Sobre o sistema presidencialista nos interrogatórios criminais
19 de junho de 2025, 11h24
Ainda no hype dos recentes interrogatórios dos conhecidos réus do Núcleo 1 da Ação Penal de Tentativa de Golpe de Estado, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, interessante trazer à lume questão que pode ter passado despercebida aos leigos ou aos mais interessados na discussão do mérito político dos respectivos depoimentos do que sobre os aspectos processuais que circundaram tais oitivas.
Trata-se aqui da (controversa?) condução presidencialista feita pelo ministro Alexandre de Moraes quando dos referidos interrogatórios ocorridos no âmbito da 1ª Turma.
Em outras palavras, discute-se o modelo utilizado pelo ministro na condução dos depoimentos dos acusados, ocasião em que foi exigido dos demais atores processuais, que não o próprio ministro e o ministro Luiz Fux, que as perguntas formuladas fossem direcionadas, em primeiro lugar, ao ministro-presidente para que este as deferisse ou não, com a possibilidade ainda de reformular algumas delas.
Primeiro, é de se constatar que tal sistema, diferente daquele previsto em relação às oitivas das testemunhas, submetidas ao cross examination, parece encontrar guarida expressa no artigo 188 do Código de Processo Penal (CPP):
Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.
De outro modo, no que concerne à colheita da prova testemunhal, assim dispõe o artigo 212 do CPP (com redação dada pela Lei nº 11.690 de 2008):
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Aliás, só para melhor análise, coteja-se a redação original deste último dispositivo:
Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.
Inquirição de testemunhas

Neste ponto, nota-se de modo claro que a reforma legislativa mencionada alterou de maneira evidente a forma de inquirição das testemunhas a ponto de adotar o exame direto e cruzado, sem intermédio do magistrado, que, malgrado continuar a presidir a instrução, atuaria agora de modo subsidiário, conforme bem preleciona Aury Lopes Jr.:
A mudança foi muito importante e adequada, para conformar o CPP à estrutura acusatória desenhada na Constituição que, como visto anteriormente ao tratarmos dos sistemas processuais, retira do juiz o papel de protagonista da instrução. Ao demarcar a separação das funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gestão da prova às partes, o modelo acusatório redesenha o papel do juiz no processo penal, não mais como juiz-ator (sistema inquisitório), mas sim de juiz-espectador. Trata-se de atribuir a responsabilidade pela produção da prova às partes, como efetivamente deve ser num processo penal acusatório e democrático.
Portanto, o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. Não mais, como no modelo anterior, terá o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra às partes, para que, com o que sobrou, complementar a inquirição. (LOPES JUNIOR, 2019, p. 551)
De outro modo se dá quanto aos interrogatórios, que são, por opção também legal, não obstante as reformas advindas da Lei nº 10.792/2003, conduzidos especialmente pelo magistrado, o qual, após informar o réu a respeito do seu direito ao silêncio, passa a formular perguntas tanto sobre a qualificação deste quanto sobre o meritum causae, isto é, sobre a acusação.
Poder-se-ia entender, todavia, que, pela redação literal do citado artigo 188 do CPP, essa condução presidencial deveria perpassar necessariamente por todo o ato processual. É dizer, toda e qualquer pergunta das partes deveriam ser intermediadas pelo magistrado que poderia reformular ou mesmo indeferi-las diante da sua impertinência ou irrelevância.
Esta parece ser a posição adotada por alguns processualistas, como Renato Brasileiro de Lima e Leonardo Barreto Moreira Alves:
Com a entrada em vigor da Lei nº 10.792/03, e a consequente alteração do artigo 188 do CPP, o interrogatório passou a se submeter ao princípio do contraditório, possibilitando a interferência das partes. Ao contrário do que se dá com os depoimentos de testemunhas e do ofendido, em relação aos quais vigora o sistema do exame direto e cruzado (CPP, artigo 212), o interrogatório continua submetido ao sistema presidencialista, devendo o juiz formular as perguntas antes das reperguntas das partes. Apesar de a maioria da doutrina entender que o interrogatório tem natureza jurídica de meio de defesa, tem prevalecido o entendimento de que quem repergunta primeiro é a acusação (Ministério Púbico, querelante, ou assistente), seguindo-se as perguntas da defesa. (LIMA, 2019, p. 697)
Noutro giro, quanto ao sistema de perguntas dirigidas ao acusado, o CPP, em seu artigo 188, mesmo após a reforma promovida pela Lei nº 10.792/03, continua adotando o sistema presidencialista, ou seja, o juiz é o presidente do ato. Desse modo, o interrogatório deve ser iniciado com as perguntas do juiz, encerrando-se com as perguntas complementares das partes, feitas por intermédio do magistrado, que poderá indeferi-las se impertinentes ou irrelevantes, o que restará consignado no termo de audiência, permitindo futura alegação das partes de nulidade do feito por cerceamento do direito à acusação ou defesa. (ALVES, 2022, p. 779)
Não seria a melhor posição do sistema acusatório
No entanto, com a devida licença aos referidos professores, esta parece não ser a melhor posição a ser adotada em favor do sistema acusatório ou, diria ainda, em favor do mero dinamismo da instrução processual, que prima antes pela busca da verdade à saudação da forma pela forma.
Assim, data venia, o fato do juiz ter a primazia da condução do interrogatório não parece ter o condão de autorizar tão e simplesmente a adoção de tal modelo também para as inquirição das partes, seja por já se encontrar-se há muito em desuso no sistema processual cível, por exemplo, seja por seu caráter demasiado formalista, em oposição a um sistema judicial abarrotado de audiências correndo contra o ora inalcançável ideal constitucional da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição).
Mais, sob a ótica do sistema acusatório, na tentativa cada vez mais crescente de diminuir a atuação do magistrado de modo a lhe assegurar a imparcialidade, inclusive do ponto de vista interno ou psíquico, revela-se ainda mais razoável a atuação subsidiária do juízo neste ponto do interrogatório, a exemplo do que ocorre no procedimento do Tribunal do Júri:
Art. 474. §1o O Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado.
Nestes casos, permanecerá o poder-dever do magistrado de indeferir as perguntas repetidas, inúteis, impertinentes ou as que induzirem a resposta, na forma do artigo 212 do CPP.

Tal posição é refletida por autores como Aury Lopes Jr.
De toda sorte, malgrado o posicionado aqui externado, não há como olvidar que a jurisprudência nacional tem oscilado em favor da manutenção do sistema presidencialista na sua totalidade, não maculando, contudo, a adoção parcial pelos magistrados do cross examination nos interrogatórios (RHC nº 48.354/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 09.12.14).
Ademais, salvo melhor juízo, no caso retro mencionado não houve insurgência de nenhuma das defesas sobre o modo de condução do ministro, o que, a princípio, indica a falta de prejuízo dos acusados, e, portanto, ausência de qualquer nulidade, constituindo-se tal fato mera irregularidade, se muito.
Em conclusão a tudo quanto consignado, em que pese a divergência sobre o tema, parece-nos não ser adequada, em benefício do sistema acusatório e da dinâmica instrutória, a adoção do sistema presidencialista na condução do interrogatório em sua totalidade, notadamente em relação às perguntas formuladas pelas partes.
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Referências
ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Manual de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Código de Processo Penal.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
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