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Stablecoins e o delito de evasão de divisas (parte 2)

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18 de junho de 2025, 8h00

continuação da parte 1

Stablecoin como divisas

Diversamente do conceito de moeda, não encontramos na legislação ou doutrina brasileira uma definição expressa do conceito de divisas, o que gera insegurança entre operadores de direito penal. Sua ideia central, no entanto, é de que o termo divisas está atrelado à aceitabilidade de determinada moeda ou instrumento como meio de troca fora do território de sua emissão.

O economista francês Miguel Aglieta sintetiza essa ideia ao afirmar que a moeda nacional deixa de ser soberana em seu próprio espaço quando se torna uma divisa [1]. Em um mundo globalizado, é evidente que as divisas não podem se resumir à simples moeda fiduciária física em circulação; portanto, seu conceito deve estender para outros instrumentos pelos quais uma obrigação pode ser cumprida fora do território nacional.

Aqui, vale adicionar que a motivação econômica para criação do delito de evasão de divisas foi justamente coibir atos que acarretassem a saída clandestina ou manutenção no exterior de instrumentos aptos a serem aceitos como meio de troca no exterior, e que poderiam ser utilizados para quitação de dívida externa, pagamento de petróleo, importação de insumos etc.

Com base nisso, compreendemos o termo divisas como um conceito amplo composto tanto pela moeda estrangeira quanto de ativos financeiros internacionais com liquidez e conversibilidade imediata em moeda estrangeira.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), ativos financeiros correspondem a direitos financeiros que surgem de relações contratuais, conferindo aos seus titulares direitos sobre recursos econômicos de outras entidades, que, por sua vez, figura como devedora dessa obrigação [2]. Trata-se, portanto, de uma relação bilateral de crédito e débito, de ativo e passivo.

Nessa linha de raciocínio, o FMI, acompanhado pelo BC no Brasil, diferencia os criptoativos como o bitcoin, classificado como Crypto Asset Without a Corresponding Liability Designed to Act as a General Medium of Exchange (CAWLM) [3]  – de outros criptoativos com passivos correspondentes, como as stablecoins [4].

As stablecoins, embora também sejam baseadas em tecnologia de criptografia, diferenciam-se das criptomoedas como o bitcoin, por apresentarem (1) emissão centralizada, (2) lastro em ativos específicos (geralmente moedas fiduciárias estrangeiras), (3) conversibilidade automática na proporção “um para um”, e (4) geração de obrigações que constituem um passivo do emissor [5].

Essa estrutura com passivo correspondente justifica a classificação pelo BC das stablecoins como ativos financeiros — e não como bens [6] — no contexto do Balanço de Pagamentos. É essa mesma característica que as torna comparáveis a divisas, na medida em que são instrumentos líquidos, de aceitação internacional, e cujo valor pode ser resgatado em moeda estrangeira.

Portanto, quando pareadas com ativos referenciados em moedas estrangeiras, as stablecoins reúnem os atributos necessários para serem qualificadas como divisas e podem, assim, ser objeto material do crime de evasão de divisas.

Stablecoin como depósitos

A Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) prevê diversas espécies de capitais brasileiros mantidos por residentes no Brasil, sujeitos à declaração obrigatória ao BC.

Contudo, o tipo penal do artigo 22, parágrafo único, segunda parte, restringe-se à manutenção de “depósitos” não declarados [7]. Portanto, não será qualquer espécie de recurso que, sem declaração na forma legal, que estará sujeita à norma penal, mas apenas aqueles que possuírem natureza de depósito.

No Direito Privado, os depósitos consistem em espécie contratual prevista no Código Civil, pela qual uma das partes, chamada de depositária, recebe de outra, nomeada como depositante, bem móvel para guardá-lo, obrigando-se a restitui-lo no futuro. Nas hipóteses em que a coisa entregue for fungível, aplica-se as regras do mútuo (artigo 645 do CC), havendo transferência do bem à propriedade do depositário (artigo 587, CC), que se obriga a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade (artigo 586, CC).

Embora a norma administrativa não aprofunde as espécies de depósitos sujeitos à obrigação, os manuais operacionais do BC sugerem que a interpretação adotada deve compreender os depósitos de moeda realizados junto a instituições bancárias [8].

Tais contratos, na prática, equivalem a mútuos bancários: o depositante entrega valores à instituição, que assume a titularidade dos recursos, passando a figurar como devedora da quantia, que poderá ser exigida pelo depositante nas condições pactuadas. O direito do titular configura-se, assim, como crédito contra a instituição depositária.

Nesse contexto, surge a questão central deste tópico: os valores entregues pelos adquirentes de stablecoins aos emissores podem ser considerados “depósitos” para fins penais?

De fato, o modelo operacional das stablecoins — adotando a premissa de que estão lastreadas em outros ativos e possuem emissão centralizada — envolve a entrega de recursos a uma entidade emissora, que se compromete a manter o lastro correspondente e a realizar o resgate paritário (um para um) em moeda fiduciária. Há, portanto, transferência da titularidade dos valores ao emissor, e o adquirente mantém um direito de crédito exigível.

Contudo, entendemos que não é possível afirmar que essas operações configurem depósitos bancários típicos. Em primeiro lugar, porque as entidades emissoras de stablecoins não são instituições bancárias típicas. Em segundo lugar, a própria natureza contratual do vínculo ainda carece de uma uniformização jurídica que permita subsumir a operação à figura do depósito bancário regulado.

Assim, embora existam elementos funcionais semelhantes aos dos depósitos financeiros tradicionais, entendemos que os contratos de aquisição de stablecoins não se enquadram como depósitos para fins penais.

Conclusão

Em razão das conclusões acima, entendemos que ausência de correspondência das stablecoins aos conceitos jurídicos de moeda e depósito afastam sua incursão no delito de evasão de divisas, na forma prevista no caput (operação de câmbio não autorizada) e segunda parte do parágrafo único (manter depósitos não declarados no exterior).

Isso permite afirmar que comprar stablecoins com moeda fiduciária não é operação de câmbio, ao menos enquanto não houver norma legal expressa em sentido contrário. Da mesma forma, a manutenção de stablecoins sem declaração ao BC ou à Receita Federal — mesmo que em carteiras autocustodiadas — não se enquadra na figura típica de manutenção ilícita de depósitos no exterior.

Sob o nosso ponto de vista, stablecoins possuem equivalência apenas ao elemento “divisas”, razão pela qual eventual imputação penal — caso presente o restante dos requisitos típicos — poderia ocorrer apenas na forma da primeira parte do parágrafo único do artigo 22, ou seja, remessa de divisas ao exterior sem autorização legal.

Isso, porém, não significa que toda operação internacional envolvendo stablecoins configure um crime de evasão de divisas. Trata-se de um ponto de partida, haja vista que a enquadramento penal exige análise dos demais elementos do delito, como incluindo o dolo, antijuridicidade e culpabilidade.

Para ficarmos apenas no plano da tipicidade objetiva, é necessário demonstrar, por exemplo, que houve uma cadeia de operações que resultou na diminuição das reservas internacionais contabilizadas pelo Brasil. Caso contrário, operações que impliquem ingresso de divisas no país — ampliando o saldo de moeda estrangeira sob controle nacional — não configuram o delito, por ausência de tipicidade.

Além disso, exige-se cumulativamente que a conduta viole normas cambiais formalmente estabelecidas, isto é, que esteja em desacordo com as regras administrativas previamente definidas pelo Banco Central do Brasil. Nesse ponto, a definição das regras do jogo pelo BC será decisiva para estabelecer parâmetros jurídicos objetivos que delimitem em quais hipóteses o uso de stablecoins será considerado lícito ou ilícito em operações internacionais.

Até lá, qualquer imputação penal exigirá análise cautelosa, sob pena de se ampliar indevidamente o alcance de um tipo penal anacrônico — e já amplamente criticado — como a evasão de divisas.

 


[1] AGLIETTA, Michel. La fin des devises clés: essai sur la monnaie internationale. Paris: La Découverte, 1986. p. 33. [Tradução livre], citado por ROSSI, Pedro Linhares. A pirâmide e a esfinge: estudos sobre a hierarquia das divisas, a integração financeira de países periféricos e a volatilidade de câmbio e juros. 2008. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. p. 12.)

[2] INTERNATIONAL MONETARY FUND. Chapter 4. Classification of Financial Assets and Liabilities. In: Monetary and Financial Statistics Manual & Compilation Guide. p. 2. Disponível aqui.

[3] INTERNATIONAL MONETARY FUND. F.18. The Recording of Crypto Assets in Macroeconomics Statistics. jul. 2022. Issues for discussion nº 5. Disponível aqui.

[4] O BACEN define que as criptomoedas com natureza e características semelhantes ao bitcoin constituem “meio de troca sem passivos correspondentes”, uma vez que não estão lastreadas em ativos que podem ser mensurados a partir de uma unidade econômica emissora, cf. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Tratamento de criptoativos no balanço de pagamentos do Brasil [s.d.].  Disponível aqui.

[5] Ibidem, nota de rodapé 2.

[6] Criptomoedas com características semelhantes do bitcoin, por outro lado, são tratadas como mercadorias, isto é, como bens, no contexto do Balanço de Pagamentos brasileiro, cf. Ibidem.

[7] A obrigação de declaração de depósitos mantidos no exterior está prevista no art. 7º, inc. VI, da Resolução BACEN nº 279/2022.

[8]  O órgão administrativo afirma que devem ser declarados na ficha “depósitos” recursos mantidos à vista, a prazo, em conta corrente, conta poupança e instrumentos similares, o que remete a espécies típicas de depósitos bancários, cf. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Capitais Brasileiros no Exterior: Manual do Declarante, 2025, p. 41. Disponível aqui.

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