a Magistratura independente é que pode garantir a eficácia das regras de comportamento social inspiradas na busca da Justiça”.

 

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