Opinião

ADPF 1.216/DF: dos limites dos atos infralegais ao exercício da imunidade religiosa

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23 de junho de 2025, 19h35

O artigo 150, VI, alínea ‘b’, da Constituição assegura o direito à imunidade tributária para as entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes. Essa imunidade visa a garantir que o Estado seja não confessional ou simplesmente laico, respeitando as atividades e a liberdade dos cidadãos de escolher qualquer religião ou a opção por não ter religião alguma.

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É sempre necessário referir que um Estado laico ou não confessional não pode ser confundido com um Estado ateu ou promotor da ausência de religião, o que reforça a conclusão de que o Estado não pode criar empecilhos para as atividades religiosas. Isso porque ao criar constrangimentos as atividades religiosas, o poder público acabará, em última análise, em interferir no direito fundamental de liberdade.

Nesse sentido, aliás, cabe ressaltar que, ao julgar a ADI nº 4.439/DF, em que se discutia a constitucionalidade de se ofertar ensino religioso nas escolas  de ensino fundamental, com caráter confessional (isto é, ligado a uma religião específica), o ministro Dias Toffoli esclareceu em seu voto que “a laicidade estatal prevista no artigo 19, inciso I, da Constituição não pode, assim, ser interpretada separadamente das citadas ressalvas constitucionais à separação entre Estado e Igreja e da proteção constitucional da liberdade de crença no sentido amplo mencionado”.

Logo, a imunidade tributária prevista no artigo 150, VI, alínea ‘b’, da Constituição se trata de uma verdadeira limitação à intervenção estatal nas atividades das entidades religiosas e templos de qualquer culto para que seja assegurado o direito à liberdade de crença. Isso significa que o Estado, detentor do poder de tributar, defronta-se com uma verdadeira limitação ao seu poder em favor de um direito fundamental.

Além disso, essa imunidade se justifica pela atuação das entidades religiosas, que ultrapassa o campo espiritual, exercendo verdadeira função social. Isso porque as entidades religiosas prestam assistência a comunidades vulneráveis, realizam atividades educacionais, de saúde, de combate à dependência química, apoio a pessoas em situação de rua, e até de ressocialização de apenados. Ignorar essa dimensão social e impor entraves burocráticos desproporcionais é, além de inconstitucional, um desrespeito à realidade brasileira e à relevância dessas organizações para a sociedade.

Não se pode estabelecer exigências de templos

Portanto, o Estado não poderia, por atos infralegais, por exemplo, estabelecer exigências para os templos religiosos conseguirem usufruir dessa imunidade. Isso porque a criação de regras administrativas que pretendam previamente estabelecer limites para que a imunidade seja “autorizada” é tratada como se fosse uma concessão do Estado para os templos religiosos — quando, na realidade, trata-se de uma limitação ao próprio poder estatal.

Aliás, a imunidade é uma garantia fundamental prevista na Constituição, assegurando à entidade religiosa o exercício de um direito subjetivo, ou seja, não se trata de um benefício outorgado discricionariamente pelo Estado ao particular. Isso significa que o exercício dessa garantia fundamental da Constituição depende apenas de a instituição ser uma entidade religiosa e os resultados de suas atividades serem destinados a finalidades essenciais da religião ou do próprio templo.

Spacca

Não se quer afirmar, contudo, que o exercício ao direito à imunidade tributária está livre para o cometimento de arbitrariedades e desvios pelas instituições, mas que os requisitos para o exercício do direito devem estar previstos na Constituição e/ou na lei complementar autorizada a tratar da matéria pelo texto constitucional, conforme previsão do artigo 146, inciso II, da Constituição. Ou seja, o Estado não pode criar empecilhos a tal exercício livremente, mas apenas verificar o atendimento dos requisitos para o contribuinte exercer o direito que já estão previstos no texto constitucional e na lei complementar.

Dessa forma, caso o templo não apresente uma documentação contábil regular, por exemplo, ele deve ser multado pela infração, e não ter seu direito à imunidade tributária restringido ou suspenso, como prevê, indevidamente, o artigo 178 combinado com os artigos 179 e 183 do Decreto nº 9.580/2018 (RIR/2018). Afinal, o descumprimento de obrigações acessórias não poderia provocar a cobrança de tributos, como consequência pela perda ou suspensão do exercício à imunidade religiosa.

Isso porque o direito à imunidade tributária dos templos e religiões está expressamente previsto na Constituição como uma limitação ao poder de tributar estatal. Logo, seria um contrassenso admitir que aquele que está limitado de exercer seu poder sobre determinada circunstância (no caso o Estado) possa livremente editar atos regulamentares restringindo o exercício desse direito.

Exercício da imunidade religiosa por atos infralegais

Aliás, esses atos regulamentares (decretos, instruções normativas, portarias, etc.) não podem exercer o poder de restrição sobre qualquer direito, pelo simples motivo de que tais atos apenas podem regulamentar o que já está previsto na lei ou na própria Constituição.

O que se quer dizer é que o Estado não poder criar restrições ao exercício da imunidade religiosa por atos infralegais, devendo exigir, no exercício de eventual fiscalização, apenas o preenchimento dos requisitos previstos no texto constitucional e na  lei complementar que regulamenta o tema.

Não por acaso que as restrições ao direito de exercer a imunidade tributária pelos templos e entidades religiosas levou ao ajuizamento da ADPF nº 1.216/DF justamente discutindo a ilegalidade e, consequentemente, a inconstitucionalidade de uma série de atos normativos infralegais que acabam restringindo o exercício da imunidade religiosa.

Por fim, este artigo não pretende esgotar o tema, mas sim fomentar o debate em torno da legalidade e constitucionalidade dos atos infralegais que impõem restrições indevidas à imunidade tributária asseguradas na Constituição (seja para entidades religiosas, seja para os demais beneficiários de imunidade tributária previstos no texto constitucional). Qualquer tentativa de restringir tal garantia sem respaldo constitucional configura ofensa a direitos fundamentais, com impactos concretos sobre a vida dos brasileiros.

Autores

  • é advogado tributarista no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, graduado pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudo Tributários (IBET).

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