Quatro formas de reabilitação do ofensor: por uma perspectiva interdisciplinar
18 de junho de 2025, 16h14
Nas últimas décadas, a reabilitação de pessoas condenadas por crimes voltou ao centro das discussões no campo do direito penal. Autores como Don Andrews e James Bonta destacaram a importância de intervenções baseadas em evidências, por meio do modelo Risk-Need-Responsivity (RNR) [1].

Batismo dentro de presídio
O debate contemporâneo, no entanto, demonstra que as abordagens estritamente psicológicas, como a oferecida por Andrews e Bonta, não são suficientes para enfrentar os desafios da reintegração de ex-ofensores na sociedade. Fergus McNeill[2], em sua influente análise sobre esta temática, sustenta que a reabilitação exige um diálogo entre diversas áreas do conhecimento. Este artigo propõe revisitar os modelos tradicionais de reabilitação e examinar a urgência de se construir um paradigma mais integrado que seja capaz de dar respostas eficazes ao abandono da prática criminosa.
Modelo religioso
Ao longo da história, a reabilitação do ofensor foi concebida sob distintas perspectivas, que refletiam os valores e crenças de cada época. Em sua análise histórica, McNeill, apoiando-se nas obras de Edgardo Rothman [3] e Tony Bottoms [4], descreve quatro modelos predominantes. O primeiro desses modelos, de matriz religiosa, emergiu com o desenvolvimento dos sistemas penitenciários modernos e atribuía à prisão um papel pastoral. Nesse contexto, a privação da liberdade não se limitava a punir o corpo do infrator, mas buscava atuar sobre sua alma, concebendo o encarceramento como destinado à reforma moral do pecador. Essa concepção estava profundamente enraizada na moralidade cristã da época, que via o crime como uma afronta não apenas à ordem social, mas também à ordem divina.
A arquitetura das prisões panópticas dessa época, inspirada no ideal disciplinador de Jeremy Bentham [5] e criticada posteriormente por Michel Foucault [6], também servia a esse propósito de vigilância constante, como se a presença divina se fizesse sentir no olhar invisível do vigia. Não por acaso, muitos dos primeiros estabelecimentos penais eram administrados por ordens religiosas ou contavam com a supervisão de capelães, que exerciam papel central no processo de “cura moral” dos presos. Esse modelo, no entanto, carregava consigo tensões e contradições, pois ao mesmo tempo em que buscava a redenção do indivíduo, sujeitava-o a formas de controle e disciplina que muitas vezes aniquilavam sua subjetividade.
Modelo terapêutico
No início do século 20, com o avanço das ciências médicas e psicológicas, consolidou-se o chamado modelo terapêutico, que passou a exercer grande influência sobre as práticas e teorias da reabilitação penal. Diferentemente do paradigma religioso anterior, que concebia o crime como um pecado, o modelo terapêutico ancorava-se em uma leitura laica e científica da criminalidade, na qual o delito era interpretado como manifestação de patologias, desvios de personalidade ou disfunções de ordem psíquica e biológica. Sob essa ótica, o criminoso passava a ser tratado como um paciente, alguém que necessitava de intervenção técnica para a correção de suas falhas internas. A punição, nesse contexto, perdia seu caráter estritamente retributivo e passava a ser justificada como um meio necessário para o tratamento e a reintegração do indivíduo à sociedade.
O modelo terapêutico, embora representasse um avanço ao deslocar o foco da punição pura para a ideia de tratamento e reintegração, não estava isento de críticas e limitações, entretanto. Como apontam McNeill e Bottoms, a patologização do comportamento criminoso frequentemente reforçava estigmas, ao reduzir o infrator à condição de portador de um defeito ou doença, cuja superação dependeria do poder e do saber dos especialistas. Além disso, ao concentrar-se nas falhas individuais, o modelo terapêutico tendia a negligenciar os determinantes sociais e estruturais do crime, perpetuando uma visão reducionista que desconsiderava o contexto de desigualdades e exclusão em que a criminalidade se insere. Essa crítica ganharia força nas décadas seguintes, impulsionando a busca por modelos mais abrangentes e integradores de reabilitação.
Aprendizagem social
Posteriormente, à medida que os avanços da psicologia comportamental ganhavam espaço no campo da criminologia, consolidou-se um terceiro modelo de reabilitação, fundamentado na teoria da aprendizagem social. Este paradigma deslocava o foco da reabilitação das origens patológicas e intrínsecas do comportamento criminoso para os processos de interação social e os mecanismos de aprendizagem por reforço. Segundo seus teóricos, o crime não seria fruto de falhas individuais inatas, mas sim o resultado de padrões de conduta adquiridos no convívio social, por meio da observação, da imitação e da internalização de normas e valores desviantes.

Assim, se o comportamento criminoso podia ser aprendido, como postulava Albert Bandura [7], ele também poderia ser desaprendido mediante intervenções pedagógicas e educativas direcionadas. Nesse contexto, os programas de reabilitação passaram a investir em estratégias de modificação comportamental, treinamento de habilidades sociais, educação profissional e intervenções psicossociais destinadas a oferecer ao condenado modelos de conduta alternativos. A ênfase recaía no papel do ambiente e das oportunidades oferecidas ao indivíduo, de modo que a reabilitação deixava de ser concebida como um processo exclusivamente clínico e passava a incorporar práticas comunitárias.
No entanto, apesar de representar um avanço na compreensão do crime como fenômeno relacional e contingente, esse modelo tampouco esteve isento de críticas. Sua implementação muitas vezes se limitou a intervenções superficiais, incapazes de alterar de forma efetiva as condições estruturais que perpetuavam o ciclo da exclusão e da criminalidade. Além disso, como assinala McNeill, as práticas inspiradas na aprendizagem social por vezes sucumbiram à tentação de tratar o indivíduo como mero objeto de adestramento, reforçando a lógica tecnocrática e instrumental que marcou outros modelos de reabilitação.
Críticas ao ideal reabilitador
Por fim, nas décadas de 1970 e 1980, o ideal reabilitador como um todo passou a ser alvo de críticas, que apontavam a seletividade de suas práticas e as limitações inerentes às suas premissas individuais. Tony Bottoms, ao analisar o colapso do paradigma reabilitador, destacou como suas abordagens tenderam a ignorar os fatores estruturais e sociais que condicionavam a criminalidade, insistindo em soluções centradas no indivíduo e, portanto, insuficientes para enfrentar a complexidade do fenômeno. As críticas enfatizavam, ainda, o viés discriminatório dos programas de reabilitação, que frequentemente penalizavam de forma mais severa os pobres, os marginalizados e as minorias étnicas e culturais, enquanto reproduziam práticas paternalistas e coercitivas simuladas como tratamento.
Além disso, acumulava-se evidência empírica indicando a ineficácia de muitas dessas intervenções no que diz respeito à redução da reincidência. Logo, houve o progressivo esvaziamento do ideal reabilitador e à ascensão de modelos mais voltados ao controle do risco e à proteção social, em detrimento do compromisso com a reintegração e a cidadania. Essas críticas foram amplamente expostas por Bottoms, que apontou como principais problemas: a tendência de se atribuir exclusivamente ao indivíduo a causa do crime, ignorando fatores sociais; o caráter discriminatório das práticas reabilitadoras, que penalizam os mais pobres e vulneráveis; o poder excessivo conferido aos profissionais das chamadas ciências “psi”, cuja atuação por vezes reproduz visões reducionistas do comportamento; e, por fim, a moralidade duvidosa de se impor transformações psicológicas ao condenado.
McNeill expande essas críticas, ao destacar que a própria concepção do crime como questão individual desvia o foco das verdadeiras raízes sociais e políticas da criminalidade, limitando a eficácia e a legitimidade das práticas reabilitadoras. Nesse contexto, ganha relevância o modelo do Risco-Necessidade-Responsividade (RNR), desenvolvido por Andrews e Bonta, que buscou oferecer um arcabouço teórico e prático para a avaliação e o tratamento dos infratores. Embora o RNR tenha representado um avanço no sentido de sistematizar intervenções e promover práticas baseadas em evidências, McNeill e Devon Polaschek [8] identificam suas fragilidades.
Desumanização de práticas reabilitadoras
Na prática, o modelo frequentemente se vê reduzido a uma técnica de gestão de risco, na qual o ofensor é tratado como objeto de controle, em vez de sujeito de direitos em processo de reconstrução. Além disso, a implementação deficiente de seus princípios acaba por alimentar críticas acerca da desumanização das práticas reabilitadoras. Por essa razão, McNeill propõe que o campo da reabilitação precisa se abrir ao diálogo com as teorias da desistência, que buscam compreender como e por que os indivíduos deixam de cometer crimes. A desistência, entendida como um processo pessoal e social, depende do desenvolvimento de novas identidades, do fortalecimento de laços sociais positivos e da criação de oportunidades reais de reintegração.
No entanto, como aponta McNeill, as teorias da desistência só podem cumprir seu potencial se forem articuladas com outras dimensões da reabilitação: a jurídica, a moral e a social. A reabilitação jurídica diz respeito à possibilidade de superar os efeitos formais da condenação, em especial o estigma da ficha criminal. Sem a remoção das barreiras legais ao emprego, à moradia e ao pleno exercício da cidadania, os esforços individuais e institucionais pela reabilitação tendem ao fracasso. Em paralelo, a reabilitação moral implica o reconhecimento e a reparação dos danos causados à vítima e à comunidade, algo que não se alcança apenas com o tratamento do ofensor, mas que requer práticas restaurativas. Finalmente, a reabilitação social refere-se ao processo informal de inclusão do ex-ofensor no convívio comunitário, o que demanda transformações culturais e políticas mais amplas.
Essa compreensão integrada da reabilitação está em sintonia com o conceito do “Quadrante de Pasteur”, desenvolvido por Donald Stokes [9], que valoriza as pesquisas que conciliam o avanço do conhecimento com a solução de problemas práticos. Enquanto o modelo RNR permanece restrito ao campo da aplicação técnica, as teorias da desistência, ao conjugarem teoria e prática, oferecem um caminho mais promissor para a construção de políticas e intervenções verdadeiramente eficazes. Essa visão, contudo, exige o abandono de concepções reducionistas e o enfrentamento das tensões políticas e morais que permeiam a relação entre crime, punição e reintegração.
Reabilitação é projeto social
Portanto, a construção de um modelo de reabilitação interdisciplinar não é apenas um imperativo científico, mas também ético e político. A reabilitação não pode se limitar ao objetivo de reduzir riscos ou proteger a sociedade por meio do controle do indivíduo. Ao contrário, deve ser entendida como um projeto social, que busca reconstruir os laços de cidadania e promover a justiça em sentido amplo. Para tanto, é preciso enfrentar os desafios colocados pelas desigualdades estruturais, pelo preconceito e pelas práticas punitivas que ainda marcam os sistemas de justiça em diversos países. Sem esse compromisso, a reabilitação continuará a ser uma promessa não cumprida, vulnerável ao uso instrumental e ao fracasso reiterado.
Em suma, a análise de McNeill nos oferece valiosos subsídios para repensar a reabilitação do ofensor, ao insistir na necessidade de um paradigma verdadeiramente interdisciplinar e comprometido com a transformação social. A psicologia, embora essencial, não pode ser a única lente por meio da qual se enxerga o processo de reintegração. É urgente que o direito, a filosofia, a sociologia e demais campos do saber se unam na construção de práticas que não apenas reduzam o risco, mas que efetivamente promovam a justiça e a inclusão. Tal projeto exige não apenas novos modelos teóricos, mas também coragem política para enfrentar os desafios éticos e sociais da reabilitação no século 21.
__________________
Referências
ANDREWS, D. A.; BONTA, J. The psychology of criminal conduct. Cincinnati: Anderson Publishing, 1998.
BANDURA, Albert. Social learning theory. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1977.
BENTHAM, Jeremy. The panopticon writings. Edited by Miran Božovič. London: Verso, 1995.
BOTTOMS, A. E. The philosophy and politics of punishment and sentencing. In: CLARKSON, C. M. V.; MORGAN, R. (org.). The politics of sentencing reform. Oxford: Clarendon Press, 1995. p. 17-49.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
McNEILL, Fergus. Four forms of offender rehabilitation: towards an interdisciplinary perspective. Legal and Criminological Psychology, v. 17, n. 1, p. 18-36, 2012.
POLASCHEK, Devon L. L. An appraisal of the risk-need-responsivity (RNR) model of offender rehabilitation and its application in correctional treatment. Legal and Criminological Psychology, v. 17, n. 1, p. 1-17, 2012.
ROTMAN, Edgardo. Beyond punishment: a new view on the rehabilitation of criminal offenders. New York: Greenwood Press, 1990.
STOKES, Donald E. Pasteur’s quadrant: basic science and technological innovation. Washington: Brookings Institution Press, 1997.
[1] ANDREWS, D. A.; BONTA, J. The psychology of criminal conduct. Cincinnati: Anderson Publishing, 1998
[2] McNEILL, F. Four forms of offender rehabilitation: towards an interdisciplinary perspective. Legal and Criminological Psychology, v. 17, n. 1, p. 18-36, 2012
[3] ROTMAN, E. Beyond punishment: a new view on the rehabilitation of criminal offenders. New York: Greenwood Press, 1990.BENTHAM, J. The panopticon writings. Londres: Verso, 1995
[4] BOTTOMS, A. E. The philosophy and politics of punishment and sentencing. In: CLARKSON, C. M. V.; MORGAN, R. (Org.). The politics of sentencing reform. Oxford: Clarendon Press, 1995
[5] BENTHAM, J. The panopticon writings. Londres: Verso, 1995
[6] FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014
[7] BANDURA, A. Social learning theory. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1977
[8] POLASCHEK, D. L. L. An appraisal of the risk-need-responsivity (RNR) model of offender rehabilitation and its application in correctional treatment. Legal and Criminological Psychology, v. 17, n. 1, p. 1-17, 2012
[9] STOKES, D. E. Pasteur’s quadrant: basic science and technological innovation. Washington: Brookings Institution Press, 1997
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!