Piso em educação não comporta incentivos assistenciais
18 de junho de 2025, 6h33
Publicada em 11 de junho deste ano, a Medida Provisória nº 1.303, entre outros objetivos, alterou o artigo 70 da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), alargando, abusiva e inconstitucionalmente, o elenco de despesas elegíveis como manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), para que passem a ser computadas no piso educacional. Trata-se de ofensa à integridade do financiamento da educação pública brasileira.

O artigo 65 da referida medida provisória promove alteração estrutural no conceito jurídico de MDE ao incluir, entre suas despesas, a “concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas e a concessão de incentivo financeiro-educacional, na modalidade de poupança, destinado à permanência e à conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio público”.
Essa alteração afronta diretamente a arquitetura constitucional do financiamento educacional, construído a partir do artigo 212 da Constituição e sedimentado nos artigos 70 e 71 da LDB, além de comprometer a realização progressiva do direito fundamental à educação e agredir os limites do §1º do artigo 213 da CF/1988.
Em termos objetivos, duas são as graves violações empreendidas pelo inciso VI que a MP 1.303/2025 quer acrescer ao elenco do artigo 70 da LDB, a saber: 1) considerar gastos de natureza assistencial como se fossem estruturalmente educacionais e 2) permitir, indiretamente, o custeio de instituições privadas de ensino com os recursos governamentais vinculados à política pública de educação, para além das estreitas balizas constitucionais que regem a matéria.
A identificação de despesas elegíveis como manutenção e desenvolvimento do ensino, no ordenamento constitucional brasileiro, tem por núcleo assegurar o financiamento das ações diretamente vinculadas ao processo pedagógico e à atividade-fim da escola pública, tais como remuneração dos profissionais da educação, gestão escolar, infraestrutura física e tecnológica, recursos pedagógicos, formação continuada, avaliação e apoio técnico especializado. A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 71, é explícita ao excluir do conceito de MDE as despesas com assistência social, alimentação, saúde, bem como outras ações de natureza compensatória, ainda que essenciais para enfrentar barreiras de acesso e permanência.
A inclusão, por meio da Medida Provisória nº 1.303/2025, de despesas com a concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas e com a concessão de incentivos financeiros no rol de MDE significa, em termos jurídicos e fiscais, uma mudança de natureza estrutural, que desvia recursos vinculados à educação tanto para finalidades assistenciais e de transferência de renda, bem como para fomento indireto ao custeio de escolas particulares. Ainda que políticas como o programa de poupança para estudantes, a exemplo do Pé-de-Meia, sejam socialmente relevantes, sua natureza é claramente suplementar e não pode ser financiada com os recursos constitucionais protegidos para a manutenção e desenvolvimento do ensino.
Pressupostos

O Enunciado 05/2022, aprovado pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG) dos Ministérios Públicos Estaduais e da União, é categórico ao afirmar que qualquer iniciativa legislativa que implique redução de receitas destinadas à educação — ou desvio de suas finalidades constitucionais — viola o princípio da proibição do retrocesso social, além de contrariar a proteção conferida pela Constituição à política pública educacional. O citado enunciado estabelece que a efetivação do direito fundamental à educação está diretamente vinculada à política fiscal e que qualquer alteração nas fontes ou nos usos dos recursos deve observar, obrigatoriamente, quatro pressupostos:
(a) a estimativa periódica dos recursos necessários à realização progressiva do direito à educação;
(b) os indicadores de cumprimento dos deveres constitucionais, com publicidade e controle social, nos termos da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011);
(c) o resguardo do núcleo essencial do gasto social, com prioridade para as despesas que garantam o funcionamento do sistema educacional e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação; e
(d) o princípio constitucional da prioridade absoluta dos direitos de crianças, adolescentes e jovens, previsto no artigo 227 da Constituição da República.
A alteração imposta pela Medida Provisória nº 1.303/2025 configura violação direta e objetiva aos parâmetros constitucionais de financiamento da educação, uma vez que promove, de forma imediata e concreta, a redução dos recursos destinados ao ensino público. Isso porque as bolsas, inclusive financiadoras de vagas em escolas privadas, e os incentivos financeiros passam agora a ser inseridos no conceito de manutenção e desenvolvimento do ensino e, portanto, elegíveis como despesas amparadas pelo piso em educação. Todavia atividades de assistência estudantil já existiam como políticas públicas em diversas localidades e também nacionalmente (vide Programa Pé-de-Meia) e, até então, eram corretamente financiadas por fontes desvinculadas do piso constitucional da educação, sem impacto sobre a receita mínima vinculada prevista no artigo 212 da Constituição.
Ao deslocar tais despesas para dentro do conceito de MDE, a medida não amplia investimentos na educação, mas, ao contrário, promove um redirecionamento orçamentário que subtrai valores antes integralmente destinados às despesas estruturantes do processo educacional (MDE). Trata-se, portanto, de uma medida que rompe com o compromisso constitucional de assegurar uma educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, além de agravar, ainda mais, o já evidente quadro de descumprimento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação (2014-2025), cuja vigência se aproxima do fim sem que suas principais obrigações estruturais tenham sido efetivamente cumpridas. Reduzir o financiamento da educação pública num cenário como esse afronta o princípio da proibição do retrocesso, senão o próprio núcleo duro do direito fundamental à educação.
Afronta à Constituição
Não bastasse a impossibilidade de computar despesas assistenciais como se fossem gastos educacionais, é preciso lembrar que o emprego dos recursos vinculados à educação pública para conceder bolsas em escolas privadas afronta o escopo do §1º do artigo 213 da Constituição, como se extrai da leitura da sua redação:
“Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
[…] § 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.” (grifos acrescidos ao original)
De plano, importa assinalar que o dispositivo constitucional veda o repasse de recursos públicos a escolas privadas com finalidade lucrativa. Porém, mesmo bolsas de estudos em instituições comunitárias, filantrópicas ou confessionais e no Sistema S não são uma opção constitucionalmente válida.
A questão de fundo passa pela suposta necessidade de ampliar a oferta de vagas não apenas em creches, mas também na educação básica obrigatória. Todavia, essa tese de insuficiência de vagas na rede pública de ensino é um argumento factual e juridicamente inepto para sustentar a concessão de bolsas em escolas privadas com recursos do piso educacional e do Fundeb.
Isso ocorre porque o artigo 6º da Emenda 59/2009 obrigou a universalização de acesso à educação infantil pré-escolar e ao ensino médio até 31 de dezembro de 2016, enquanto a oferta estatal do ensino fundamental já é obrigatória há décadas, nos termos reforçados com a promulgação da Constituição em 1988. Há nove anos, portanto, as redes públicas municipais e estaduais de ensino já deveriam estar totalmente estruturadas para incluir todos os educandos na faixa etária obrigatória de 4 a 17 anos, sob pena de oferta irregular de ensino, o que, por seu turno, é hipótese de crime de responsabilidade dos agentes políticos implicados, na forma do artigo 208, §2º da CF.
Ora, em 2025, não são necessárias vagas privadas na garantia de oferta estatal universal da educação básica obrigatória, assim como não foram necessárias em 2016. Ao invés disso, o que parece motivar tal pretensão é a demanda das próprias instituições privadas de ensino por sustentação econômica da sua capacidade instalada. Diferentemente do que se quer dar a entender na MP 1.303/2025, as redes públicas de ensino não precisam conceder bolsas de estudos em escolas privadas, mas apenas são as entidades privadas sem finalidade lucrativa que têm fortemente pressionado para oferecer seus serviços e, com isso, obter meios pecuniários para sustentar seus custos de operação.
A regra geral é que os recursos públicos são vinculados às escolas públicas, porque a execução estatal direta da educação básica obrigatória é uma exigência do poder constituinte pátrio. Tal perspectiva dialoga com os princípios cogentes do art. 206, também da CF, incidentes, por exemplo, sobre a composição do quadro docente ocupado por servidores de carreira selecionados por concurso público e remunerados mediante piso nacional (incisos V e VIII).
Incongruência
Para que haja repasses de recursos públicos (ainda que sob a controversa forma de bolsas de estudos) para instituições privadas de ensino sem finalidade lucrativa, o §1º do artigo 213 da Constituição reclama comprovação de insuficiência de vagas, tanto quanto exige que haja investimento prioritário e concomitante na expansão das redes municipais e estaduais de ensino.
Daí decorre uma incongruência colossal entre quem defende a expansão da participação privada na educação pública usando os seus recursos vinculados, de um lado, e a realidade fática da demanda em comento, de outro. Das duas hipóteses abaixo, somente uma é aplicável e, em ambos os casos, o cenário de responsabilização dos gestores públicos omissos ou tendentes à gestão fraudulenta dos recursos educacionais se apresenta:
1) se estados e municípios já universalizaram a oferta de vagas na rede pública própria de educação infantil pré-escolar e dos ensinos fundamental e médio, como manda o artigo 6⁰ da Emenda 59/2009, não haverá meios fáticos de comprovação da insuficiência de vagas para fins de parceria com instituições comunitárias, filantrópicas ou confessionais, tampouco com o Sistema S.
Não caberá, em igual medida, desmobilizar a rede estatal de ensino na educação básica obrigatória porque isso afrontaria a necessidade de investimento prioritário ali, além de configurar terceirização substitutiva de mão de obra, em rota de potencial burla ao artigo 18, § 1⁰ da Lei de Responsabilidade Fiscal (acerca dos limites de despesas de pessoal nos diversos entes da federação) e afronta aos incisos V e VIII do art.igo 206 da CF (que trata da organização dos profissionais docentes em carreiras, cujos cargos são providos por concurso público e remunerados mediante piso nacional).
2) se não tiver sido universalizada a educação básica obrigatória até 31/12/2016 nos entes locais e regionais, como a Constituição manda, a parceria com a rede conveniada configura prova objetiva de oferta irregular de ensino, para fins do crime de responsabilidade a que se refere o artigo 208, § 2⁰ da CF.
Ou seja, prefeitos e governadores acabarão por confessar que cometeram uma franca e evidente hipótese de responsabilidade punível, no mínimo, desde 1º de janeiro de 2017. Adicionalmente, eventuais medidas de desmobilização e redução da oferta pública igualmente confrontariam o princípio da proibição do retrocesso social, afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como a vedação implícita de que
“sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado.” (Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo nº 639.337, São Paulo, 2ª T., rel. min. Celso de Mello, 23/8/2011).
A MP 1.303/2025 não só falseia gastos assistenciais como se fossem educacionais, como também permite que sejam concedidas bolsas de estudos em escolas privadas com recursos constitucionalmente vinculados à escola pública e, indiretamente, com isso acaba permitir que haja o financiamento de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, ou o Sistema S.
É preciso insistir que tal iniciativa é materialmente inconstitucional por diversas razões. A primeira e mais importante é que, no artigo 213, a Constituição de 1988 fez uma opção explícita pela transitoriedade das parcerias com a iniciativa privada na prestação do serviço público de ensino obrigatório, exclusivamente para atender a déficits de vaga nas escolas públicas no curso da implementação da expansão do segmento público. Como medida excepcional, obriga os poderes públicos a reconhecerem em paralelo o dever de investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade. Isso porque a Constituição atribui a prestação do ensino obrigatório ao Estado, com caráter universalizante, igualitário e inclusivo, características que não constituem propósito típico da iniciativa privada que, a despeito disso, tem oportunidade de explorar a atividade educacional regulada (artigo 209).
Ao invés de bolsas de estudos em escolas privadas, a necessidade mais urgente na educação básica obrigatória brasileira é a de qualificação da própria rede pública e de valorização do magistério composto de servidores efetivos. Caso sejam drenados recursos públicos para entidades privadas de ensino, a rede pública tende a ser precarizada.
Diante desse cenário, é preciso que todas as instituições de controle e a sociedade resguardem a defesa da integridade do conceito constitucional de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, tal como historicamente consolidado no ordenamento jurídico brasileiro. Em primeiro plano, sugere-se que o Congresso Nacional refute tal alteração na LDB, no exercício de sua competência constitucional de apreciação das medidas provisórias, rechaçando o artigo 65 da Medida Provisória nº 1.303/2025. Afinal, trata-se de medida que impõe uma redução imediata dos recursos destinados ao financiamento da educação pública, em flagrante violação ao artigo 212 da Constituição da República, aos artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ao princípio da proibição do retrocesso social.
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