Opinião

Pessoas não-binárias e o direito eleitoral: identificação cadastral de gênero

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  • é doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Membro da Abradep e Caoste. Pesquisador professor e autor de Liberdade de Expressão e Desinformação em Contextos Eleitorais pela Editora Fórum.

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22 de junho de 2025, 13h21

O Brasil é um país que vive e perpetua preconceitos e discriminações estruturais. Quando se fala da diversidade sexual e de gênero, a questão fica ainda mais escancarada. A população LGBTI+, que em junho celebra seu orgulho de existir e resistir, ainda não tem uma lei federal que lhes garanta direitos. O movimento, que, contraditoriamente, é acusado de tentar instaurar uma ditadura, destruir a família, desvirtuar a infância e os valores cristãos, sempre precisa batalhar para conquistar garantias mínimas e completamente naturalizadas por pessoas heteroafetivas, tais como o casamento, a herança, a adoção e até mesmo a possibilidade de doação de sangue [1].

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O Judiciário, sobretudo nos últimos anos, tem sido a principal arena utilizada para que a isonomia seja aplicada no país, especialmente porque o texto constitucional elenca a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos. Também é importante ressaltar que, entre os objetivos fundamentais eleitos pela Lei Maior, está a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Nesse contexto de vitórias da população LGBTI+ através da judicialização de demandas, tem-se a recente possibilidade de indicar o gênero neutro na certidão de nascimento. A decisão foi tomada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça [2]  e trará impactos em diversos ramos do direito pátrio. Neste pequeno espaço, serão discutidas questões que precisarão ser enfrentadas pela legislação e pelas cortes eleitorais.

Parte-se, aqui, do pressuposto de que gênero, diferentemente de sexo, é uma construção social que estabeleceu papéis aos sujeitos [3], agrupando-os em duas grandes esferas: a masculina e a feminina. Nas palavras de Ann Oakley [4]: “Sexo é um termo biológico; ‘gênero’, um termo psicológico e cultural. O senso comum sugere que há apenas duas maneiras de olhar para a mesma divisão e que alguém que, digamos, pertença ao sexo feminino pertencerá automaticamente ao gênero correspondente (feminino).

Na realidade, não é bem assim

Ser um homem ou uma mulher, um menino ou uma menina, é tanto uma atividade — como vestir-se, gesticular, ter um trabalho, redes de sociabilidades e personalidade — quanto possuir um tipo particular de genitais”. Sendo uma construção social, cada sujeito pode reivindicar a própria identidade de gênero a partir de sua vivência e autopercepção.

Por isso, os Princípios de Yogyakarta [5] conceituam identidade de gênero como “a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”.

Enquanto alguns indivíduos se enquadram nos estereótipos impostos ao nascimento, outros não se sentem confortáveis e acabam performando, socialmente, uma identidade distinta daquela designada com base em um critério médico/biológico que faz a correspondência automática pênis/homem e vagina/mulher. Ocorre que algumas pessoas, embora tenham nascido com um pênis, performam a feminilidade e são, portanto, mulheres.

Outras, embora tenham nascido com uma vagina, performam a masculinidade e, assim, são homens. Nesses casos, tem-se sujeitos transgêneros, uma vez que sua identidade é dissonante daquela relacionada pela sociedade com sua genitália. A perspectiva de transgeneridade adotada pela sociedade ainda circula muito dentro do binômio homem/mulher, no sentido de que estas são as únicas opções de gênero.

Tanto é assim que toda nossa legislação e jurisprudência, quando precisa fazer alguma distinção de gênero, o faz com base em uma perspectiva binária [6]: ou você é homem ou você é mulher, seja cisgênero [7], seja transgênero. Contudo, dentro do espectro da transgeneridade, existem as pessoas não-binárias. O termo é utilizado como um amplo guarda-chuva que abarca todos aqueles que não se encaixam na binariedade, isto é, dentro daquilo que se convencionou como masculino ou feminino.

Pessoas não-binárias transitam entre os gêneros e não se prendem a nada que as limite, sejam roupas, maneirismos ou signos visuais. As pessoas não-binárias mesclam (ou rejeitam) os elementos tipicamente masculinos e femininos em sua vivência: unhas pintadas, maquiagem, vestimenta. Nada disso tem compromisso com um único gênero. E se gênero é construção social, por que não considerar que essa construção pode ser refeita?

O Superior Tribunal de Justiça, compreendendo tal dilema, por meio de sua 3ª Turma, autorizou que uma pessoa não-binária fizesse constar “gênero neutro” em sua certidão de nascimento. A paradigmática decisão tem potencial de causar um efeito cascata no Direito Eleitoral, promovendo discussões interessantíssimas.

Primeiro questionamento

Como a identificação de gênero nos cadastros eleitorais será adaptada? A Resolução TSE nº 23.659/2019 dispõe, no artigo 42, III, que o campo gênero deverá ser preenchido com as opções “masculino” e “feminino”. Já no inciso III, traz o campo identidade de gênero com as opções mínimas “cisgênero”, “transgênero” e “prefere não informar”.

Suponha-se que o indivíduo que teve seu recurso provido pela 3ª Turma do STJ chegue com sua certidão de nascimento retificada, a qual consta “gênero neutro”, e peça que o cartório eleitoral realize uma operação de revisão para retificar o seu gênero. Como operacionalizar isso no cadastro? Da maneira como a resolução está escrita e implementada, não há espaço para gênero neutro. Primeiro, deve ser preenchido o campo gênero para, em seguida, preencher o campo identidade. O campo gênero só tem as opções “masculino” e “feminino”. Em última medida, o próprio Estado estará descumprindo uma decisão judicial.

Não custa lembrar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio de sua Opinião Consultiva 24/2017 [8], trouxe a premissa de que o gênero é autodeclaratório: “A mudança de nome e, em geral, a adequação dos registros públicos e dos documentos de identidade para que estes sejam conforme a identidade de gênero autopercebida constitui um direito protegido pelos artigos 3°, 7.1, 11.2 e 18 da Convenção Americana, em relação com o 1.1 e 24 do mesmo instrumento, pelo que os Estados estão obrigados a reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins, nos termos estabelecidos nos parágrafos 85 a 116”. Se o gênero é autopercebido, a experiência não-binária deve ser contemplada e a ausência do campo correspondente representa uma violação de direitos humanos.

Segundo questionamento

Haverá implicações para as cotas de gênero nas eleições? Pela regra atual da Lei nº 9.504/1997, as candidaturas devem ser preenchidas por, no mínimo, 30% de candidatos de um gênero e, no máximo, 70% por candidatos de outro. Embora a norma utilize o termo “sexo”, o Tribunal Superior Eleitoral, na consulta 0604054-5, de relatoria do ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, assentou que a expressão “cada sexo” refere-se a gênero e não a sexo biológico. Portanto, homens e mulheres trans binários podem concorrer em um dos dois gêneros, consoante sua autopercepção.

Dúvidas pairam, todavia, sobre como enquadrar as pessoas não-binárias nas cotas. Se um partido tem 10 candidatos: 6 homens, 3 mulheres e 1 pessoa não-binária, como o cálculo será feito? Desconsiderando o gênero neutro e fazendo as contas somente em relação aos gêneros masculino e feminino? Talvez seja uma possibilidade, na medida em que as cotas pressupõem a binaridade de gênero.

Terceiro questionamento

Como ficará a distribuição de recursos para mulheres, nos termos da Emenda Constitucional nº 117/2022? Considerando que pessoas não-binárias sofrem grande exclusão social e podem se identificar com parcelas do signo feminino, seria justo que recebessem recursos para ampliar suas candidaturas? Apenas a título de reflexão, algumas pessoas não-binárias nasceram com vagina e podem ter passabilidade feminina. Se elas sofrem as consequências da misoginia e exclusão, devem também receber incentivo para participar das campanhas eleitorais?

É urgente que a Justiça Eleitoral promova debates sobre possibilidades e soluções, com participação da sociedade civil, academia e sistema de justiça. Entidades como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), por exemplo, podem articular uma consulta a ser respondida pelo TSE, fomentando a discussão e pautando o debate em cenário nacional.

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[1] A decisão sobre doação de sangue pode ser encontrada aqui

[2] O número do processo não foi divulgado por razões de segredo de justiça, mas a corte divulgou uma matéria que pode ser aqui consultada aqui

[3] O objetivo deste texto não é polemizar gênero, mas demonstrar as implicações jurídicas da decisão. De qualquer forma, entende-se como correto o entendimento do STJ na medida em que respeita a individualidade das pessoas trans não-binárias.

[4] Sexo e Gênero. Tradução: Claudenilson Dias e Leonardo Coelho. Revista Feminismos.Vol.4, N.1, Jan – Abr. 2016, p. 64.

[5] Documento internacional, sem força vinculante, que estabelece diversos princípios de direitos humanos voltados para o campo do gênero e sexualidade. Leia aqui

[6] Um exemplo são as aposentadorias previstas no art. 40,§1º, III, da Constituição Federal, na redação dada pela EC 103/2019.

[7] Em uma definição bem simples, cisgêneros são os sujeitos cuja identidade de gênero autopercebida coincide com aquela designada ao nascimento. Assim, um homem cisgênero é aquele que nasceu com um pênis e se autopercebe como homem, performando a masculinidade socialmente. Não se olvida que a masculinidade é um conceito em disputa com constantes transformações ao longo do tempo. Por isso os movimentos sociais têm adotado as nomenclaturas homens trans e pessoas transmasculinas, esta última em uma perspectiva menos binária.

[8] A íntegra está aqui disponível aqui

Autores

  • é doutorando em Direito Político e Econômico pela UPM com bolsa Capes, professor da Universidade de Mogi das Cruzes, autor pela editora Fórum, pesquisador e palestrante.

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