Opinião

Aplicação dos Temas 1.234 e 6 do STF na saúde suplementar: benefícios e perspectivas

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  • é advogada superintendente jurídica da SulAmérica Cia Nacional de Seguros especialista em Processo Civil pela PUC-RJ MBA em Gestão Jurídica de Seguros pela Fenseg e integrante da Comissão Jurídica da FenaSaúde.

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19 de junho de 2025, 6h37

Com base em dados recentes do Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1], o sistema judiciário brasileiro enfrenta um desafio significativo no que diz respeito aos processos relacionados ao direito à saúde. Atualmente, tramitam 865 mil ações judiciais, com um alarmante número de 661 mil novos processos registrados apenas em 2024.

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A complexidade desses casos reside na necessidade de equilibrar a garantia de direitos fundamentais, como a saúde e à vida, com a busca pela sustentabilidade dos sistemas de saúde público e privado. Esse cenário exige do Poder Judiciário uma análise criteriosa e uma tomada de decisões que considerem tanto os aspectos legais quanto as implicações para o funcionamento do sistema de saúde como um todo.

Adicionalmente, o sistema constitucional brasileiro conferiu competência comum para União, Estados e Municípios para implementação e garantia do direito à saúde [2]. Desta forma, a falta de regras claras sobre a responsabilidade e critérios para o custeio de medicamentos de alto custo levou o Supremo Tribunal Federal a convidar os principais atores envolvidos no tema para discussão e definição de solução de conflitos utilizando o método da autocomposição [3].

Neste passo,  o STF reconheceu a repercussão geral do assunto e, no âmbito do julgamento do Tema nº 1.234 definiu: (1) a competência da Justiça Federal para julgamento das demandas relativas a medicamentos não incorporados ao SUS, mas com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), quando o custo anual do tratamento for igual ou superior ao valor de 210 salários mínimos; (2) a atribuição ao Poder Judiciário de realizar o controle de legalidade dos atos administrativos de não incorporação ou não concessão de medicamentos; (3) a atribuição ao autor da ação o ônus de comprovar, com base na Medicina baseada em evidências, a segurança, eficácia do medicamento e inexistência de substituto terapêutico já incorporado pelo SUS; (4) a decisão judicial que determinar o fornecimento do medicamento, o magistrado deverá estabelecer que o valor do medicamento não ultrapasse o teto do Preço Máximo de Venda do Governo (PMVG); dentre outros.

Após 23 sessões de autocomposição, a comissão, formada por representantes dos entes federativos e da sociedade civil, celebrou três acordos interfederativos, homologados pelo Plenário do Tribunal.

O Tema nº 1.234 foi julgado em conjunto com o Tema nº 6, que trata das hipóteses de exceção em que medicamentos não incorporados nas listas de dispensação do SUS poderiam ser concedidos na esfera judicial.

Os critérios definidos pelo STF para o fornecimento de medicamentos de alto custo no Tema nº 6 incluem: (1) registro do medicamento na Anvisa; (2) comprovação científica de sua eficácia e segurança, fundamentada em ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises; (3) ausência de alternativa terapêutica disponível no SUS, cujo ônus da prova cabe ao autor da ação; (4) o magistrado deverá consultar previamente o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Natjus), não podendo basear sua decisão unicamente em prescrição, relatório ou laudo médico, e (5) o magistrado deverá analisar o ato de não incorporação pela Conitec, bem como a negativa de fornecimento administrativo; dentre outros.

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Adicionalmente, após o julgamento dos Temas nº 1.234 e nº 6 está em fase de implantação uma Plataforma Nacional para centralizar dados relativos às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármacos, facilitando a consulta e informação ao cidadão, e possibilitando a análise, eventual resolução administrativa e posterior controle judicial.

Como se pode ver, o STF definiu os critérios para a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, buscando garantir o acesso a tratamentos médicos necessários, mas também proteger a saúde dos beneficiários com a garantia da comprovação científica dos fármacos e a sustentabilidade do sistema público de saúde.

Assim, o STF editou as Súmulas Vinculantes nº 60 e 61, que definem diretrizes para o Judiciário avaliar solicitações de medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, seguindo os critérios do que ficou definido no âmbito do julgamento do RE 1.366.243 e RE 566.471. Tais Súmulas têm efeito vinculante [4] e buscam uniformizar a interpretação das normas, garantindo previsibilidade nas decisões judiciais e segurança jurídica aos jurisdicionados.

Como era de se esperar, o julgamento do Tema 1234 e do Tema 6 teve grande repercussão no âmbito da saúde, gerando debates sobre o papel do Poder Judiciário na garantia do direito à saúde e a necessidade de aprimoramento das políticas públicas de saúde.

O Poder Judiciário, em conjunto com o CNJ, vem se empenhando em difundir e garantir a correta interpretação das definições do STF, através de seminários e oficinas criadas exclusivamente para debater tais temas. Nestes seminários, não é raro já ouvir discussões sobre a possibilidade de aplicação destes precedentes para a saúde suplementar, haja vista que as diretrizes ali impostas para o setor público têm total sinergia com a dinâmica do setor privado e se mostram benéficas aos pacientes.

O sistema de saúde no Brasil é misto, com um sistema público robusto (SUS) e a participação do setor privado. As operadoras de planos de saúde desempenham um papel importante, oferecendo serviços que visam atender às necessidades dos beneficiários de forma a complementar o serviço público.

O setor de saúde suplementar é regido pela Lei nº 9.656/1998, bem como pelas normas setoriais publicadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), instituída pela Lei nº 9.961/2000, autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde, com a atribuição legal para normatizar, controlar e fiscalizar as atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.

Atualmente, existem 669 operadoras ativas com beneficiários em planos médico-hospitalares. Mais da metade são operadoras de pequeno porte. As operadoras de saúde são responsáveis pelo atendimento médico de mais de 51 milhões de brasileiros, ou seja, um de cada quatro brasileiros é coberto pela saúde suplementar.

Desafios

Ao oferecer serviços privados, o setor da saúde suplementar ajuda a aliviar a demanda sobre o SUS, permitindo que o sistema público concentre recursos em outras áreas e atenda melhor a população que depende exclusivamente dele.

Entretanto, é necessário observar que uma convergência de fatores complexos e interligados vem colocando em xeque a viabilidade do setor da saúde suplementar.

Um dos principais desafios é o aumento da sinistralidade, ocasionada pela utilização crescente de serviços médico-hospitalares, haja vista a constante incorporação de novas tecnologias médicas, medicamentos de alto custo e o envelhecimento da população.

Outro fator relevante é relacionado à judicialização da saúde. O número crescente de ações judiciais buscando a cobertura de medicamentos e procedimentos fora do rol da ANS gera incerteza, onera de forma excessiva e imprevista às operadoras, além de sobrecarregar o Poder Judiciário.

Além disso, fraudes e ineficiências assolam o setor de saúde, corroendo sua estabilidade financeira. Práticas fraudulentas, que desviam recursos destinados ao cuidado legítimo dos pacientes, o uso indevido de serviços, sobrecarregando o sistema com demandas desnecessárias, e o desperdício de recursos, seja em materiais, medicamentos ou processos inadequados, elevam significativamente os custos operacionais das operadoras. Essa combinação perniciosa de práticas não apenas prejudica a saúde financeira dessas instituições, comprometendo sua capacidade de investir em melhorias e inovação, mas também impacta negativamente a qualidade e a acessibilidade dos serviços de saúde para a população.

Por fim, destaca-se a constante mudança das normas e regras que regulam o setor da saúde suplementar que, por si só, dificulta o planejamento e a gestão das operadoras.

Diante desse cenário desafiador, torna-se imperativa a busca por soluções inovadoras e sustentáveis que assegurem o acesso da população a serviços de saúde seguros e de qualidade.

Nesse contexto, surge a necessidade de se estender a aplicabilidade das diretrizes estabelecidas pelo STF nos Temas nº 1.234 e nº 6 também ao julgamento de demandas da saúde suplementar, de forma a garantir a segurança dos pacientes, uniformização, maior segurança jurídica e equilíbrio entre os setores público e privado.

Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde suplementar operem em esferas distintas, ambos convergem no objetivo primordial de assegurar o acesso a uma assistência de saúde segura e eficaz. Ambos os sistemas, contudo, enfrentam desafios intrínsecos e compartilhados, como a complexa gestão de custos e a constante necessidade de incorporar novas tecnologias. Nesse cenário, a aplicação dos princípios de racionalidade, eficiência e equidade emerge como um imperativo para otimizar a performance de ambos.

Nesse contexto, a aplicabilidade dos Temas 1.234 e 6 do Supremo Tribunal Federal à saúde suplementar, no que couber, encontra na isonomia um de seus pilares fundamentais. Esse princípio não apenas permeia a interpretação, mas também a efetivação desses importantes precedentes. Ao elevar a segurança do paciente a um dos eixos centrais que alicerçam tais entendimentos, torna-se imperativo que todos os pacientes tenham seus direitos fundamentais protegidos com base nos mesmos critérios de necessidade e eficácia.

Caminho promissor

A adoção dos Temas 1.234 e 6 no âmbito da saúde suplementar é um catalisador para múltiplos avanços. O mais significativo deles reside na segurança aprimorada dos pacientes. Isso porque os precedentes exigem uma comprovação científica robusta de eficácia e segurança dos tratamentos, aliada à consulta obrigatória ao Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Natjus). Essa exigência é crucial para prevenir a aplicação de terapias sem respaldo científico e para obstar decisões que se baseiam unicamente em documentos médicos, garantindo assim uma abordagem mais técnica e fundamentada na saúde suplementar.

Tal medida é vital diante dos riscos potenciais de medicamentos inovadores sem avaliação completa. Também protege os consumidores na medida em que ofereceria regras claras e maior transparência para a efetiva defesa de seus direitos em um sistema mais previsível.

A segurança jurídica para beneficiários, prestadores e operadoras seria um benefício adicional crucial. A clareza dos critérios para as decisões judiciais diminuiria a judicialização, otimizaria a tramitação dos processos e, por extensão, reduziria a sobrecarga do Poder Judiciário.

Por fim, contribuiria para a estabilidade financeira das operadoras, controlando custos e evitando onerações desmedidas, o que poderia refletir em planos mais acessíveis. Além disso, a incorporação de novas tecnologias seria mais criteriosa, fortalecendo a regulação da ANS e a harmonia do ambiente regulatório.

Diante do exposto, a extensão da aplicabilidade das diretrizes estabelecidas pelo STF nos Temas nº 1.234 e nº 6 à saúde suplementar surge como um caminho promissor para garantir a segurança dos pacientes, reduzir a judicialização de processos relacionados ao direito à saúde, fortalecer a segurança jurídica e promover o equilíbrio econômico-financeiro do setor, bem como garantir a manutenção do sistema como um todo.

 


[1] aqui

[2] Art. 23, da Constituição . É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(…)

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

[3] “(…) considero este julgamento de extrema urgência e importância para a Federação e para os cidadãos brasileiros, não só pela densidade apta a abalar o pacto federativo, envolvendo a competência jurisdicional para fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS, mas também em decorrência da instabilidade social, econômica e político-jurídica que o tema suscita, com vaivéns processuais, além de desarranjo federativo sobre o custeio, e principalmente pelo fato de que houve subscrição à proposta de solução encetada na Comissão Especial, por meio de negociação, como técnica autocompositiva, cujos termos foram referendados pelos entes federativos envolvidos, no âmbito desta Corte. (…)” (STF, RE nº 1.366.243, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, d.j 10/10/2024)

[4] Emenda Constitucional nº 45

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  • é advogada, superintendente jurídica da SulAmérica Cia Nacional de Seguros, especialista em Processo Civil pela PUC-RJ, MBA em Gestão Jurídica de Seguros pela Fenseg e integrante da Comissão Jurídica da FenaSaúde.

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