A inteligência artificial e a recuperação de crédito
20 de junho de 2025, 21h18
A recuperação de crédito é um dos pilares da saúde financeira das empresas, sendo um processo essencial para a quitação de valores inadimplidos por clientes, fornecedores ou parceiros comerciais. Porém, as empresas credoras enfrentam desafios significativos para garantir a recuperação desses valores, seja por meio de métodos extrajudiciais ou judiciais. Entre os obstáculos mais comuns, destacam-se a dificuldade em localizar os devedores, a identificação de bens para penhora e o processo de leilão ou adjudicação desses bens. Além disso, as reiteradas tentativas de bloqueio de valores para quitação da dívida podem ser morosas e onerosas, gerando custos adicionais para as empresas, como despesas judiciais e a atualização monetária da dívida.

A introdução e o aperfeiçoamento das tecnologias baseadas em inteligência artificial (IA) apresentam-se como alternativas promissoras para superar esses desafios. Hoje, com sua habilidade de analisar grandes volumes de dados em tempo real, a IA pode proporcionar maior eficiência nos processos de recuperação de crédito, além de possibilitar a personalização das estratégias de cobrança, identificando padrões de inadimplência e prevenindo riscos. A combinação com o Big Data amplia essa capacidade, permitindo uma análise mais precisa do comportamento dos clientes e a previsão de resultados mais eficazes.
No Poder Judiciário, a adoção da inteligência artificial tem avançado com o objetivo de automatizar procedimentos, otimizar tarefas repetitivas, realizar operações em bloco e apoiar servidores e magistrados na gestão de milhares de processos. Embora ainda incipiente, o uso da IA tem potencial para contribuir significativamente também nas ações de recuperação de crédito judicial, especialmente por meio da análise de dados, classificação de processos e definição de prioridades de cobrança.
Investigação patrimonial
Ferramentas como Sisbajud, Renajud e Infojud são amplamente utilizadas para facilitar a investigação patrimonial e a busca de bens e valores, viabilizando a penhora de ativos. Entretanto, essas ferramentas, por si só, não são baseadas em IA, funcionando como sistemas de informação e consulta, fundamentais para a execução judicial, mas ainda dependentes da atuação humana para sua efetiva utilização.
Por outro lado, iniciativas recentes demonstram um uso cada vez mais integrado da IA nos tribunais brasileiros. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem promovido o desenvolvimento de projetos que incluem IA para análise preditiva, triagem processual, detecção de litigância predatória e geração de relatórios automatizados. A ferramenta Apoia (Assistente Pessoal Operada por Inteligência Artificial), desenvolvida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) e integrada à Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br), é um exemplo relevante, com potencial para apoiar magistrados em tarefas como classificação de processos e síntese de informações, podendo futuramente ser adaptada à área de recuperação de crédito (CNJ, 2025).
Inovação nos tribunais
Diversos tribunais também têm adotado soluções inovadoras com foco em execuções fiscais, campo especialmente sensível à morosidade processual. No Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), em parceria com o CNJ, foi desenvolvida a plataforma Victoria, que visa a automatizar as execuções fiscais por meio da verificação da citação, busca de ativos financeiros via Sisbajud e, quando possível, geração de minutas de sentença de extinção da execução. Além disso, está em andamento o desenvolvimento de um motor de IA generativa para apoiar magistrados na redação de decisões (CNJ, 2024).
Na 5ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas, uma plataforma de IA foi implementada para automatizar penhoras via BacenJud, vinculando diretamente o Judiciário às instituições bancárias. O sistema também analisa prescrição intercorrente e contribuiu para a redução significativa da taxa de congestionamento processual.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ-RN), em colaboração com a Universidade Federal do RN, desenvolveu os robôs Poti, Clara e Jerimum, responsáveis por tarefas como bloqueio e desbloqueio de valores, emissão de certidões, sugestão de decisões e classificação automática dos processos.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) implementou o sistema Elis, capaz de realizar triagens em massa: enquanto a triagem manual de 70 mil processos levaria cerca de um ano e meio, Elis processa cerca de 80 mil em apenas 15 dias.
No Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), a ferramenta Radar permite buscas por palavras-chave no acervo processual e identificação de casos repetitivos, facilitando julgamentos em bloco com base em decisões paradigma.
Órgãos públicos com IA
Outros órgãos também têm adotado a IA com fins de recuperação de crédito e rastreamento patrimonial. A Petrobras, em conjunto com o Ministério Público Federal e a Advocacia-Geral da União, desenvolveu uma ferramenta de IA para cruzamento de bases públicas e privadas, possibilitando a localização de bens móveis e imóveis, contas bancárias e participações societárias de devedores, com aplicação em investigações de enriquecimento ilícito, corrupção e recuperação de ativos (Agência Petrobras, 2025).
Adicionalmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) implementou o motor de IA STJ Logos, voltado ao auxílio na produção de decisões judiciais (STJ, 2025). O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por sua vez, publicou diretrizes específicas para o uso ético da IA no Judiciário, abordando questões como transparência, segurança jurídica e proteção de dados (TJ-SP, 2025).
Embora as soluções atuais de IA aplicadas diretamente à recuperação de crédito judicial ainda sejam limitadas, há um potencial significativo para que futuras integrações com bancos de dados e sistemas de gestão processual tornem a cobrança judicial mais eficiente e eficaz.
Princípio da dignidade humana
Por fim, é imprescindível que a adoção da IA observe a Constituição e a legislação infraconstitucional vigente, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, Constituição), o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. O uso responsável da IA pode trazer ganhos de eficiência sem comprometer os direitos fundamentais, contribuindo para a celeridade processual e a efetividade na recuperação de crédito. Como ressaltam Souza e Siqueira (2020, p. 27), o uso da IA no Judiciário deve ocorrer com cautela e sob constante supervisão humana, assegurando a legalidade e a justiça nas decisões.
Importante destacar que o Senado aprovou, em dezembro de 2024, o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que estabelece o marco legal da inteligência artificial no Brasil. O texto, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe uma regulamentação diferenciada dos sistemas de IA, considerando seu impacto na vida humana e nos direitos fundamentais. Entre as disposições, destacam-se a proibição de sistemas que induzam comportamentos prejudiciais ou discriminatórios e a exigência de supervisão humana em aplicações de alto risco.
Caso aprovado, esse marco regulatório poderá trazer modificações significativas na forma como o Judiciário se relaciona com a IA, impondo diretrizes específicas de governança, responsabilidade e ética para o uso dessas tecnologias. Assim, é fundamental que operadores do direito estejam atentos a essas mudanças para alinhar práticas à futura regulação (Senado, 2024).
A inteligência artificial apresenta potencial relevante para otimizar processos de recuperação de crédito. Seu uso pode contribuir para aprimorar a busca por devedores, a análise de crédito e a gestão de cobranças, além de oferecer suporte em tarefas repetitivas que demandam tempo e recursos humanos significativos. Contudo, é importante ressaltar que a utilização da IA ainda é incipiente. Sua aplicação da IA deve ocorrer com responsabilidade, observando os limites legais e os princípios éticos que regem a atividade jurisdicional.
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