Opinião

A reincidência em processos ambientais federais de infração estadual

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19 de junho de 2025, 9h24

Fernando Augusto/Ibama

A caracterização da reincidência em processos administrativos ambientais federais é temática polêmica, especialmente diante da utilização, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de autos de infração lavrados por órgãos estaduais e municipais para fins de agravamento de penalidades.

O problema central reside na ausência de previsão na legislação federal para essa prática, levantando questionamentos quanto à sua legalidade e compatibilidade com os princípios constitucionais aplicáveis ao tema.

A despeito de o artigo 225 da Constituição impor ao poder público de maneira geral o dever de proteção ao meio ambiente, tal dever não interfere na autonomia ou na independência dos entes federativos e nem embasa a interação entre processos administrativos sancionadores ambientais de entes federativos distintos.

Competência de ações administrativas ambientais

Prova dessa independência entre os entes federativos, especialmente em matéria ambiental, está consignada na Lei Complementar (LC) nº 140/2011, que indica, separadamente, as ações administrativas ambientais de competência da União, dos estados e dos municípios.

Essa Lei ainda traz dispositivos voltados à cooperação e delegação de poderes entre os entes federativos, o que não significa interação entre processos administrativos de esferas distintas, muito antes o contrário. Nesse sentido, vejamos alguns dispositivos da LC:

Art. 4o  Os entes federativos podem valer-se, entre outros, dos seguintes instrumentos de cooperação institucional:

[…]

II – convênios, acordos de cooperação técnica e outros instrumentos similares com órgãos e entidades do Poder Público, respeitado o art. 241 da Constituição Federal;

[…]

V – delegação de atribuições de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar;

VI – delegação da execução de ações administrativas de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar.

Indo mais além, ao nosso ver, a LC na verdade veda expressamente a prática intentada pelo ICMBio e Ibama. Vejamos:

Art. 3º  Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar:

[…]

III – harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente;

De certa forma, a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) também vedou conflitos e sobreposições de autuações administrativas entre entes federativos, inclusive indicando hipóteses em que a multa aplicada por um ente substitui a aplicada por outro, a saber:

Art. 76. O pagamento de multa imposta pelos Estados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios substitui a multa federal na mesma hipótese de incidência.

Não por acaso, há leis de processos administrativos específicas para União e estados, as quais, por óbvio, são aplicáveis aos processos instaurados no âmbito de suas respectivas competências.

Nessa mesma linha, o Decreto Federal º 6.514/2008 dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações e contém dispositivos legais expressos nesse sentido:

Art. 94.  Este Capítulo regula o processo administrativo federal para a apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Parágrafo único.  O objetivo deste Capítulo é dar unidade às normas legais esparsas que versam sobre procedimentos administrativos em matéria ambiental, bem como, nos termos do que dispõe o art. 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição, disciplinar as regras de funcionamento pelas quais a administração pública federal, de caráter ambiental, deverá pautar-se na condução do processo.

Especificamente sobre a reincidência, vejamos o que dispõe o Decreto Federal nº 6.514/2008:

Art. 11.  O cometimento de nova infração ambiental pelo mesmo infrator, no período de cinco anos, contado da data em que a decisão administrativa que o tenha condenado por infração anterior tenha se tornado definitiva, implicará:

I – aplicação da multa em triplo, no caso de cometimento da mesma infração; ou

II – aplicação da multa em dobro, no caso de cometimento de infração distinta.

§ 1º  O agravamento será apurado no procedimento da nova infração, do qual se fará constar certidão com as informações sobre o auto de infração anterior e o julgamento definitivo que o confirmou.

§ 2º  Constatada a existência de decisão condenatória irrecorrível por infração anterior, o autuado será notificado para se manifestar, no prazo de dez dias, sobre a possibilidade de agravamento da penalidade.

§ 3º  Caracterizada a reincidência, a autoridade competente agravará a penalidade, na forma do disposto nos incisos I e II do caput.

Reincidência de processos administrativos

Nota-se que o decreto em nada prevê a possibilidade de considerar autos de infração estaduais e municipais para fins de reincidência em processos administrativos federais.

Spacca

Aqui, entende-se que o assunto pertinente à aplicação de reincidência em processo administrativo sancionador federal com base em processos administrativos estaduais ou municipais está definitivamente solucionado, uma vez que nem a Lei de Crimes Ambientais e nem o Decreto Federal nº 6.514/2008 discorrem sobre o tema. Nesse ponto, forçoso lembrar que essa lei discorre sobre reincidência apenas em relação aos crimes ambientais (artigo 15), permanecendo silente no tocante à aplicação de reincidência em infrações administrativas.

Nesse contexto, revela-se juridicamente inadmissível a utilização de sanções administrativas estaduais como fundamento para agravar a penalidade em sede de procedimento sancionador federal, a pretexto de caracterizar reincidência. Isso porque, como ressaltam Sundfeld e Souza (2017, p. 192)[1], a reincidência pressupõe a prática de nova infração, pelo mesmo sujeito, após decisão definitiva de condenação anterior, no mesmo ambiente juridicamente relevante.

Quando o órgão julgador federal considera sanções estaduais para fins de agravamento da pena com base em suposta reincidência, incorre em violação ao princípio da legalidade, pois amplia os efeitos de um ato sancionador além de sua jurisdição e fora dos marcos legais autorizados.

Como bem apontam os autores mencionados, essa inadequação se torna evidente ao aplicarmos a analogia trazida pelos autores:

Imagine-se o docente universitário que cometa infração disciplinar no âmbito da Escola Politécnica da USP, pela qual seja definitivamente punido (…). Será ele reincidente se cometer, posteriormente, outra infração, também disciplinar, no exercício da profissão de engenheiro, apenável nos termos de outra lei (a que regula o exercício da engenharia)? Parece evidente que não. São dois âmbitos ou ambientes bem distintos, em que o mesmo sujeito atua e é apenado, ainda que por infrações do mesmo “gênero” (é dizer, ao mesmo valor jurídico do padrão de conduta ou disciplina exigível): um é o da docência, o outro é o ambiente do exercício da engenharia. Ainda que ambas sejam infrações disciplinares, os ambientes juridicamente relevantes são distintos. (SUNDFELD; SOUZA, 2017, p. 193).

A crítica se reforça com outra passagem elucidativa:

A reincidência supõe a prática de infrações no mesmo ambiente juridicamente relevante. no mesmo ambiente juridicamente relevante. É por isso que a infração de trânsito não constitui “reincidência” da infração disciplinar como servidor público, ou da infração ambiental, ou da infração aos deveres da paternidade ou aos deveres do matrimônio – ainda que todas sejam do mesmo sujeito. Cada uma das condutas infracionais está relacionada a ambiente jurídico específico.

É por isso, também, que a infração disciplinar perante uma instituição pública (a universidade, no exemplo citado) não constitui reincidência de infração disciplinar perante outra (a escola estadual). (SUNDFELD; SOUZA, 2017, p. 195).

Unificação de instâncias e jurisdições distintas

O simples fato de o sujeito ser o mesmo — pessoa física ou jurídica — não autoriza a unificação artificial de instâncias e jurisdições distintas para efeito de agravamento punitivo. A tentativa de reconhecer reincidência com base em sanções aplicadas por órgãos de outra esfera federativa (estadual ou municipal) ofende o devido processo legal e o postulado da unicidade procedimental dentro de cada ordenamento sancionador.

Contudo, salta aos olhos as normativas infralegais editadas pelo ICMBio e pelo Ibama, que introduziram a previsão de que autos de infração lavrados por outros órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) podem ser considerados para fins de agravamento de penalidades. A Instrução Normativa nº 9/GABIN/ICMBio, de 23 de agosto de 2023, e a Instrução Normativa IBAMA nº 19, de 2 de junho de 2023, estabelecem que:

Instrução Normativa GABIN/ICMBio nº 09/2023

 Art. 86. Para efeito de agravamento da multa por reincidência, poderão ser utilizados autos de infração confirmados por outros órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA.

§ 1º O ICMBio poderá celebrar acordos de cooperação com órgãos estaduais e municipais de meio ambiente visando dar cumprimento ao disposto neste artigo.

§ 2º A informação acerca de eventuais autos de infração confirmados também poderá ser solicitada aos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente, com base na Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003

Instrução Normativa IBAMA nº 19/2023

 Art. 24. O cometimento de nova infração ambiental pelo mesmo infrator, no período de cinco anos, contados da data em que a decisão administrativa que o tenha condenado por infração anterior tenha se tornado definitiva, implicará:

[…]

§ 1º As infrações ambientais praticadas pelo mesmo infrator e definitivamente julgadas pelas autoridades dos demais órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) poderão ser consideradas para o agravamento por reincidência pelo Ibama

Regulamentação de reincidência que majorem sanções

A principal problemática reside na ilegalidade de normas infralegais regulamentarem a reincidência que resulta em majoração das sanções, sendo que tal situação não é prevista na legislação hierarquicamente superior. O princípio da legalidade exige que qualquer sanção administrativa tenha previsão clara em lei, sendo questionável a validade de instruções normativas que ampliam as consequências jurídicas de infrações sem respaldo explícito na legislação de regência.

Ademais, a previsão de que o ICMBio “poderá celebrar acordos de cooperação” com órgãos estaduais e municipais para dar cumprimento ao disposto no artigo 86 da referida IN também não encontra respaldo legal. Em que pese a ilegalidade na aplicação de tal reincidência, o fato é que o ICMBio tem lançado mão de tal expediente e mais, sem indicar expressamente a existência qualquer acordo de cooperação no âmbito dos processos federais instaurados pelo Instituto, o que só majora a insegurança jurídica.

A falta de previsibilidade e uniformidade na aplicação da reincidência entre diferentes esferas federativas pode gerar insegurança jurídica para os administrados. Sem previsão expressa em lei, a utilização de autos estaduais e municipais para agravar penalidades federais pode violar o princípio da legalidade e abrir margem para contestações judiciais.

Dessa forma, um dos grandes desafios é garantir que a aplicação da reincidência ocorra dentro de critérios objetivos e legais, assegurando que as sanções administrativas sejam previsíveis e não resultem em interpretações arbitrárias ou expansivas que prejudiquem os administrados.

Diante do exposto, verifica-se que a utilização de autos de infração estaduais ou municipais para caracterizar reincidência em processos federais apresenta diversas fragilidades jurídicas. A ausência de previsão expressa na legislação ambiental federal, somada à autonomia dos entes federativos e à repartição de competências estabelecida pela Lei Complementar nº 140/2011, demonstra que essa prática carece de fundamentação legal adequada.

 


[1] SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Reincidência no direito administrativo sancionador. Revista do Direito Público, Londrina, v. 12, n. 1, abr. 2017.

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