Ônus da prova nos contratos de seguro: do DL nº 73/1966 à nova lei
22 de junho de 2025, 14h23
O contrato de seguro, por sua complexidade técnica e relevância econômica, possui peculiaridades quanto à dinâmica da produção da prova no processo judicial brasileiro. Regido pelo Decreto-Lei nº 73/1966 e atualmente também pelo Código Civil de 2002, o Direito Securitário carecia de uma legislação específica, sistematizada e atualizada que disciplinasse suas particularidades probatórias.

Ressalta-se que apenas subsidiariamente e em certas ocasiões (relações de consumo) incide, em conjunto, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com o advento da Lei nº 15.040/2024 (que entra em vigor em dezembro deste ano), conhecida como a Lei do Contrato de Seguro, surge um marco normativo moderno e detalhado, que adota a lógica jurisprudencial de distribuição do ônus e produção probatória no contencioso securitário.
Como cediço, o ônus da prova revela não apenas uma técnica de distribuição de riscos processuais, mas também uma importante manifestação do devido processo legal substancial.
O Decreto-Lei nº 73/1966, diploma que instituiu o Sistema Nacional de Seguros Privados e criou a Superintendência de Seguros Privados (Susep), concentrou-se nos aspectos institucionais e regulatórios do setor. Apesar disso, quanto ao ônus da prova, o texto legal estabeleceu, nos arts. 11 e 12, os seguintes parâmetros:
Art 11. Quando o seguro fôr contratado na forma estabelecida no artigo anterior, a boa fé da Sociedade Seguradora, em sua aceitação, constitui presunção “juris tantum”.
- 1º Sobrevindo o sinistro, a prova da ocorrência do risco coberto pelo seguro e a justificação de seu valor competirão ao segurado ou beneficiário.
- 2º Será lícito à Sociedade Seguradora argüir a existência de circunstância relativa ao objeto ou interêsse segurado cujo conhecimento prévio influiria na sua aceitação ou na taxa de seguro, para exonerar-se da responsabilidade assumida, até no caso de sinistro. Nessa hipótese, competirá ao segurado ou beneficiário provar que a Sociedade Seguradora teve ciência prévia da circunstância argüida.
(…)
Art 12. A obrigação do pagamento do prêmio pelo segurado vigerá a partir do dia previsto na apólice ou bilhete de seguro, ficando suspensa a cobertura do seguro até o pagamento do prêmio e demais encargos.
Parágrafo único. Qualquer indenização decorrente do contrato de seguros dependerá de prova de pagamento do prêmio devido, antes da ocorrência do sinistro.
Assim, extrai-se que a regra inicial, para os contratos de seguro, era a de que competia ao segurado ou ao beneficiário provar a ocorrência do risco coberto pelo seguro e a justificação de seu valor quando da ocorrência do sinistro, bem como de fazer a prova sobre a ciência prévia da seguradora sobre a circunstância capaz de interferir no preço do prêmio ou na aceitação do seguro.
No Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), o tema do ônus da prova era tratado essencialmente nos artigos 333 e 334, dentro do modelo clássico de distribuição estática da dinâmica probatória. De acordo com o artigo 333, “incumbia ao autor a prova do fato constitutivo de seu direito” e “ao réu, a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.
Essa concepção, com uma nítida repartição formal de encargos probatórios, voltada à segurança jurídica, era pouco sensível às assimetrias materiais entre as partes. Criticava-se o modelo por ignorar a efetiva capacidade das partes de produzir prova. A distribuição rígida, ainda que lógica, mostrava-se, em muitos casos, ineficiente e injusta. Dessa forma, a jurisprudência e a doutrina buscaram mecanismos de superação do modelo estanque (como a teoria da carga dinâmica das provas), mas isso aumentava a imprevisibilidade e a insegurança.
Sobreveio então a legislação consumerista. As relações de consumo consistem em vínculos contratuais assimétricos e marcados por desequilíbrios estruturais entre fornecedor e consumidor. O CDC operou uma verdadeira ruptura com a neutralidade processual clássica, ao admitir a inversão do ônus da prova em favor da parte hipossuficiente.
Prevista no artigo 6º, VIII, do CDC, a inversão do ônus da prova figura entre os direitos básicos do consumidor, podendo ser determinada pelo juiz “quando, a seu critério, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”. Essa previsão normativa inaugura uma concepção distributiva e finalística do processo, orientada pela tutela do vulnerável e pela realização do acesso substancial à justiça, notadamente diante de uma desigualdade material e informacional entre as partes.
Importante destacar que a inversão prevista no CDC não é automática. Trata-se de faculdade judicial, condicionada à análise de dois critérios centrais: (i) a verossimilhança da alegação do consumidor e/ou (ii) a hipossuficiência técnica, econômica ou informacional, sendo suficiente o preenchimento de um deles.
Diante disso, a jurisprudência passou a reconhecer, com base no artigo 6º, VIII, do CDC, a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do segurado, sobretudo quando este figura como hipossuficiente diante da seguradora. Essa inversão passou a ser comum nos litígios massificados, envolvendo seguros de vida, de veículos e residenciais, por exemplo, sendo especialmente aplicada em casos de negativa de cobertura, ausência de informações claras, cláusulas restritivas ambíguas ou exigência de documentos excessivos para regulação do sinistro (cf. REsp nº 2.165.529/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8/10/2024, DJe de 10/10/2024).
Com o advento do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), a lógica da flexibilização da distribuição da carga probatória foi incorporada e ampliada. Desse modo, o novo CPC não apenas adotou a inversão do ônus probatório em matéria consumerista, como também expandiu seus fundamentos para outras áreas marcadas por desequilíbrio estrutural ou vulnerabilidade técnica.
Embora o novo diploma mantenha a matriz clássica no caput do artigo 373, reafirmando que o ônus da prova incumbe “ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”, o § 1º do mesmo artigo introduz expressamente a possibilidade de redistribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz, nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, consideradas as “dificuldades que cada parte tem para cumprir o encargo” e a “maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário”.
Essa previsão consolida a chamada teoria dinâmica do ônus da prova, a qual busca tornar mais eficaz o processo civil, impondo a produção probatória à parte que tiver maior aptidão para produzi-la — independentemente da posição formal de autor ou réu.
Cumpre assinalar que essa redistribuição também não é automática: o § 1º do artigo 373 exige fundamentação específica e decisão prévia do juiz, antes da instrução, garantindo-se à parte onerada a oportunidade de se manifestar (princípio do contraditório). Isso evita surpresa processual e assegura paridade de armas.
O CPC/2015 deslocou o centro da teoria do ônus da prova do formalismo distributivo para uma lógica mais pragmática, orientada pela efetividade e pela justiça do resultado. Ao acolher a teoria dinâmica e estimular uma instrução probatória mais dialógica, o novo código promoveu uma transformação compatível com os princípios constitucionais do contraditório, da isonomia e da duração razoável do processo (WILLCOX, Victor; MAMBRINI, Gabriela. A distribuição do ônus da prova nos litígios securitários. In: Processo Civil e Seguro. DIDIER JR., Fredie et al. (coord.), São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 785/807).
Quanto ao Direito Securitário, a Lei nº 15.040/2024 representa um importante avanço na consolidação e modernização do direito securitário brasileiro, dispondo expressamente sobre diversos aspectos contratuais (substanciais) e processuais.
No tocante ao ônus da prova, o artigo 16 estabelece que: “Sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado”. Ademais, o artigo 74 dispõe que “apresentados pelo interessado elementos que indiquem a existência de lesão ao interesse garantido, cabe à seguradora provar que a lesão não existiu ou que não foi, no todo ou em parte, consequência dos riscos predeterminados no contrato.”
Já o artigo 59 prevê que “as cláusulas referentes a exclusão de riscos e prejuízos ou que impliquem limitação ou perda de direitos e garantias são de interpretação restritiva quanto à sua incidência e abrangência, cabendo à seguradora a prova do seu suporte fático.”
Por outro lado, o artigo 66, §§ 3º e 4º, prevê uma incumbência probatória ao interessado ou ao beneficiário, para se eximirem de alguns deveres quando da ocorrência do sinistro, nos casos em que a seguradora já tiver tomado ciência dele por outros meios. Confira-se:
Art. 66. Ao tomar ciência do sinistro ou da iminência de seu acontecimento, com o objetivo de evitar prejuízos à seguradora, o segurado é obrigado a:
I – tomar as providências necessárias e úteis para evitar ou minorar seus efeitos;
II – avisar prontamente a seguradora, por qualquer meio idôneo, e seguir suas instruções para a contenção ou o salvamento;
III – prestar todas as informações de que disponha sobre o sinistro, suas causas e consequências, sempre que questionado a respeito pela seguradora.
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1º O descumprimento doloso dos deveres previstos neste artigo implica a perda do direito à indenização ou ao capital pactuado, sem prejuízo da dívida de prêmio e da obrigação de ressarcir as despesas efetuadas pela seguradora.
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2º O descumprimento culposo dos deveres previstos neste artigo implica a perda do direito à indenização do valor equivalente aos danos decorrentes da omissão.
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3º Não se aplica o disposto nos §§ 1º e 2º, no caso dos deveres previstos nos incisos II e III do caput deste artigo, quando o interessado provar que a seguradora tomou ciência oportunamente do sinistro e das informações por outros meios.
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4º Incumbe também ao beneficiário, no que couber, o cumprimento das disposições deste artigo, sujeitando-se às mesmas sanções.
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5º As providências previstas no inciso I do caput deste artigo não serão exigíveis se colocarem em perigo interesses relevantes do segurado, do beneficiário ou de terceiros, ou se implicarem sacrifício acima do razoável.
Assim, a lei parte da premissa de que a seguradora detém melhores condições técnicas, documentais e informacionais para demonstrar hipóteses excludentes, como dolo ou culpa do segurado, agravamento do risco, inadimplemento ou, ainda, má-fé no preenchimento do questionário de risco.
Ao assegurar ao segurado o encargo probatório apenas quanto ao fato constitutivo de seu direito — isto é, a existência do contrato, a ocorrência do sinistro e o cumprimento de suas obrigações — a Lei nº 15.040/2024 aproxima-se dos princípios do CDC e do CPC/2015, promovendo uma lógica mais equilibrada e protetiva.
Logo, verifica-se que a novel legislação manteve o entendimento que vem sendo seguido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se colhe do recente julgado proferido no REsp nº 2.150.776/SP (relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 13/9/2024).
O caso se tratava de ação de cobrança de indenização securitária originada de sinistro ocorrido em guindaste objeto da apólice. A controvérsia girou em torno da correta interpretação de cláusulas contratuais supostamente contraditórias e da adequada distribuição do ônus da prova quanto à causa do incêndio do equipamento.
A Ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, fundamentou seu voto em três pilares principais: a boa-fé objetiva nos contratos de seguro, a interpretação mais favorável ao aderente diante de cláusulas contraditórias e a correta aplicação da regra de distribuição estática do ônus da prova. Segundo a relatora, o contrato de seguro é, por excelência, um contrato regido pela boa-fé e pela confiança mútua, impondo à seguradora o dever de clareza na redação das cláusulas, especialmente as que preveem exclusões de cobertura.
Observando que o contrato analisado continha dispositivos ambíguos quanto à cobertura de equipamentos com placas em vias públicas e quanto à exclusão por causas internas, aplicou o princípio “contra proferentem”, previsto no artigo 423 do CC e reforçado pelo artigo 113, §1º, IV, do mesmo diploma, de modo a favorecer o segurado.
No tocante à prova, a ministra entendeu que, em se tratando de hipótese regida pela distribuição estática do ônus probatório (artigo 373 do CPC/2015), pois a relação era entre empresas, não incidindo o CDC, cabia ao segurado comprovar os fatos constitutivos de seu direito — ou seja, a existência do contrato, o adimplemento e a ocorrência do sinistro — o que foi feito nos autos.
Por outro lado, a seguradora, como ré, deveria demonstrar os fatos extintivos do direito alegado, como a suposta causa interna do incêndio, o que, segundo a relatora, não foi satisfatoriamente comprovado. Assim, reconhecendo que as cláusulas contratuais davam margem a interpretações conflitantes e que a prova dos autos não afastava a legítima expectativa de cobertura do segurado, votou pelo provimento do recurso especial para condenar a seguradora ao pagamento da indenização securitária.
Em voto vencido, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva inaugurou divergência ao afirmar que caberia ao segurado demonstrar que o sinistro se enquadrava dentro das hipóteses de cobertura, ou seja, que o incêndio decorrera de causa externa. Para o ministro, a prova apresentada pela autora era inconclusiva, e a ausência de requerimento de prova pericial judicial prejudicava a elucidação da origem do evento danoso.
Segundo seu entendimento, prevalecia a versão apresentada pela seguradora, de que o incêndio teria sido provocado por falha de manutenção e uso de combustível adulterado — elementos que configurariam causas internas e, portanto, excluídas da cobertura contratual. Assim, considerou correto o acórdão do TJ-SP, que havia julgado improcedente o pedido de indenização.
Enfim, constata-se que a nova Lei do Contrato de Seguro pressupõe que a seguradora, como detentora da estrutura administrativa que dá suporte à contratação, deve arquivar e disponibilizar toda a documentação relacionada à apólice, ao sinistro e à negativa de cobertura. Já o segurado, frequentemente desprovido de expertise técnica ou assessoria jurídica adequada, passa a ter reduzida a sua carga probatória, sendo presumida sua boa-fé até prova em contrário.
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