Regulação da cannabis no Brasil: regeneração ou transgenia?
22 de junho de 2025, 11h19
O governo federal está em fase de implementação do plano de ação para regulamentação e fiscalização da produção e acesso a derivados de cannabis para fins exclusivamente medicinais, em virtude da decisão do STJ no processo envolvendo cânhamo (IAC 16).

Por força do litígio empresarial da biotecnologia do agronegócio, o STJ entendeu que não pode ser proibido o cânhamo industrial (hemp), variedade da cannabis com teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%. Por isso, existe a necessidade de ter regulamentos e procedimentos administrativos para importação com finalidade de cultivo.
No curso do processo de regulamentação, está prevista a edição de Portaria Normativa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) com requisitos fitossanitários para importação de sementes até o dia 31 de julho de 2025.
De se lembrar que cultivar local ou tradicional consiste em variedade adaptada por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, indígenas, que, a critério do Mapa, não se caracterizam como semelhantes às cultivares comerciais (artigo 2º, XVI, Lei 10.711/2003).
Autocultivo doméstico
É importante que a futura norma dispense pacientes com autocultivo doméstico ou associações de pacientes com cultivo do preenchimento de inscrição da semente, quando da importação, no Registro Nacional de Cultivares (RNC). Ao menos, que se simplifique o procedimento administrativo. A inscrição poderia ser facultativa, caso pacientes ou associações de pacientes queiram inscrever cultivar com origem certificada.
Atualmente estão isentos da inscrição no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si (artigo 8º, §3º, Lei 10.711/2003).
Por isso, a relevância de associações de pacientes com cannabis de se inscreverem como agricultores familiares e/ou que este entendimento de isenção de inscrição no Renasem seja estendido quando da regulamentação.

A preservação de germoplasma de espécies é atribuição institucional do MAPA (artigo 6º, §2º, Decreto 12.097/2024). De modo a manter vivo o patrimônio genético da cannabis, a política pública para cannabis com fins medicinais deve garantir os direitos dos agricultores [1] diante do regramento existente de proteção intelectual de obtentores de sementes.
Neste contexto, deve ser garantido o livre intercâmbio de sementes e mudas entre associações de pacientes com a finalidade de fitomelhoramento participativo, seleção varietal participativa e melhoramento genético participativo de variedades em bancos comunitários de germoplasma para fins medicinais e de fibra. Trata-se do exercício do direito de participação dos benefícios advindos de recursos fitogenéticos [artigo 9.2 b), Decreto 6.476/2008].
Tratar de banco de germoplasma de cannabis é assunto de conservação e uso sustentável de recursos fitogenéticos com a participação da sociedade civil. A exemplo de experiências com participação da Embrapa, de se apoiar a constituição de banco comunitário de germoplasma, concedendo-se licenças administrativas proporcionais para associações de pacientes com produção artesanal de extratos de cannabis.
Variedades geneticamente modificadas
Recorde-se que o STJ aludiu à porcentagem de 0,3% de THC para definir cânhamo, prática comum na regulamentação dos países, o que pode fazer surgir variedades geneticamente modificadas para atingimento do referido limite.
O cultivo correto de cânhamo, de preferência em rotação orgânica com outras culturas ou em agrofloresta, pode ser uma fonte de polinização para abelhas [2] e reduzir/dispensar o uso de pesticidas [3].
O cânhamo contribui com o atingimento dos objetivos do Pacto Ecológico Europeu por: armazenar carbono; quebrar ciclos de doenças; prevenir erosão do solo; polinizar no ciclo de floração, contribuindo com a biodiversidade; e baixo ou nenhum uso de pesticidas [4].
Regulamentação no Brasil
No Brasil, a regulamentação vindoura do cânhamo com fins industriais e/ou da cannabis com fins medicinais deve contemplar a realidade de pacientes com autocultivo doméstico e associações de pacientes com cultivo, pois será necessário definir distâncias mínimas entre cultivos.
A depender de como forem realizados os cultivos de cânhamo no Brasil, se feitos em monocultura, para não falar de variedades transgênicas, o risco é de utilização de técnicas agressivas, químicas e poluentes de agricultura.
É direito humano ser informado sobre os riscos do avanço biotecnológico de organismos genéticos modificados. Qual o risco de uma variedade genética de cânhamo para a biodiversidade? Deve ser garantida a transparência genética, que deriva também do direito humano de desfrutar do progresso da ciência [5] [artigo 15.1 b), Decreto 591/1992].
Conclusão
Por fim, é possível compreender o cânhamo também pela finalidade dos usos de sementes e fibras. Neste sentido, é de se possibilitar o aproveitamento integral da planta, o seu múltiplo uso, quando possível, com o desenvolvimento de produtos a partir dos resíduos/bagaços derivados de cultivo de associações de pacientes, ainda que derivados de plantas com altos teores de THC.
Em contexto de emergência climática, o cultivo orgânico de cannabis por associações de pacientes e a constituição de bancos comunitários de germoplasma deve ser continuamente protegido e apoiado pela prestação de serviços ecossistêmicos, independentemente do teor de THC na planta, simplificando-se requisitos agrícolas e sanitários para uma regulamentação específica/proporcional à realidade de produção artesanal de remédios caseiros restritos a associados.
[1] RIBOULET-ZEMOULI. Cannabis sostenible. Manual de Políticas Públicas – Alinear las políticas del
Cannabis y del cáñamo con la Agenda 2030 de desarrollo sostenible. OECCC / FAAAT, Madrid: 2020, p. 77
Disponível aqui
[2] RIBOULET-ZEMOULI, Op. Cit. 2020, p. 76
[3] ROBINSON, Rowan. O Grande Livro da Cannabis. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro: 1999, pp. 15,25
[4] COMISSÃO EUROPEIA. Cânhamo. Disponível aqui [5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Comitê em Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comentário Geranl nº 25. 30 de abril de 2020, p. 12, disponível aqui
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