Opinião

Para além do precedente: distinção entre insumo e revenda no ISS da construção civil

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  • é advogado criminalista especialista em Direito Processual Penal pós-graduando em Tribunal do Júri membro do Clube Meta Jurídico de comissões temáticas de ciências criminais da OAB/SC e redator de artigos jurídicos.

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20 de junho de 2025, 7h01

O cenário tributário nacional, em especial no que tange à tributação do setor de serviços, tem sido palco de acalorados debates, gerando notável insegurança jurídica aos contribuintes. Nesse diapasão, a suposta consolidação de um entendimento restritivo pelo Superior Tribunal de Justiça, e sua célere adoção pelos tribunais estaduais, acerca da base de cálculo do ISS na construção civil, impõe uma análise mais acurada e menos automática, sob pena de se subverter a própria lógica da sistemática tributária.

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Construção civil, compra de imóvel na planta

Com o devido respeito ao precedente firmado, sua aplicação indiscriminada tem se baseado em uma premissa fundamentalmente equivocada: a de que o fornecimento de materiais em um contrato de empreitada se equipararia a uma “revenda de mercadoria”, a fim de restringir a análise à incidência de ICMS na cadeia de serviço.

Insta salientar que tal interpretação não sobrevive a uma análise mais aprofundada da natureza jurídica da operação e da correta cadeia de incidência tributária.

Não se pode olvidar que a cadeia produtiva da construção civil envolve, salvo exceções em que o prestador é o próprio produtor, no mínimo, duas relações jurídicas distintas e estanques.

No primeiro elo da cadeia, a empresa de construção civil atua como consumidora final. Ao adquirir cimento, aço, areia ou asfalto de seus fornecedores, ela participa de uma inequívoca operação de compra e venda mercantil. É neste momento, e somente nele, que se perfectibiliza o fato gerador do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

A obrigação tributária, de competência estadual, é do fornecedor (contribuinte de direito), sendo seu ônus financeiro suportado pela construtora (contribuinte de fato), que registra o valor total pago — incluindo o ICMS embutido — como custo de aquisição de insumos.

O tributo estadual, in casu, nasce e se exaure nesta etapa, integrando o custo do insumo para a construtora.

Fato gerador

A segunda relação jurídica, objeto da controvérsia, se dá entre a construtora e o cliente final. Aqui, o objeto contratual é diametralmente oposto: trata-se de uma “obrigação de fazer”, um serviço complexo de engenharia, e não uma “obrigação de dar”. O fato gerador é a prestação do serviço previsto nos itens 7.02 e 7.05 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003, atraindo a competência municipal para a cobrança do ISS.

Não se pode olvidar que a tentativa de condicionar a apuração do ISS (segundo ato) à forma como se deu a tributação do ICMS (primeiro ato) é uma contaminação entre obrigações tributárias distintas, criando uma condicionalidade que a lei jamais estabeleceu

Condicionar a dedução — esta que sequer apresenta tal requisito no disposto no artigo 7, § 2º, inciso I, da LC nº 116/2003 — ao recolhimento de ICMS, conforme já amplamente exposto em artigos anteriores da nossa parte, do mesmo tema, apresenta clara interpretação extensiva e inconstitucional, visto que violada a separação dos poderes: o Judiciário apresenta um requisito que o Legislativo não apresentou quando da edição da lei complementar.

A tese da “revenda” ignora a metamorfose que o material sofre ao ser empregado na obra. Ele perde sua autonomia, sua identidade, sendo consumido e transformado em parte indissociável do serviço. O cimento e o aço deixam de ser mercadorias para se tornarem um pilar; ao passo que o asfalto deixa de ser um produto para se tornar uma via pavimentada. Essa metamorfose é a prova definitiva de que o material atua como insumo, e não como mercadoria objeto de um ato de comércio subsequente.

Ora, a ratio decidendi para se tributar uma revenda é a existência de um ato de comércio, a mercantilização. Tal ato inexiste na relação da construtora com seu cliente. O que se contrata é o resultado final, a obra pronta, e não os seus componentes. A interpretação que ficciona uma revenda neste contexto é uma interpretação literal da complexa realidade contratual da construção civil.

Por fim, a aplicação do precedente restritivo aparentemente se apoia em um sofisma que confunde o conceito comercial de “preço” com o conceito jurídico-tributário de “base de cálculo”. Por imperativo de viabilidade econômica, este preço deve, necessariamente, cobrir todos os custos incorridos pelo prestador, o que, por óbvio, inclui o custo dos materiais adquiridos, além de mão de obra, equipamentos, despesas indiretas e o lucro. Exigir que o preço não contenha o valor dos materiais seria impor à construtora o prejuízo.

A própria Lei Complementar 116/2003 estabelece esta sequência lógica em seu artigo 7º: primeiro, define o “preço do serviço” como ponto de partida; para, em seguida, em seu § 2º, I, comandar que “não se incluem na base de cálculo o valor dos materiais”. A lei pressupõe a inclusão no preço para, então, autorizar a dedução na apuração fiscal.

A “base de cálculo”, por sua vez, é um conceito puramente fiscal. É a grandeza econômica sobre a qual a alíquota incidirá. A própria LC 116/2003, em seu artigo 7º, estabelece a receita para sua apuração: o caput define o ponto de partida, ao passo que o § 2º, inciso I, apresenta a dedução legal.

A lei é clara: parte-se do todo (preço) para se chegar à parte tributável (base de cálculo), subtraindo-se o que a própria lei manda subtrair. A analogia com o Imposto de Renda é inescapável: o contribuinte parte do “rendimento bruto” (o preço do serviço) e deduz as despesas permitidas por lei para encontrar o “rendimento tributável” (a base de cálculo).

A interpretação que usa a necessária inclusão do material no preço para proibir sua dedução da base de cálculo cria um paradoxo que torna o § 2º do artigo 7º letra morta.

A aplicação automática do precedente do STJ, sem a devida análise crítica de suas premissas, representa um risco à correta aplicação do direito e à estabilidade das relações contratuais. A tese restritiva se sustenta sobre uma ficção que não encontra amparo na natureza dos contratos de construção, na realidade empresarial do setor ou na lógica interna da legislação tributária.

Urge que os operadores do direito, em especial o Poder Judiciário, se debrucem sobre essa questão com a profundidade que ela exige, utilizando o instituto do distinguishing para separar as situações e, quiçá, sinalizando à corte superior a necessidade de um overruling, a fim de se evitar a petrificação de um entendimento que, com todas as vênias, subverte a boa técnica jurídica. O que se pede não é a criação de um benefício, mas o simples respeito àquilo que a lei, de forma clara e sistemática, já estabeleceu.

Autores

  • é advogado tributarista, associado ao escritório Basso, Cadore & Krahl Sociedade de Advogados, pós-graduando em Direito e Processo Tributário, autor de artigos jurídicos e membro de comissões temáticas da OAB-SC.

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