Violência doméstica e auxílio aluguel: efetivação do direito pelo Judiciário
20 de junho de 2025, 9h11
Dentre os diversos tipos de violência, a Lei de Violência Doméstica especifica no inciso IV do artigo 7º: “violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades“.
Nesse contexto, o inciso VI do artigo 23 da Lei 11.340/2006 expressamente prevê a concessão, com imediata fixação de valor, de auxílio-aluguel à vítima de violência doméstica:
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: […] VI — conceder à ofendida auxílio-aluguel, com valor fixado em função de sua situação de vulnerabilidade social e econômica, por período não superior a 6 (seis) meses. (NR)
O auxílio-aluguel da Lei 11.340/2006 é espécie de benefício provisório [limitado no tempo: seis meses] e eventual prestado à vítima em virtude de situação de vulnerabilidade temporária [Decreto nº 6.307/2007, artigos 1º e 7º], destinado à proteção de pessoa momentaneamente impossibilitada de enfrentar situação específica que a fragiliza.
No caso da violência enfrentada no ambiente doméstico, a concessão de auxílio-aluguel constitui medida pública voltada a pessoas vítimas de violência doméstica e em situação de vulnerabilidade social e econômica, com a finalidade de ampliar o espectro protetivo, nos termos da Lei nº 14.674/2023, sancionada em 15.09.2023, que inseriu o inciso VI no artigo 23 da Lei de Violência Doméstica, atribuindo a responsabilidade pelo pagamento aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios [artigo 2º].
Logo, a introdução do auxílio-aluguel impacta diretamente a segurança e proteção das vítimas de violência doméstica, com a possibilidade de promover:
[a] Remoção do agressor: a medida possibilita a gestão da ocupação da moradia eventualmente compartilhada com o agressor, período no qual a vítima permanecerá protegida em abrigo. Em caso de ausência ou insuficiência de programas públicos, garante-se, ainda, meios financeiros para assegurar a moradia mínima afastada do agressor, contribuindo para a redução dos riscos de novos atos de violência.
[b] Meios de sobrevivência: promove a autonomia da vítima mediante a aplicação de recursos para a reconstrução da vida, especialmente em situações de dependência financeira do agressor, fortalecendo sua autonomia, confiança e liberdade de escolher e manter meios de subsistência livres de violência, o que amplia a sensação de segurança; e,
[c] Devida diligência e apoio institucional: reafirma o compromisso com o reestabelecimento dos cuidados associados à devida diligência dos estados, conforme preconizam a Convenção Americana de Direitos Humanos e a consolidação do entendimento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras.

Em consequência, o auxílio-aluguel é uma medida eficaz que protege pessoas vítimas de violência doméstica, oferecendo recursos financeiros essenciais para garantir sua segurança, independência e recomeço longe do contexto de violência, consoante defendido por Marcon, Chimelly Louise de Resenes. Já que Viver é Ser e Ser Livre: a devida diligência como standard de proteção dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, Ramos, Ana Luisa Shmidt. Violência Psicológica contra a mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal. EMais: Florianópolis, 2019; e Morais da Rosa, Alexandre; Amorim, Fernanda Pacheco. O que implica a devida diligência na violência doméstica? ConJur, em 04.10.2019, do qual se destaca:
O dever de garantia nada mais é que o encargo dado aos Estados de assegurar, de todas as formas razoavelmente viáveis, o exercício dos direitos pelas pessoas, criando mecanismos materiais de proteção aos direitos bem como meios de efetivação desses. Preocupando-se com a proteção formal e material dos direitos humanos, a CADH complementou a tutela do artigo 1 com o disposto no artigo 2.
Observa-se com isso, a incumbência posta aos Estados Partes de adotar, caso ainda não existentes, preceitos legislativos ou de qualquer outra natureza que se façam necessários para efetivar os direitos e liberdades garantidos pela CADH, ou seja, cabe aos Estados Partes a prevenção e o combate, através de todos os mecanismos que estiverem disponíveis e mais os que possam ser criados para tanto, às violações aos direitos humanos sustentados pela Convenção, sejam estas cometidas pelo poder público, sejam cometidas por particulares, conforme já amplamente explicado pela CIDH no caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras.
A este dever do Estado de atuar com o intuito de prevenir as possíveis violações a direitos humanos cometidas pelos seus agentes ou por particulares, sob pena de responsabilização internacional, de utilizar mecanismos disponíveis e ainda criar mecanismos a fim de garantir o pleno gozo dos direitos humanos dá-se o nome de devida diligência.
A devida diligência é efetivamente a adoção de medidas legislativas ou não que possam auxiliar no combate e na precaução necessários em relação aos direitos humanos que são ou que possam ser violados. A inércia dos Estados Partes perante as violações que sabe acontecer em seu território, desde que razoavelmente evitáveis a partir de políticas públicas que possam ser adotadas, já bastam para que reste comprovada a ausência de devida diligência e, consequentemente, seja possível a responsabilização internacional.
Ressalta-se que a legislação federal não estabeleceu maiores entraves à concessão do benefício, deixando a cargo do magistrado a análise da vulnerabilidade da vítima beneficiária, bem como a definição do valor adequado à preservação da dignidade da pessoa ofendida, norma compatível, ademais, com a ampla proteção conferida às mulheres.
Sobre o custeio, consta do artigo 2º da Lei 14.674/2023:
Art. 2º As despesas com o pagamento do auxílio-aluguel de que trata o inciso VI do caput do art. 23 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), poderão ser custeadas com recursos oriundos de dotações orçamentárias do Sistema Único de Assistência Social a serem consignados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios para os benefícios eventuais da assistência social de que tratam o inciso I do caput do art. 13, o inciso I do caput do art. 14, o inciso I do caput do art. 15 e os arts. 22 e 30-A da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.
Não ofertar tal benefício equivale a negar direito previsto em lei e o próprio acesso à proteção social constitucionalmente assegurada, sendo descabido fazê-lo sob argumento genérico de falta de previsão orçamentária, tendo em vista a previsão legal de que os recursos devem ser extraídos das dotações de contingenciamento do Suas e/ou de dotações expressas. A Lei nº 14.674 data do ano de 2023, de modo que já houve tempo suficiente para que os entes públicos municipais preparassem o orçamento para acomodar o custeio da verba.
Ademais, o benefício é provisório, com duração máxima de seis meses, o que enfraquece argumentos que se socorrem no “princípio da reserva do possível”, dado que não há falar em prejuízos relacionados à manutenção da medida a longo prazo, nem à simples negativa municipal em face da omissão quanto à criação de efetiva rede de proteção à vítima de violência doméstica.
Por fim, no julgamento do Mandado de Segurança 5031844-97.2024.8.24.0000, relator Alexandre Morais da Rosa, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a insurgência municipal foi afastada, conforme ementa a seguir:
“CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO JUDICIAL. PROCEDIMENTO INSTAURADO PARA APLICAÇÃO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA NO ÂMBITO DE PROCESSO CRIMINAL PARA APURAÇÃO DA PRÁTICA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONCESSÃO DE AUXÍLIO-ALUGUEL À VÍTIMA. RECALCITRÂNCIA DO MUNICÍPIO PARA CUMPRIMENTO DA ORDEM JUDICIAL DE IMPLEMENTAÇÃO DO BENEFÍCIO. DETERMINAÇÃO DE BLOQUEIO DE VERBAS. INSURGÊNCIA DO ENTE MUNICIPAL. ALEGADO DESRESPEITO À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, INDEVIDA INTERFERÊNCIA NA POLÍTICA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E VIA INADEQUADA PARA DEFERIMENTO DO AUXÍLIO FINANCEIRO. INSUBSISTÊNCIA. BENEFÍCIO EXPRESSAMENTE PREVISTO EM LEGISLAÇÃO FEDERAL [LEI N. 11.340/2006, ART. 23, VI]. ATRIBUIÇÃO DA EFICÁCIA DA MEDIDA PROTETIVA AO ENTE FEDERATIVO LOCAL. EVIDENTE SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE TEMPORÁRIA DA BENEFICIÁRIA [DECRETO N. 6.307/2007, ARTS. 1º E 7º]. CUSTEIO COM RECURSOS ORIUNDOS DE DOTAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS DE CONTINGENCIAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL [SUAS], CONSOANTE ART. 2º DA LEI N. 14.674/2023. SEQUESTRO DE VERBA COMO INSTRUMENTO LEGÍTIMO PARA GARANTIR A EFICÁCIA DA POLÍTICA PÚBLICA DE PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. IMPUGNAÇÃO DA DETERMINAÇÃO DE PRESENÇA DA ASSISTENTE JUDICIÁRIA DA OFENDIDA EM TODOS OS ATOS REALIZADOS. ORDEM CONSENTÂNEA COM OS DIREITOS PREVISTOS NOS ARTS. 27 E 28 DA LEI N. 11.340/2006. DECISÃO MANTIDA. ORDEM DENEGADA”.
Trata-se de garantir a proteção efetiva aos direitos das vítimas de violência doméstica, tarefa de todos, cuja intervenção judicial se legitima em face dos interesses em conflito e, principalmente, porque a vítima não pode ser revitimada por ausência de políticas públicas sérias e adequadas.
Por fim, este curto texto associa-se à incessante luta de diversas ativistas e defensoras dos direitos das mulheres (gênero), em especial, da professora Alice Bianchini que produz conteúdo de qualidade, dentre eles o livro “Lei Maria da Penha: Aspectos Criminais e Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência de Gênero”, e que informou a existência no Distrito Federal, do Decreto 45.989/20241, regulamentando a Lei nº 6.623/2020, sobre a concessão de aluguel social às mulheres vítimas de violência doméstica no Distrito Federal, estabelecendo a Secretaria de Estado da Mulher (SMDF) como órgão responsável pela implementação do benefício. Nossa admiração à professora Alice. A luta continua.
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