Responsabilização administrativa e judicial por violação da Lei Racial de Concursos Públicos Federais
22 de junho de 2025, 9h23

Recentemente, entrou em vigor a Lei Federal nº 15.142, de 3 de junho de 2025 [1], que amplia a política de cotas raciais para concursos públicos federais, revogando a Lei Federal nº 12.990, de 9 de junho de 2014. [2] Convém destacar que, além do aumento do percentual de 20% para 30%, o benefício antes previsto para negros (pretos ou pardos) passa a ser estendido a indígenas e quilombolas.
Dentre os dispositivos que chamam a atenção sob a óptica do direito administrativo sancionador, há o artigo 4º [3] da Lei Federal nº 15.142/2025.
Mas antes de se prosseguir, convém esclarecer que o direito administrativo sancionador compreende os modelos jurídicos que protegem bens jurídicos do Estado-administração ou que ele deve tutelar no exercício de seus poderes, abrangendo: os fatos jurídicos ilícitos que são pressupostos para aplicação de sanções retributivas de competência do Estado-administração; o processo e o julgamento dessas infrações pelo Estado-administração; e os fatos jurídicos ilícitos que são pressupostos para a aplicação de sanções retributivas de competência do Estado-jurisdição, no exercício da jurisdição civil ou da jurisdição eleitoral. [4]
De acordo com o artigo 4º da Lei Federal nº 15.142/2025, o candidato que não se enquadrar como preto, pardo, indígena ou quilombola, e procurar se beneficiar da cota racial por meio de fraude ou com má-fé, deverá ser excluído do concurso público, se ele estiver em andamento, ou ter sua nomeação ou contratação invalidada, sem prejuízo de “outras sanções cabíveis”.
Sanções cabíveis
Tanto a exclusão do candidato em apreço como a invalidação de sua admissão na administração pública deve ser precedida do devido processo legal. De todo modo, se comprovada a fraude ou a má-fé dele, o Ministério Público deve ser comunicado para a investigação de ilícito penal; e a Advocacia-Geral da União deve ser informada para fins de apuração de ilícito civil contra o patrimônio público federal.
O ponto que traz o direito administrativo sancionador na interpretação e aplicação da Lei Federal nº 15.142/2025 é justamente a expressão “outras sanções cabíveis” no inciso II, § 1º, de seu artigo 4º.
Com a decretação da nulidade ou anulação da nomeação para o cargo público, aquele que foi indevidamente nomeado deixa de ser agente público e, portanto, cessa a relação jurídica de trabalho que ele mantinha com o Estado-administração. No caso da fraude ou má-fé no concurso público que justificou a nomeação, ficaria sem sentido sustentar a responsabilidade administrativa disciplinar por um fato que precedeu o seu ingresso na administração pública.

Por outro lado, recorde-se que o crime contra a administração pública e a improbidade administrativa são hipóteses de demissão do servidor público federal efetivo. [5] Nesse contexto, e presumindo que a fraude ou má-fé à lei racial seja ilícito penal ou ato de improbidade administrativa no caso concreto, a posse do agente nomeado no cargo público daria a consumação do ilícito disciplinar.
Enquadramento da fraude ou má-fé
Vê-se muita dificuldade no enquadramento da fraude ou má-fé à lei racial dentre os tipos penais classificados como crimes contra a administração pública. [6] Em princípio, pode-se discutir o incurso do candidato infrator no crime de estelionato, [7] obrigando o Estado-administração a estender o alcance de “corrupção” na Lei Federal nº 8.112/1990 [8] para justificar a demissão dessa pessoa.
Deixe-se em suspenso, por enquanto, a possibilidade da demissão do servidor público federal efetivo por improbidade administrativa, com base na fraude ou má-fé à lei racial.
No plano da responsabilidade judicial, pode-se cogitar a presença do tipo constante do artigo 11, V, [9] da Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992. [10]
Partindo-se da premissa de que o infrator está indevidamente exercendo cargo público efetivo ou vitalício por vício no processo de provimento, ter-se-ia que se considerar que a nomeação nula ou anulável não impediria o seu enquadramento no conceito de agente público previsto no artigo 2º [11] da Lei Federal nº 8.429/1992.
Há o mesmo problema do fato antijurídico precede a conversão do candidato em agente público, obrigando o Ministério Público ou a Advocacia Pública comprovarem em juízo que a posse do fraudador ou desonesto no cargo público seria a consumação do ato de improbidade administrativa.
Esfera administrativa disciplinar
Nesse diapasão, rejeitada essa tese na esfera judicial civil, o Estado-administração teria que dar à “improbidade administrativa” da Lei Federal nº 8.112/1990 uma interpretação ampliativa, para além dos tipos infracionais da Lei Federal nº 8.429/1992, para se punir o infrator da lei racial na esfera administrativa disciplinar.
Finalmente, seja qual for o cenário que a jurisprudência administrativa e judicial reserva na operacionalização da Lei Federal nº 15.142/2025 durante sua vigência, deve-se advertir que a constatação da fraude ou má-fé passa necessariamente pela contraposição dos critérios de identificação do beneficiário com a conduta do candidato que busca o benefício racial no concurso público federal. [12]
Quanto mais vagos ou ambíguos esses parâmetros forem, mais vulneráveis ao arbítrio administrativo ou judicial ficarão os chamados concurseiros. Isso não pode deixar de ser levado em consideração na aplicação das “outras sanções cabíveis”.
[1] “Reserva às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas o percentual de 30% (trinta por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União e nos processos seletivos simplificados para o recrutamento de pessoal nas hipóteses de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público para os órgãos da administração pública federal direta, as autarquias e as fundações públicas; e revoga a Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014”.
[2] “Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”.
[3] “Art. 4º Na hipótese de indícios ou denúncias de fraude ou má-fé na autodeclaração, o órgão ou a entidade responsável pelo concurso público ou pelo processo seletivo simplificado instaurará procedimento administrativo para averiguação dos fatos, respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
§ 1º Na hipótese de o procedimento administrativo de que trata o caput deste artigo concluir pela ocorrência de fraude ou má-fé, o candidato:
I – será eliminado do concurso público ou do processo seletivo simplificado, caso o certame ainda esteja em andamento; ou
II – terá anulada a sua admissão ao cargo ou ao emprego público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, caso já tenha sido nomeado.
§ 2º Nas hipóteses previstas no § 1º deste artigo, o resultado do procedimento será encaminhado:
I – ao Ministério Público, para apuração de eventual ocorrência de ilícito penal; e
II – à Advocacia-Geral da União, para apuração da necessidade de ressarcimento ao erário”.
[4] O conceito de ilícito administrativo aqui adotado, consultar: Vladimir da Rocha França, O fato jurídico no Direito Administrativo brasileiro, Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, São Paulo: v. 14/2020, pp. 139-164, set. 2020; Fábio Medina Osório, Direito Administrativo Sancionador, 8 ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[5] Vide o art. 132, I e IV, da Lei Federal nº 8.112, de 11 de setembro de 1990 (“Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais”).
[6] Vide os arts. 312 a 359-H, todos do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (“Código Penal”)
[7] Vide o art. 171, caput, do Código Penal.
[8] Vide o art. 132, XI, da Lei Federal nº 8.112/1990.
[9] “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:
(…)
V – frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”.
[10] “Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências”.
[11] “Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei”.
[12] Mantém-se aqui, a mesma posição que se expôs em trabalho anterior, que tratou de tópico da Lei Federal nº 12.990/2014. Vide Vladimir da Rocha França, Validade e eficácia da autodeclaração de negro para fins de concurso público federal, Colunistas – Direito do Estado, Ano 2016, Num. 63, disponível aqui
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!