Suprema Corte dos EUA está manipulando regras para beneficiar Trump, diz ministra
18 de junho de 2025, 7h50
Em voto dissidente, a ministra Ketanji Brown Jackson, da ala liberal da Suprema Corte, fez críticas contundentes — algumas ácidas — à decisão da maioria conservadora do tribunal de autorizar o Departamento de Eficiência Governamental (Doge) a acessar os dados de todos os americanos, mantidos pela Social Security Administration (SSA), o órgão de previdência social dos EUA.

Ketanji Brown Jackson criticou ministros conservadores da Suprema Corte
A decisão foi tomada em uma pauta de emergência (emergency docket), mais conhecida como “shadow docket” — uma espécie de decisão no escuro, porque dispensa a apresentação completa de razões do recurso, sustentação oral e os longos votos associados ao mérito da questão.
Normalmente, decisões de shadow dockets são expressas em uma ou duas linhas, com pouca ou nenhuma explicação. Mas esse não foi o caso do voto da ministra, ao qual aderiu sua colega liberal Sonia Sotomayor, no processo Social Security Administration v. AFSCME (American Federation of State, County and Municipal Employees).
A ministra escreveu dez páginas recheadas de críticas duras a seus colegas conservadores-republicanos, entre as quais a de manipular regras estabelecidas da corte para favorecer o governo republicano de Donald Trump — regras que foram aplicadas rigidamente nos governos anteriores.
Manipulação das regras
Em seu voto, a ministra explica que o governo Trump pediu à Suprema Corte para suspender uma liminar, concedida pela juíza federal Ellen Hollander, que bloqueou o acesso do Doge aos arquivos da Social Security Administration — uma decisão que foi mantida pelo Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região.
De acordo com precedente, ao considerar um pedido de suspensão de liminar, a corte tem de examinar quatro fatores: “(1) Se o peticionário apresentou argumentos fortes de que provavelmente terá sucesso no mérito; (2) se o peticionário sofrerá danos irreparáveis se a liminar não for suspensa; (3) se a emissão da suspensão causará danos substanciais às outras partes interessadas no processo; e (4) como afeta o interesse público” .
A ministra argumentou que esse sequer é um caso de urgência (ou de emergência). O governo não sofrerá dano algum se a liminar não for suspensa — a não ser por sua falta de paciência para esperar que o processo tramite pelas cortes inferiores, para julgamento do mérito, e chegue à Suprema Corte.
Ao contrário, a suspensão da liminar poderá causar danos irreparáveis a milhões de americanos, como sustentou a juíza federal em uma decisão bem fundamentada de 145 páginas, escreveu a ministra. A juíza concluiu que os réus (no caso os membros da AFSCME, que representam todos os americanos), sim, sofrerão danos que não serão, mais tarde, reparados por indenizações.
Afinal, se atendido o pedido do governo, o Doge terá acesso aos dados mais “sensíveis” de cada cidadão, tais como nome, número do Social Security, data de nascimento, endereço, números de contas bancárias, e-mail, número de telefone, registros médicos, etc.
São dados usados, entre outras coisas, para abrir cartões de crédito e contas bancárias, obter financiamentos, pedir emprego, conseguir seguro-saúde e requerer aposentadoria. Se vazados, podem deixar o cidadão à mercê de fraudadores e de criadores de mailing lists (que podem ser usadas, por exemplo, em campanhas eleitorais).
Problema sério
O problema é tão sério, diz a ministra, que a própria SSA adotou uma política de restrição de acesso de seus funcionários aos dados dos cidadãos, tal como recomenda a Lei da Privacidade.
Antes de receber autorização para acessar dados dos cidadãos, cada funcionário passa por verificação rigorosa de antecedentes, cumpre exigências de treinamento e assina acordos que definem sanções para o uso indevido de dados. Além disso, o funcionário só recebe uma autorização específica para cumprir o trabalho designado. Os empregados do Doge não estão sujeitos a nada disso, diz a ministra.
A decisão do tribunal pleno do Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região declara que o governo não ofereceu uma explicação convincente sobre o suposto “dano irreparável” que pode sofrer, se a liminar não for suspensa. Apesar do pedido específico da juíza federal, o governo se absteve de apresentar uma explicação escrita, convincente, sobre a necessidade de obter os dados.
A ministra lembrou que tais dados são protegidos pela Lei da Privacidade, de 1974. Essa lei federal foi aprovada pelo Congresso exatamente para “proteger a privacidade de indivíduos identificados em informações mantidas pelos órgãos públicos. Ela regula a “coleta, manutenção e disseminação de informações pessoais”.
Mensagem preocupante
De acordo com a ministra, antes do governo Trump era muito raro a Suprema Corte aceitar pedidos para colocar causas na pauta de emergência. Nos governos dos ex-presidentes Bush e Obama, por exemplo, só decidiu pedidos de emergência uma vez, em cada dois anos.
No governo Trump, isso mudou. Agora, decisões sobre pedidos de emergência se tornaram uma rotina — quase um por semana, escreveu a ministra. Informações disponíveis na Internet indicam que a corte aceitou, nesses primeiros meses do governo Trump, 19 pedidos de emergência.
E alguns desses casos, como o que está agora perante a Suprema Corte, sequer são realmente de emergência. Mas os ministros conservadores “vestem seus uniformes de bombeiro, correm para o local da suposta emergência e atiçam as chamas em vez de apagá-las”, escreveu Ketanji Brown Jackson.
“Em meu entendimento, conceder ao governo a suspensão da liminar, sem demonstração suficiente de que sofrerá dano irreparável, também é sistematicamente corrosivo”, ela declarou.
“Sempre dizemos a todos os peticionários que é indispensável comprovar um dano irreparável, para o pedido ser atendido. Mas, se o governo não precisa satisfazer uma exigência que outros peticionários têm de cumprir e recebe um tratamento preferencial, isso tem um custo”.
“Manda uma mensagem preocupante de que a corte pode ignorar padrões jurídicos e normas básicas do sistema judicial (tais como respeito a decisões de tribunais inferiores e igualdade de justiça perante a lei), no caso de certos peticionários”. Em outras palavras, a pauta de emergência abriga um pedido extraordinário para todo mundo, menos para o governo, diz a ministra.
“Eu exigiria, sem medo e sem favoritismo, que o Doge e o governo fizessem o que todos os outros peticionários devem fazer para garantir a suspensão de uma liminar: cumprir as ordens dos tribunais inferiores e atender as exigências para a corte examinar os quatro fatores para conceder a suspensão da liminar”.
“Mas, com a decisão de hoje, parece que o tribunal realmente perdeu seu rumo”, concluiu Ketanji Brown Jackson, a caçula da Suprema Corte.
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