A mudança vem de dentro

STJ enfrenta avalanche de demandas enquanto espera filtro de relevância

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19 de junho de 2025, 8h15

* Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2025, lançado na última quarta-feira (11/6), no STF (clique aqui para assistir ao evento na íntegra). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

Trinta e seis anos se passaram desde a instalação do Superior Tribunal de Justiça, sendo que nos últimos 17 a corte vem se dedicando a fixar teses vinculantes para orientar todo o Judiciário em busca da pacificação social. Mas as complexidades da sociedade brasileira e o amplo acesso à Justiça garantido pela Constituição Federal de 1988 criaram um cenário em que a corte se depara, ano após ano, com uma demanda processual invencível, o que inclui o recorde de 516 mil casos distribuídos e registrados em 2024, aumento de 14% em relação a 2023. No momento em que o STJ se vê cada vez ainda distante de seu papel constitucional de ser um tribunal de precedentes, dono da última palavra sobre a interpretação da legislação infraconstitucional, ganham trações movimentos de mudança, de dentro para fora e em diferentes searas.

CAPA - Anuário da Justiça Brasil 2025, BR25, Brasil 2025

Capa da nova edição do Anuário da Justiça Brasil 2025

O principal deles é a ideia de implementar pela via do Regimento Interno o filtro da relevância criado pela Emenda Constitucional 125/2022, segundo a qual o STJ só vai julgar os casos em que se comprove que a questão federal envolvida merece ser apreciada na instância especial. A rigor, essa sistemática já poderia estar em vigor, mas a corte escolheu um caminho cuidadoso e agora paga o preço: em outubro de 2022, quando cinco tribunais de apelação já exigiam a comprovação da relevância, decidiu que seria melhor a edição de uma lei regulamentadora para seu funcionamento. Em dezembro daquele ano, enviou ao Senado um anteprojeto de lei com sugestão de regulamentação. A versão da OAB só foi entregue em abril de 2024. E desde então, não houve um centímetro de avanço nessa questão no Congresso. Para a advocacia, trata-se de uma questão corporativa: filtrar os casos que podem chegar a um tribunal que decide 698 mil vezes como em 2024 é cortar uma fatia de mercado de trabalho.

A melhor estratégia do STJ parece ser simplesmente reproduzir no Regimento Interno as disposições da emenda constitucional, definindo internamente como (provavelmente pelo plenário virtual), quem (provavelmente as seções, não as turmas) e quando (periodicidade) vai avaliar se as questões recebidas são relevantes ou não.

Enquanto isso, o STJ segue como um tribunal que julga muito, mas seus números merecem ser mais bem contextualizados. Os ministros e colegiados trabalham de maneira operosa, acima da capacidade, mas julgam menos do que as estatísticas mostram porque, graças a essa enxurrada de processos, o próprio tribunal implementou uma filtragem na estrutura da Presidência. Dados de 2024 mostram que quatro de cada dez recursos especiais e agravos em REsp sequer são distribuídos aos gabinetes. A Assessoria de Admissibilidade, Recursos Repetitivos e Relevância (ARP) faz uma peneira inicial e derruba esses casos pela aplicação de óbices formais e jurisprudenciais — processos que não têm condições formais de serem processados ou nem deveriam ter sido enviados ao STJ por tratar de temas já decididos de forma vinculante, caso em que são devolvidos para juízo de retratação.

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Fonte: Superior Tribunal de Justiça em 26/3/25

A estimativa é que, sem esse trabalho, a distribuição aos gabinetes aumentaria em 49% na 1ª Seção (Direito Público), 83% na 2ª Seção (Direito Privado) e 24% na 3ª Seção (Direito Criminal) — esta última é impactada também por uma filtragem inicial nos HC feita pela ARP; só em 2024, mais de 14 mil desses foram inadmitidos pela Presidência. Ao somar as decisões da Presidência com os despachos dos gabinetes, 33% dos HC sequer foram julgados no mérito.

No caso dos AREsp — os agravos contra as decisões dos tribunais de apelação que não admitem o recurso especial —, mais da metade dos recebidos pelo STJ não passam da ARP. Estatísticas que incluem decisões dos gabinetes mostram que 81,7% dos AREsp não foram julgados no mérito. A taxa de provimento desses recursos é de apenas 4,1%, o que indica que a admissibilidade é bem-feita no segundo grau.

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Fonte: Superior Tribunal de Justiça em 26/3/25

 

A intenção é melhorar a qualidade das admissões de REsp. Dos 68 mil enviados à corte em 2024, quase 42% não foram julgados no mérito, somadas as decisões da Presidência e dos gabinetes. Para isso, o STJ fez uma reunião com vice-presidentes dos tribunais de apelação e propôs a criação de uma espécie de manual de admissibilidade, para melhor integração.

Essa atuação da ARP e a recente ampliação dos julgamentos virtuais levou ao ápice de, em fevereiro de 2025, o STJ registrar 89.024 decisões proferidas, o que representa 2,2 delas para cada minuto do mês — 37,3% delas (33.250) proferidas pela Presidência. Ou seja, só o ministro Herman Benjamin assinou média de 49 decisões por hora. O fato de essa produtividade ser humanamente impossível dá noção do grau de automação dessas decisões. O ministro Sérgio Kukina tratou do tema em um evento sobre precedentes vinculantes, ao dizer que de nada adianta ler a quantidade de decididos pelo STJ ao final do ano. “E daí? Quantas foram ao mérito? Umas 2,5 mil? Então alguma coisa está errada no sistema. Ou ninguém sabe recorrer ou nós não sabemos julgar. Não é possível um modelo de faz-de-conta em que a promessa constitucional de acesso à Justiça não se realiza.”

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Fonte: Superior Tribunal de Justiça em 26/3/25

Para auxiliar nesse trabalho, o tribunal ainda desenvolveu uma inteligência artificial generativa própria, que será capaz de analisar as petições de AREsp e minutar decisões. A iniciativa foi exaltada pela Presidência, para quem o Poder Judiciário não pode servir de barriga de aluguel de empresas de tecnologia. “Nós não vendemos informações, nem queremos que elas sejam canibalizadas”, destacou o ministro Herman Benjamin. A principal mudança tecnológica foi mesmo a ampliação pouco restrita dos julgamentos virtuais. Antes, eram reservados a embargos de declaração e embargos internos. A partir de 2024, só quatro classes não podem ir para ambiente online: ações penais originárias, inquéritos, queixas-crime e embargos de divergência quando o mérito da questão for enfrentado pelo relator. Até recurso repetitivo pode ser julgado virtualmente.

Na prática, isso não aconteceu ainda, eouso da ferramenta é bem mais conservador: os colegiados seguem julgando recursos internos (agravos regimentais e outros), deixando para as sessões presenciais os casos que mereçam debate, destaque ou maior agilidade. Os ministros gostam do sistema criado, que agora oferece maior transparência: é possível ver a votação em tempo real e acessar os votos redigidos. E minimizam as críticas da advocacia ao uso das sustentações orais gravadas. Veem nelas uma facilidade: é possível assisti-las e reprisá-las a tempo e a modo. Todas são assistidas, não necessariamente primeiro pelo ministro, que nem sempre — ou quase nunca — é quem minuta o voto. Em alguns casos, há ajuda de assessores para captar e destacar as falas dos advogados. Fato é que, conforme os casos passam para o plenário virtual, o interesse pela sustentação oral cai drasticamente na advocacia.

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Fonte: Superior Tribunal de Justiça em 26/3/25

Uma preocupação é mesmo o volume de trabalho. É comum ver sessões virtuais de uma semana de duração com até 1,6 mil processos nas turmas. “Não fico preocupada com as sustentações orais virtuais. O que preocupa é você se deparar com uma pauta de mais de mil processos na sessão virtual e não ter condições físicas de analisar todos eles em cinco dias”, disse a ministra Nancy Andrighi, publicamente. Outra é evitar o chamado “debate de votos”: que advogados corram aos gabinetes para contestar votos virtualmente proferidos durante a sessão de julgamento virtual. Alguns ministros vêm restringindo o recebimento dos causídicos nessa hipótese.

Outra mudança envolve a dinâmica interna da corte e é profundamente afetada pelas investigações do esquema de venda de decisões de servidores que atuavam em quatro gabinetes (Nancy Andrighi, Og Fernandes, Isabel Gallotti e Moura Ribeiro). Não há indícios de participação dos ministros, mas o caso criou certo pavor no tribunal. Advogados relatam a sensação de que os gabinetes estão mais fechados — tão fechados que não houve resposta pública uniforme para a crise. A sociedade ainda não sabe em quantos e quais processos esses servidores atuaram, nem quais medidas foram tomadas para mapear esse risco. As próprias relações entre os ministros estão mudadas. Isso ficou claro quando o Pleno do STJ, que reúne todos os seus integrantes, decidiu que a eleição de Herman Benjamin seria a última feita por aclamação, seguindo a praxe de escolher o presidente pela ordem de antiguidade. A partir de 2026, haverá votação e, portanto, campanha interna. Na ocasião, o ministro João Otávio de Noronha chegou a dizer que “os tempos mudaram” no STJ: “notícias saem de dentro desta casa para a imprensa, contra colegas. Há clima de hostilidade nas sessões. A gente não transita mais como transitava antigamente. Acredito que o momento é de resgatar as formalidades”.

A isso se somam os efeitos da votação mais recente de listas tríplices para ocupar as duas vagas abertas para o cargo de ministro, que pela primeira vez foi feita de maneira eletrônica e, com isso, 100% secreta. Até então, a votação era por cédula. Na vez em que ninguém soube o voto de ninguém, como declarou o ministro Herman Benjamin, os favoritos e os que reuniram apoio de grupos até então influentes internamente acabaram preteridos. As votações mais recentes inclusive mostram uma tendência: quem faz campanha mais abertamente e com a ajuda de padrinhos externos mais poderosos acaba tendo isso contra si próprio. O STJ, na sua independência, vem escolhendo candidatos de relações públicas mais modestas. O responsável por navegar essas transformações no comando do tribunal é um ministro de experiência comprovada, que não quis ser vice-presidente nem corregedor nacional de Justiça, mas que tem sido elogiado pelos colegas. Herman Benjamin pôs a mão na massa: de pronto alterou a dinâmica de julgamentos, reservando as sessões presenciais para as primeiras semanas do mês e liberando o restante para a agenda dos ministros. Como contrapartida, ele é agora o senhor das mudanças de data de julgamento, as quais causavam certo esvaziamento do tribunal em determinados períodos.

Também construiu uma forma de viabilizar a convocação de cem juízes criminais para auxiliar a 3ª Seção, assoberbada pela imensa demanda de Habeas Corpus e de acervo crescente. Os ministros são gratos a esse auxílio, mas temem que, quando as convocações acabarem, o problema volte de uma vez, já que os motivos para o excesso de processos persistem, como desrespeito à jurisprudência. Benjamin ainda tem se dedicado a espalhar a palavra do STJ pelo Brasil e pelo mundo, algo que julga importante. É um presidente empolgado, atuante e competente, à imagem do que o STJ deseja para si, em meio a tantas transformações.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2025
19ª Edição
ISSN:
 2179981-4
Número de páginas: 256
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br

Anuário da Justiça Brasil 2025 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado — FAAP.

Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:
Adriana Bramante Advogados Associados
Advocacia Amanda Flávio de Oliveira
Advocacia Fernanda Hernandez
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Basilio Advogados
Bergamini Advogados
Bermudes Advogados
Bialski Advogados Associados
Bottini & Tamasauskas Advogados
Bradesco S.A.
Carneiros Advogados
Cecilia Mello Advogados
Cesa – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Corrêa Advogados
CP Legal Claims
D’Urso & Borges Advogados Associados
Dias de Souza Advogados
FAAP
Fidalgo Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
Gueller e Vidutto – Sociedade de Advogados
Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
Heleno Torres Advogados
JBS S.A.
Laspro Consultores
Lucon Advogados
Machado Meyer Advogados
Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia
Maria Fernanda Vilela & Advogados
Mauler Advogados
Milaré Advogados
Moraes Pitombo Advogados
Moro e Scalamandré Advocacia
Mubarak Advogados
Multiplan
Nelio Machado Advogados
Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo
Palheiro & Costa – Sociedade de Advogados
Pardo Advogados Associados
Perez e Rezende Advogados
Procópio de Carvalho Advocacia
Refit
SOB – Sacramone, Orleans e Bragança Advogados
Tavares & Krasovic Advogados
Tojal Renault Advogados
Warde Advogados

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