O Ouvidor Pardinho e a importância do legado deixado pelos juízes
22 de junho de 2025, 8h00
Raphael Pires Pardinho nasceu em Lisboa, Portugal, por volta de 1672, tendo se formado em Direito na Universidade de Coimbra, em 1702. Nomeado Juiz de Fora e Juiz do Crime em 1705, exerceu tais funções até 1715.

Em 1717 foi nomeado Ouvidor-Geral da Capitania de São Paulo. Dois anos após assumir, rumou ao lado sul da Capitania, à época relegado quase ao abandono, com a missão de promover correições nas Vilas de Paranaguá, Curitiba (hoje no Estado do Paraná), São Francisco e Laguna, (agora parte do Estado de Santa Catarina).
Ressalte-se que o Ouvidor, naqueles tempos, era um importante funcionário do Reino, que acumulava funções administrativas e judiciais, inclusive revendo decisões dos Juízes Ordinários. Ele era responsável pela fiscalização do cumprimento dos atos da administração, por garantir a ordem e a aplicação das leis portuguesas na colônia. Ainda não era conhecida a tripartição do Estado entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O Juiz Ordinário era um dos vereadores eleitos. Um homem bom, segundo o conceito da época, pertencente à comunidade, não graduado em Direito, que decidia os conflitos segundo os costumes locais e os seus conhecimentos. Portugal, ao mandar para o Brasil Juízes de Fora e Ouvidores, tinha o claro objetivo de tornar mais conhecidas e ver prevalecer as leis do Reino.
Vejamos um exemplo da atuação do Ouvidor. No Livro “Inventário”, do Tabelionato de Notas e Protestos da Comarca de Guaratuba (PR), encontra-se decisão de 6 de março de 1805, na qual o dr. Antônio de Carvalho Fontes Henriques Pereira, Ouvidor Geral e Corregedor de Paranaguá entre 1804 e 1807, ordenou ao Juiz Ordinário da Vila de Guaratuba que promovesse o levantamento do embargo do barco Bergustim, que se achava ancorado no porto.
A ação do Ouvidor Pardinho
O Ouvidor Pardinho foi a primeira autoridade a visitar o sul da Capitania de São Paulo. Chegando em Paranaguá em 1719, Pardinho encontrou uma vila próspera para a época. A jurisdição de Paranaguá era gigantesca, ia de Iguape à Colônia Sacramento, na beira do rio da Prata, hoje pertencente ao Uruguai. Não é preciso aprofundar-se em estudos para concluir que, na realidade, a justiça devia ser aplicada pelo Capitão-Mor de cada vila ou povoado, simplesmente porque seria impossível a jurisdição estender-se por tão amplo território.
Em Paranaguá, assim como em Curitiba, Pardinho baixou provimentos sobre a organização das vilas, suas ruas e construções, até então absolutamente desordenadas. Cuidou da concessão de terras, do tratamento legal devido aos indígenas e aos escravos, da defesa das vilas. Em Paranaguá, o Ouvidor Pardinho deu especial atenção às contínuas invasões de embarcações piratas, que levavam a população a um estado de insegurança. O aspecto religioso não passava despercebido, pois vivia-se época de união absoluta entre o reino e a Igreja Católica. Em suma, foram dezenas de provimentos baixados, orientando a administração e a prestação jurisdicional, os quais eram enviados a Lisboa para serem confirmados pelo rei.
Em São Francisco do Sul, o Ouvidor fiscalizou obras públicas, como pontes, além de examinar em correição os serviços judiciários da responsabilidade do juiz ordinário. Encontrou o sistema de Justiça em estado de abandono, o que o levou a registrar em ata a sucessão de falhas encontradas, inclusive sobre a vida pessoal do juiz ordinário. No bem cuidado Museu Histórico Municipal daquele município, há um painel que reproduz trecho da ata lavrada a mando de Pardinho. [1] Daquela época também a sua sentença condenando à morte Domingos Francisco Francisques, vulgo “Cabecinha”, que foi Capitão-Mor da Vila por 30 anos, e a quem se atribuía toda sorte de atrocidades. A pena não foi executada, pois o condenado evadiu-se.
Em Laguna, à época chamada de Vila de Santo Antônio da Laguna, o Ouvidor Pardinho teve atuação intensa. Em sua correição, editou provimentos a respeito da forma de construir casas, também como arrumá-las; demarcou o rocio da Vila, isto é, seu perímetro urbano; regularizou a eleição dos Juízes Ordinários, criou os livros necessários e proibiu o cativeiro e escravidão de indígenas carijós, do mesmo modo proibiu os maus tratos aos indígenas trazidos do Rio Grande. [2]
Exemplo e reconhecimento do Ouvidor Pardinho
Após o longo período de 16 anos dedicados às vilas do Sul da Capitania, Pardinho retornou a São Paulo. Por sua dedicação, foi nomeado Intendente da Capitania de Minas Gerais. Depois, retornou a Portugal, onde assumiu o cargo de desembargador da Corte de Suplicação, que era a terceira e última instância judicial da Coroa. Na sequência, foi nomeado membro do poderoso Conselho Ultramarino e, finalmente, Conselheiro do Rei, função da máxima relevância à época.
Além destas provas de reconhecimento, muitas foram as homenagens recebidas. Em Curitiba, ele tornou-se nome de uma importante praça e de um Centro de Atividades Físicas da Prefeitura Municipal. Em Paranaguá, o Ouvidor Pardinho deu seu nome ao Fórum local, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Em Laguna, há rua com o seu nome no bairro Mar Grosso. Da mesma forma em São Francisco do Sul, no bairro Enseada.
O legado de Pires Pardinho e o dos juízes da atualidade
Legado refere-se a algo que é deixado ou transmitido por uma pessoa, seja material ou imaterial. Pode ser uma herança, mas, no foco desta coluna, refere-se a um ensinamento, lição de vida, responsabilidade ou uma memória duradoura.
O Ouvidor Pardinho deixou um legado imortalizado nas homenagens que lhe foram prestadas. Mas isto não é comum. Normalmente o legado é de conhecimento mais restrito, mas nem por isso menos importante.
É comum que nas cidades pequenas ou médias a memória oral eternize grandes juízes que por ali passaram. Por vezes, dá-se-lhes nome de Fórum, eventualmente até um busto. Tais homenagens marcam as famílias, servem de exemplo aos descendentes, inibem ações nocivas ou degradantes.
No lado oposto, vê-se, cada vez com maior frequência, atos vergonhosos, inclusive de corrupção. São exceção no quadro geral, todavia são objeto de divulgação e ficam eternizados nas notícias da internet.
Qual o legado que tais condutas passam aos descendentes? Vergonha? Humilhação? Descrença? Estímulo para abandonarem seus ideais? Lançarem-se às drogas? Afastamento do pai? Sim, os efeitos podem ser estes, juntos ou separadamente. E podem ser outros, até piores.
Por isso tudo, ao aproximar-se a tentação do mau passo, que pode ir de uma vantajosa omissão até à corrupção propriamente dita, é preciso que quem exercer cargo de autoridade pense duas vezes. Valerá a pena conseguir uma vantagem, uma promoção ou nomeação, que lhe será cobrada com juros e correção monetária? Será esquecida uma decisão que, por receio de ficar sozinho, contradiz tudo o que disse até então? Será felicidade terminar com uma cômoda situação financeira, mas ver a família desintegrar-se com situações de conflitos, drogas e falta de rumo?
Conclusão
Bons exemplos são para serem seguidos. Quando alguém entra na magistratura deve mirar-se nos exemplos dos Pardinhos do seu tempo, afastando-se dos que, mais dia ou menos dia, estarão expostos no Tribunal da Internet, onde a exibição é eterna, sem prescrição.
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[1] Museu Histórico Municipal José Schimidt. Disponível aqui.
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