A tradição jurídica brasileira sob a ótica dos precedentalistas
21 de junho de 2025, 8h00
Uma das funções primordiais da Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida pelo professor Lenio Streck, é possibilitar ao estudioso ferramentas necessárias para uma visão crítica da dogmática jurídica brasileira. Desde muito o professor vem tentando alertar para os perigos dos precedentalistas brasileiros, corrente que leva adiante uma agenda de teoria política do poder judiciário e reverbera teses pragmaticista. Seguindo a discussão que os colegas do Dasein levantaram nas colunas passadas (aqui e aqui), acrescento alguns pontos sobre o precedentalismo brasileiro que me parecem importantes à luz da história da interpretação jurídica no Brasil.

A aposta nos precedentes judiciais carrega consigo uma série de crenças sobre a tradição jurídica brasileira, estando entre elas a de que pairou no Brasil uma cultura de formalismo jurídico rigoroso pré-Constituição de 1988. Luiz Guilherme Marinoni afirma: “Sucede que, não obstante a evolução da teoria da interpretação, o modelo de Corte associado ao formalismo interpretativo sobreviveu e ainda está presente no Brasil e, com maior ou menor intensidade, em quase todos os sistemas de civil law.” [1] Daniel Mitidiero, seguindo uma linha parecida, afirma que a tradição jurídica brasileira sempre esteve às voltas com uma objetividade interpretativa:
“A verdadeira razão pela qual é imprescindível outorgar nova configuração à relação entre a lei, a doutrina e a jurisprudência, reorganizar a administração judiciária e introduzir adequadamente a figura do precedente judicial no Brasil está no reconhecimento do caráter mitológico do cognitivismo interpretativo e no reconhecimento da dupla indeterminação do direito.” [2]
Luís Roberto Barroso, nessa esteira, também afirma que nossa tradição doutrinária está assentada sob um chão positivista, que de acordo com o ministro, resultaria em uma objetividade interpretativa que não condiz com a moderna hermenêutica [3]. O formalismo de nossa tradição acaba resultando em interpretações distorcidas do texto normativo. É aí, então, que entra em cena o papel das “Cortes de Vértice”, que fixarão o sentido jurídico dos textos legislativos. Ora, se o texto produzido pelo legislador surge como “cláusulas gerais”, à Corte Suprema caberá atribuir o sentido que será reproduzido pelos tribunais inferiores.
Os tribunais se mostram bastante receptivos às teses levantadas por Marinoni, Mitidiero e Barroso. Mormente quando falamos do STF, STJ e TST. Basta que observemos as colunas semanais do professor Lenio no Senso Incomum, os precedentalistas estão ganhando terreno. Cabe à boa teoria fazer as críticas e levantar as perguntas (perguntas antes das respostas, como odeiam os precedentalistas)
Sugiro as seguintes as indagações: a prática jurídica brasileira está realmente calcada em um exercício interpretativo formalista? Em que medida essa conclusão condiz com a tradição hermenêutica brasileira? Essa discussão não é nova. Há, pelo menos, 150 anos os temas da liberdade do intérprete frente ao texto jurídico e dos limites da decisão judicial são discutidos pela doutrina jurídica nacional a partir de diversos autores.
Antiformalismo interpretativo na doutrina jurídica brasileira
Orlando Gomes (1909-1988), professor catedrático da antiga Faculdade de Direito da Bahia, publica em 1955 A crise do direito e elabora uma série de críticas a como se encontrava a prática jurídica nacional em meados do século 20. Nesta obra, o professor baiano argumenta que o direito passa por uma crise de seu sistema individualista, que mantém privilégios e multiplica opressões sob os mais necessitados.
Cita que houve uma série de avanços de direitos sociais no Brasil, inclusive ressaltando a criação do direito do trabalho como um marco, mas ainda insuficiente. Há, de acordo com o autor, um desajuste entre o que é praticado pelos tribunais e a sociedade, é como se as normas não mais fossem suficientes para dar conta da pluralidade de relações, só servem para manter regalias e perpetuar práticas autoritárias. A descrença aumenta nesse sentido, fomentada pela insuficiência da lei.
“O Direito está tão envelhecido que parece exclusivamente feito de resíduos.” [4] Orlando cita que há um novo direito no pós-guerra, com o crepúsculo das concepções individualistas do século 19, o fortalecimento de direitos sociais e uma preocupação do Estado em equilibrar as relações jurídicas. Com o governo Vargas, menciona Maia Filho, há uma reformulação na ideia de poder público como entidade que se exime de intervir em sociedade, o direito administrativo toma, na segunda república brasileira, conotações de Estado Social [5].
Orlando Gomes, ao tratar sobre a crise do poder judiciário, afirma que o modelo de magistratura típico do liberalismo burguês encontra-se, à época, defasado. O juiz não é mais mero aplicador do texto legal, mas sim alguém que está em sintonia com as mudanças sociais e políticas do mundo. O direito visto como mera produção legislativa está fadado ao fracasso, não dá conta da complexidade pluralista do Ocidente pós-guerra e só mantém privilégios de outrora.
Do mesmo modo por que, para se atingir o ideal democrático de igualdade, se está criando e desenvolvendo um direito de exceção, que consagra privilégios para uma classe, outrora desprotegida, a segmentação judiciária, aparentemente dispersiva de energias, fortalecerá, em futuro próximo, o organismo judicante, já desenvolvido em sua complexidade incipiente. Tal se dará quando certos critérios adotados na constituição e funcionamento dos aparelhos especializados, que hoje precisam ainda ser acolhidos em caráter excepcional, venham, enfim a se tornar a regra geral, sem os excessos iniciais. [6]
Principalmente, mas não apenas, após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930 e com o Estado Novo em 1937 uma doutrina de antiformalismo interpretativo e fortalecimento do Judiciário se fará presente em diversos autores importantes na bibliografia nacional. A tensão entre realidade e legislação foi tema de diversos debates por juristas brasileiros alinhados ao varguismo e, também, aqueles que não faziam parte das trincheiras ideológicas do Estado Novo. Autores como Alberto Torres (1865-1917), Oliveira Vianna (1883-1951), Eduardo Espínola (1875-1968) e Francisco Campos (1891-1968).
O período do entreguerras no Brasil foi particularmente importante na formação de direitos sociais e na instrumentalização do Judiciário. Afirma Luis Rosenfield:
“Os juristas ligados ao regime, cujos expoentes são Oliveira Vianna e Francisco Campos, forneceram novos contornos à interpretação jurídica, demonstrando intensa repulsa ao formalismo jurídico. Nas palavras do próprio Vianna, a Suprema Corte dos Estados Unidos, sob liderança de Brandeis, havia reconhecido o imperativo de reagir “contra a mecanização da aplicação da lei”.” [7]
O objetivo era claro: modernização, crescimento econômico e garantias sociais. Essas pautas impactaram a atividade hermenêutica, com a produção acadêmica de autores que opunham a prática à teoria. A Lei de Introdução ao Código Civil tem, neste contexto, um papel importantíssimo. Com um Código privado de 1916, gestado por Clovis Bevilaqua, ainda pavimentado por ideais de liberdade e autonomia individual, o fator social precisava ser inserido na lógica jurídica.
Com o artigo 5º da LICC, a questão social foi positivada nas relações civis e representou um marco na virada hermenêutica do século 20 no Brasil. Para que essa regra hermenêutica, de atenção aos fins sociais e exigências do bem comum, pudesse ser formalizada dentro do ordenamento jurídico diversos autores formaram coro na crítica aos antigos métodos interpretativos.
Alberto Torres foi o primeiro grande jurista a defender em seus escritos uma interpretação voltada à função social da constituição, ao escrever sua obra A organização nacional que teve sua primeira edição em 1914. Havia a necessidade uma política nacional que visasse os fins sociais do desenvolvimento. “Ha um ponto que cumpre bem precisar: a natureza politica da Constituição, lei nacional, deve prevalecer sobre as concepções theoricas de legisladores” [8]. De nada adianta uma legislação infraconstitucional que atravanque o avanço econômico.
Outro autor importante dessa “crise da ortodoxia jurídica” no Brasil foi Oliveira Vianna (1883-1951) [9], discípulo de Alberto Torres, foi um dos grandes nomes que arquitetaram as reformas jurídicas e políticas no Estado Novo de Vargas. Em 1937, Oliveira Vianna publica artigo na Revista Forense, com o título Novos Methodos de Exegese Constitucional, em que faz defesa direta e explícita contra a limitação dos sentidos do “texto em si”, em detrimento de uma interpretação construtiva: “O que o interprete tem em vista é uma adaptação deste ou daquelle texto, desta ou daquella instituição constitucional, á realidade social ou á exigencia do momento, no sentido de uma mais perfeita efficiencia do regime instituido.” [10]
Em posição que ia ao encontro do que defendia Oliveira Vianna, outro autor importante a criticar o formalismo foi Francisco Campos [11]. Em 1940, expõe uma forte crítica aos meios de decisão política típicos de uma democracia liberal, afirmando que no campo da política o que reina não é o debate racional em sociedade, mas a vontade daquele que está no poder [12].
A obra O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico, que consiste em uma série de discursos, entrevistas e conferências dadas por Francisco Campos, releva um profundo descrédito no processo decisório democrático que respeite da divisão de poderes dentro de um Estado, rechaçando a linguagem do liberalismo como algo meramente hipócrita e desprovido de objetividade.
A adequação do Judiciário aos moldes do governo autoritário se deu à força, chancelada pela Constituição de 1937 que previa no artigo 177 a possibilidade do presidente aposentar ou reformar juízes em nome do interesse público. Vianna e Campos defendiam com unhas e dentes a jurisprudência sociológica aos moldes do realismo jurídico estadunidense, não cansaram de citar autores dessa vertente em seus escritos.
Um outro jurista, este praticamente esquecido pela hermenêutica jurídica nacional, é Alípio Silveira, que escreveu diversas obras sobre interpretação judicial e direito civil entre as décadas de 40 e 80 do século passado. Foi um dos primeiros pensadores no Brasil a produzir obras especificamente sobre hermenêutica jurídica com uma influência direta do realismo jurídico, além de defender uma interpretação judicial que levasse em conta os valores sociais acima do próprio texto de lei.
Revisitar o passado para melhor compreender o presente: um convite à reflexão
No já clássico Hermenêutica jurídica e(m) crise, o professor Lenio denunciava que uma crítica à atividade judicial no Brasil não deve estar assentada apenas em uma superação do paradigma objetivista-exegético da interpretação, mas também deve atacar todo tipo de voluntarismo:
As recepções das teorias voluntaristas — em especial as que colocam a Constituição como “ordem concreta de valores” (portanto, com filiação na jurisprudência dos valores e com tendências a incorporação das teses do realismo jurídico), ultrapassaram esse “modelo de aplicação do Direito”. Na verdade, ocorreu uma troca: do modelo que apostava na estrutura do Direito (objetivismo), passou-se a adotar uma postura de perfil subjetivista […] [13]
O objetivo deste texto foi algo absolutamente simples: confrontar algumas ideias irrefletidas com o um passado não tão distante de nossa prática jurídica. O resultado me parece óbvio, pois relegar toda a tradição jurídica brasileira a um mero exercício silogístico da norma ao caso concreto, um mero formalismo interpretativo, é esquecer o passado.
A comunidade jurídica deve ter cuidado com os discursos que são difundidos como verdades absolutas por parte da doutrina, é necessário termos um senso crítico que só poderá ser efetivo com um entendimento histórico situado de nossa tradição. O que os autores da corrente precedentalista defendem é dar às Cortes de Vértice uma ampla margem de liberdade na “produção de precedentes”, tudo com a finalidade de “dar sentido ao texto legal”. Contudo, a instrumentalização do judiciário para alcançar valores sociais, alargando a liberdade do magistrado na decisão judicial, já foi típico de regimes de exceção como afirmou Bernd Rüthers.
Por fim, Warat nos alerta acerca dos perigos do senso comum teórico dos juristas: “Quando esse sistema é autoritário precisa solidificar artificialmente as relações sociais, modelando e centralizando a produção de sentido, deixando inelutáveis a marca do Estado, fabrica então um sistema de sublimações semiológicas que servem para criar versões do mundo que nos abstraem da história”. [14]
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[1] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 65
[2] MITIDIERO, Daniel. Precedentes. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 71.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 344.
[4] GOMES, Orlando. A crise do direito. São Paulo: M. Limonad, 1955. p. 18
[5] MAIA FILHO, Mamede Said. Período Vargas: Estado e direito administrativo no Governo Provisório. História do Direito, [S. l.], v. 3, n. 5, p. 100–125, 2023. DOI: 10.5380/hd.v3i5.86445. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historiadodireito/article/view/86445. Acesso em: 24 fev. 2025.
[6] GOMES, A crise do direito, op. cit., p. 105.
[7] ROSENFIELD, Luis. Revolução conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2021. p. 45
[8] TORRES, Alberto. A organização nacional. Brasil: Ed. Nacional, 1938. p. 301
[9] ROSENFIELD, Luis. Oliveira Vianna e a recepção do realismo jurídico norte-americano: notas sobre um debate esquecido. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 13, n. 2, p. 123-145
[10] VIANNA, Francisco José de Oliveira. Novos métodos de exegese constitucional. Revista Forense: doutrina, legislação e jurisprudência, Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1937.
[12] CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.
[13] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 81
[14] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1994. p. 15.
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