Biologia da (in)dependência de instâncias na Lei de Improbidade Administrativa
19 de junho de 2025, 8h00
O tema da independência das instâncias civil, criminal e administrativa, desde há tempos, desperta a atenção dos estudiosos do Direito. A questão retorna aos palcos da discussão jurídica no Brasil à medida em que se espraiam instrumentos do Direito Administrativo Sancionador, como a improbidade administrativa, revelando a necessidade de se revisitar as bases dogmáticas de sua construção.
A pergunta que se apresenta subjacentemente é se o dogma da independência mais radical das instâncias continua a garantir coerência com o ordenamento jurídico, ou se é hora de ampliar o grau de irritação que referidas instâncias podem estabelecer entre si.
Recentemente, a discussão se colocou à assentada do Supremo Tribunal Federal, na apreciação do mérito (ainda em curso) da ADI nº 7236, relator ministro Alexandre de Moraes, em face da divergência instalada entre os votos do relator e do ministro Gilmar Mendes, a propósito do §4º do artigo 21 da Lei 8.429/92 (reformada pela Lei 14.230/21), com pedido de vista subsequente do ministro Edson Fachin.
O dispositivo estabelece que a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos da improbidade administrativa, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no Código de Processo Penal (art. 386).
“a) de um lado o voto do Ministro Alexandre de Moraes, declarou a inconstitucionalidade parcial da norma, com interpretação conforme a Constituição, para fixar a tese (já tradicional) de que a “absolvição criminal, em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, somente impede o trâmite da ação de improbidade administrativa nas hipóteses dos arts. 65 (sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito); 386, I (estar provada a inexistência do fato), 386, IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal), todos do Código de Processo Penal”.
b) de outro, o voto do ministro Gilmar Mendes, também conferindo interpretação conforme a Constituição à regra, reconheceu a maior amplitude da comunidade de instâncias criminal e improbidade, excluindo do rol apenas a hipótese absolutória contida no inciso III do artigo 386 do CPP, quando a conduta de improbidade administrativa “não constituir o fato infração penal”.
Nesse ponto, é oportuno relembrar a origem da noção de independência de instâncias e a ideia nuclear da unidade do ilícito, uma vez que nem todo ilícito civil ofensivo ao Estado obrigatoriamente se apresenta como uma infração administrativa ou crime, e nem todo ato delituoso nessas esferas consiste em ilícito civil lesivo a interesses estatais.

A ordem jurídica disponibiliza a responsabilidade civil, visando, assim, não à punição do ofensor, mas, por certo, a reparação/compensação dos prejuízos materiais ou morais suportados pelo ofendido, sujeita, como sabido, a standards probatórios menos arrochados, com a possibilidade, inclusive, de presunções de culpabilidade (v.g., artigo 935, do Código Civil).
Relativamente à independência entre as instâncias civil e criminal não é indene de previsão a comunicabilidade, na medida em que o próprio Código Civil (artigo 200) cuida de suspender a prescrição do ilícito civil indenizável, quando uma pretensão reparatória/compensatória se sustentar em “fato que deva ser apurado no juízo criminal”, fenômeno que não se repete com a prescrição dos atos de desonestidade administrativa e os delitos contra a administração pública, ex vi do artigo 23, § 1º da Lei de Improbidade Administrativa.
A dependência do esgotamento da jurisdição criminal para a deflagração da prescrição de três anos do § 3º, IV e V, do artigo 206, do CC, reforçada pelo caráter de título executivo dado à sentença penal condenatória, na forma dos artigos 515, VI, do CPC c/c o artigo 63, do CPP, relativizam, no campo da responsabilidade civil, a badalada independência entre as instâncias civil e criminal. E isso se passa porque o delito civil e o criminal não decorrem ambos do jus puniendi estatal, mesmo que haja efeitos civil na condenação criminal (artigo 387, IV do CPP), diferentemente do que acontece com a esfera criminal e a esfera da improbidade administrativa, as quais descortinam, em simbiose, a tese da unidade do ilícito e da proporcionalidade da punição.
É por essa razão que, ainda que com o atraso de duas décadas, o legislador ordinário procurou deixar clara a distinção entre os efeitos jurídicos da responsabilidade civil e das sanções decorrentes da prática do ato de desonestidade administrativa, nos termos dos artigos 17-D e 18 incorporados pela Lei nº 14.230/2021. Explicitou que a ação de improbidade possui caráter repressivo, objetivando sancionar o infrator, e não se confundindo com a ação civil pública ordinária, dirigida à tutela de direitos supraindividuais e individuais homogêneos.
Gêmeos bivitelinos
Por esse caminho, não é difícil perceber que, ao contrário do que o ocorre na demanda indenizatória civil motivada pelos danos sofridos por um ente público, por exemplo, cujo ônus e a valoração da prova da autoria ou da materialidade do ilícito se mostram menos rígidos (artigo 17, § 19, I e II), a ação de improbidade administrativa, em virtude do pertencimento ao microssistema do Direito Administrativo Sancionador – atrai a incidência dos princípios típicos do Direito Penal, entre eles o do in dubio pro reo.
A aproximação dos aspectos inerentes à prova no processo de improbidade administrativa fica mais evidente, quando o § 8º, do artigo 17, da LIA, garante ao réu “o direito de ser interrogado sobre os fatos de que trata a ação, e a sua recusa ou o seu silêncio não implicarão confissão”, não sem antes exigir (§ 6º) do autor da ação a individualização da conduta ilícita do acusado, indicando os “elementos probatórios mínimos”, a revelar a necessidade de justa causa (tipicidade objetiva e subjetiva).
É compreensível, portanto, dentro da lógica encartada pela renovada lei das improbidades administrativas, a vinculação da sentença proferida pelo juízo cível às hipóteses, excluída aquela do inciso III do artigo 386, do CPP, previstas na regra do § 4º, do artigo 21, da Lei nº 8.429/1992. Mais do que isso, existe mesmo uma aderência das instâncias, que advém do princípio da segurança jurídica, ao obstar que a valoração feita por um juiz, seja ele cível ou criminal, sobre mesmos fatos, possa se apresentar divergente num e noutro caso, sob pena de desestruturar o sistema de jurisdição.
O tema verberou em decisão do STJ, ao assentar que a impossibilidade de que “o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito” (STJ – RHC nº 173448/DF, 5ª Turma, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 13/3/2023).
Com efeito, se a absolvição do réu na ação sancionatória de improbidade administrativa levou o STJ a trancar uma ação penal, o outro lado da moeda há de ter idêntico brasão, porque não faria sentido imaginar que o dolo da conduta delituosa que não se demonstra no juízo criminal, pudesse se revelar como apto a justificar imputações de improbidade administrativa (dependentes do mesmo dolo) perante o juízo cível.
Enfim, os atos de improbidade administrativa e os delitos criminais contra a administração pública se apresentam ao mundo jurídico como gêmeos bivitelinos. Eles são “geneticamente” (Direito Penal x Direito Administrativo) distintos, mas originados e gestados dentro de um mesmo sistema legal e repressivo. A comunicabilidade das instâncias nesse modo quase biológico racionar, decorre naturalmente da unidade do jus puniendi do Estado.
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