Embargos Culturais

'A Gaivota', de Anton Tchekhov

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22 de junho de 2025, 6h09

Assistir a uma peça teatral é experiência diferente da leitura da peça. Óbvio. No primeiro caso temos teatro, de verdade, no segundo caso temos literatura, também de verdade, dependendo da qualidade do texto. São experiências culturais muito diferentes. A leitura é desprovida de elementos cênicos e de entonações que somente a representação dramática pode suprir. A compreensão de uma peça fica ainda mais difícil quando vivida no silêncio da leitura. O silêncio pode comprometer a compreensão do enredo. Perdemos expressões, olhares, modulações de voz.

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Essa é o pensamento que tive quando li “A Gaivota”, de Anton Tchekhov (1860-1904), na tradução de Rubens Figueiredo, publicada pela Cia. das Letras. Não tenho habilidade para ler em russo. No entanto, se uma boa tradução é primeiramente reconhecida quando o texto para o qual a língua foi vertida é inteligível e idiomático, não há dúvidas: a Cia. das Letras nos disponibilizou uma tradução competentíssima.

Infelizmente, nunca assisti a alguma representação dessa peça. Escrevo do que li. É uma peça diferente. Não há uma tensão crescente. A dificuldade começa com a profusão de nomes, embora haja poucos personagens centrais. O autor altera frequentemente o modo como os protagonistas se referem uns aos outros. O leitor deve reiteradamente rever a lista dos “dramatis personae”. Na estrutura de uma peça de teatro essa lista é a relação dos personagens que compõem a obra, geralmente apresentada no início do texto. A expressão é latina e significa literalmente “pessoas do drama”. É comum o uso de hipocorísticos, isto é, de nomes afetivos (apelidos, entre nós). Maria é “Macha”, e depois “Machenka”.

Contracenam um escritor de muito prestígio, uma atriz aposentada (dona da propriedade rural na qual se desdobra o enredo, e amante do escritor), seu invejoso filho (pretenso escritor) e uma bela moça, disputada pelo escritor e pelo filho da atriz. O pretenso escritor ardia de ciúmes da mãe e de ódio do escritor de sucesso. A questão era edipiana, e também era literária. Glória nas letras e superlativo amor filial se confundiam. O ódio era duplo: ciúme e desejo de ser reconhecido como escritor, embora fosse reconhecidamente medíocre.

Assim como em Hamlet, esse conflito (que não é central na peça) nasce de uma relação conturbada entre mãe e filho, marcada por ressentimentos e pulsões recalcadas. A figura do escritor, amado pela mãe e por isso rival do filho, remete ao papel do tio Cláudio, usurpador afetivo e simbólico da figura paterna. O jovem frustrado em suas ambições literárias ecoa Hamlet em sua paralisia, dúvida e desejo de reconhecimento diante de um mundo que o ignora. A trama, tal como em Hamlet, também evoca ressentimento que é ao mesmo tempo familiar e existencial, amoroso e intelectual.

Contracenam também o irmão da atriz (ele também aposentado), a filha de um rico proprietário de terras (ela sonhava ser atriz), o administrador da propriedade rural, sua esposa, sua filha, um médico, um professor e um trabalhador local.

A peça, penso, é um testemunho de Tchekhov de sua atividade de contista: “Mal termino um conto, nem sei por que, preciso logo começar outro, e depois um terceiro, e depois um quarto. Escrevo sem interrupção, como quem viaja numa carruagem em que os cavalos são substituídos a cada parada, e eu não consigo viver de outro meio”. O personagem escritor afirma que passava a vida à cata de uma palavra certa, de uma expressão, de um tema. O leitor (ou o espectador, depende do meio de recepção da obra) pode intuir que os monólogos que se referem ao ofício de escritor testemunham a atividade frenética do contista.

A gaivota (que dá nome à peça) tornou-se o símbolo do teatro de Moscou. O tradutor narra na introdução um episódio que teria marcado Tchekhov. Um escritor teria matado uma galinha, que mais tarde fora servida no jantar. Dois escritores devoram o galináceo. Na observação cáustica de Tchekhov “haveria uma criatura fascinante a menos no mundo”.  A galinha fora alvejada por um escritor e empalhada a mando de outro. Há aí um resquício de ressentimento de índole parasitária, que Tchekhov combatia.

Ao longo do texto há referências a gaivotas

Atrizes se sentiriam atraídas pelos palcos como as gaivotas pelos lagos. O escritor havia matado uma gaivota, e o escritor sem talento encarregou os empregados de a empalharem. Tive a impressão de que a imagem da gaivota, no contexto da peça, possa sugerir uma autocrítica do autor à sua atividade. Tchekhov era extremamente modesto. Numa carta enviada a seu editor, Aleksei Suvórin, datada de 10 de outubro de 1888, registrou que sua obra não resistiria ao esquecimento por mais de dez anos. Enganou-se, completamente.

Não se pode esquecer que é recorrente em Tchekhov a tensão entre o intelectual distante e nada prático (o ideal russo de homem supérfluo) e o homem de ação, que o autor procurou ser ao longo de sua curta vida. A sociedade é um sistema, e não um sonho. É um construído cultural, não é uma dádiva dos céus, e muito menos uma divagação metafísica.

A peça foi um fiasco em sua apresentação, ocorrida em São Petesburgo em 17 de outubro de 1896. O pano de fundo histórico consiste em uma tentativa de compreensão das profundas transformações no sistema agrário e fundiário russo no contexto da parte final do século 19. A atriz, afinal, era a dona da propriedade. Não se define com exatidão se a peça consiste em uma comédia, um drama ou uma tragédia, na classificação que remonta a Aristóteles. Rigorosamente, penso, é um texto de crítica literária, porque enfrenta conflitos de um escritor de sucesso.

“A Gaivota” é, assim, uma peça sobre a criação artística e suas angústias. Tchekhov desmonta o mito do gênio solitário e iluminado, revelando o escritor cercado por vaidades, inseguranças e frustrações. Os personagens vivem o teatro e a literatura como desejo de glória, mas também como fardo existencial — o palco é, ao mesmo tempo, altar e abismo, para falar simbolicamente, como tantos já falaram.

Em vez de oferecer soluções (Tchekhov nunca apresenta soluções) o autor aponta silêncios, hesitações, fracassos. A peça escapa das categorias convencionais e resiste a qualquer rotulagem. Fala de um tempo em que os modelos de representação estavam em crise. Tentava-se reinventar a linguagem do teatro. No Brasil a peça já foi protagonizada por Fernando Torres, Fernanda Montenegro, Pedro Cardoso, Renata Sorrah, Fernanda Torres, entre tantos outros. Sucesso de crítica, o que comprova a universalidade do tema e dos problemas e dos dilemas de quem escreve ou de quem representa.

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