Inconstitucionalidade oculta: Selic e o deficit de coerência normativa na atualização de precatórios
20 de junho de 2025, 17h23
Por trás das normas aparentemente neutras, esconde-se muitas vezes um exercício de poder que, mais do que interpretar a lei, busca moldá-la aos interesses institucionais de quem a aplica. O recente movimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao estabelecer a aplicação da Selic sem capitalização mensal na atualização de precatórios, é exemplar nesse sentido. Não se trata aqui apenas de uma opção técnica ou de hermenêutica financeira: estamos diante de um sintoma claro de déficit de coerência normativa e de ruptura com os fundamentos da juridicidade.
Arquitetura normativa e sua desconstrução administrativa
A Emenda Constitucional nº 113/2021, ao substituir o sistema de correção monetária e juros de mora por um único indexador — a Selic — adotou, de forma explícita, um índice cuja natureza jurídica e econômica é amplamente conhecida: uma taxa acumulativa, de capitalização composta, definida pelo Banco Central. A intenção do constituinte derivado era inequívoca: dar previsibilidade, objetividade e isonomia ao regime de atualização de precatórios.
No entanto, a partir da Resolução CNJ nº 448/2022, que alterou o artigo 21 da Resolução CNJ nº 303/2019, a aplicação da Selic passou a sofrer um recorte interpretativo que a descaracteriza. O texto da norma passou a prever a correção dos precatórios pela Selic “acumulada mensalmente”, expressão que, em seu contexto, passou a ser interpretada como simples somatória dos percentuais mensais, sem capitalização composta.
O problema se agrava com a adesão automática de tribunais estaduais a essa leitura. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por meio dos Comunicados CNJ/TJSP nº 01/2024 e Depre nº 04/2024, institucionalizou a sistemática da SELIC simples, vedando o uso das tabelas que antes contemplavam a capitalização. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no Comunicado GP nº 39/2024, seguiu a mesma linha.
O que se observa, portanto, é a construção de uma interpretação administrativa que opera por exclusão: suprime-se, sem base legal expressa, a natureza composta da Selic.
Contradição performativa do Estado: quando o devedor é o próprio poder público

Esse movimento de amputação normativa revela um traço performativo preocupante: o Estado que, como credor, exige do cidadão a aplicação da Selic em sua forma plena (composta), quando figura como devedor, redefine as regras do jogo a seu favor. O princípio da coerência normativa e da não contradição no agir estatal cede lugar a um casuísmo fiscalista.
Aqui, mais do que um erro técnico, estamos diante de uma falha ética e jurídica de maior profundidade. A vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a boa-fé objetiva e o princípio da confiança legítima são desprezados em nome de uma conveniência financeira momentânea.
O Estado, ao interpretar a Constituição para si mesmo, escolhe a forma de Selic que melhor lhe convém, num exercício de poder que deslegitima a própria função normativo-constitucional.
Inflação, capitalização e a falácia da linearidade compensatória
Do ponto de vista econômico, o raciocínio que sustenta a Selic simples incorre em uma falácia técnica primária: a suposição de que a inflação — fenômeno notoriamente acumulativo — pode ser compensada por um índice de atualização linear.
A Selic, como definida pelo Banco Central, é uma taxa anual composta, que reflete mês a mês o acúmulo de juros sobre juros. Ignorar esse aspecto é subverter a lógica econômica da correção monetária. Ao aplicar apenas a somatória dos percentuais mensais, os tribunais estão, na prática, reduzindo o montante devido e criando um deságio estrutural que contraria o princípio da integralidade da reparação.
Essa prática conduz a um resultado materialmente injusto: o valor pago ao credor, ao final, é menor do que o valor real que a Selic composta proporcionaria. Isso desvirtua o comando constitucional que visa garantir a preservação do poder de compra da moeda no tempo.
Decisão administrativa como produção de deficit normativo
É necessário reconhecer que estamos diante de um fenômeno que vai além da interpretação equivocada de um dispositivo legal. O que se vê é uma produção de déficit normativo por via administrativa. O CNJ, ao editar resoluções com força regulamentar, e os tribunais locais, ao replicarem essas orientações, estão criando um novo regime jurídico — um regime que a Constituição não autorizou.
Essa forma de atuação administrativa revela um modelo de “gestão da escassez” que, sob o pretexto de conter o impacto fiscal, promove a redução indevida de direitos fundamentais dos credores públicos. Não se trata de uma simples escolha hermenêutica entre capitalização ou não. Trata-se de um exercício de poder que, ao reinterpretar a Selic contra o cidadão, viola a própria essência da juridicidade.
Necessária recomposição da ordem normativa
O cenário atual, marcado por essa interpretação restritiva e economicamente lesiva, exige reação institucional. É imprescindível que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, estabeleça os limites da atuação administrativa do CNJ e reafirme o conteúdo jurídico-econômico da Selic.
A opção legislativa foi clara: a Selic, como ela é, com seus efeitos compostos. Qualquer tentativa de modificação administrativa, ainda que amparada por resoluções ou comunicados, representa uma afronta à Constituição, ao princípio da segurança jurídica e ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
Na essência, o problema não é apenas de técnica normativa, mas de legitimidade democrática: o Estado não pode, por atos administrativos, alterar a substância de um direito constitucionalmente assegurado.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!