Corte Argentina: 20 anos do emblemático julgamento sobre a anistia
18 de junho de 2025, 8h00
Em 14 de junho de 2005, a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina declarou inconstitucionais as leis de Obediência Devida e Ponto Final, e ratificou a Lei 25.779, de 2003, que as havia declarado nulas. Trata-se de uma decisão histórica, pois foi a primeira vez que os três poderes do Estado concordaram sobre a necessidade de julgar os crimes cometidos durante a última ditadura civil-militar: o Poder Executivo, enviando o projeto do que seria a Lei 25.779, o Legislativo, aprovando-a, e o Poder Judiciário, ratificando seu conteúdo validando sua constitucionalidade e compatibilidade com os mecanismos internacionais de direitos humanos. O caso é conhecido como fallo Simón.
Em 1998, é verdade, o Congresso Nacional argentino já havia revogado ambas as leis por meio da lei 24.952, no entanto, a revogação não tinha efeito retroativo e, portanto, não afetava de forma alguma a situação jurídica dos beneficiários dessas leis.
Assim, a decisão da corte no caso “Simón”, juntamente com outra, a decisão no caso “Arancibia Clavel”, proferida em março do mesmo ano, que estabeleceu a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade como uma regra derivada do direito internacional consuetudinário e que não violava o princípio da irretroatividade da lei penal, pôs fim aos obstáculos que impediam o julgamento desses crimes. A partir de então, houve uma abertura e um avanço, em todo o país, dos processos contra os responsáveis.
O caso
Em 27 de novembro de 1978, membros das Forças Armadas sequestraram José Liborio Poblete, sua esposa, Gertrudis Marta Hlaczik, e a filha do casal, Claudia Victoria, de oito meses. Eles foram levados para o centro clandestino de detenção “El Olimpo”, onde foram submetidos a graves torturas e humilhações, além de terem sido separados da filha, que foi entregue ao coronel Ceferino Landa e sua esposa, Mercedes Beatriz Moreira. Julio Simón, conhecido como “turco Julián”, e seu grupo de tarefas foram os responsáveis pelas torturas. Em janeiro de 1979, Poblete e Hlaczik foram retirados do centro clandestino de detenção. Presume-se que tenham sido eliminados fisicamente.
Em 1998, as Avós da Praça de Maio (Abuelas), em representação de Buscarita Imperi Roa, mãe de José Liborio Poblete e avó de Claudia Victoria, iniciaram o processo judicial pela apropriação da menina. No processo, foi comprovado que ela estava viva e que havia sido registrada como Mercedes Beatriz Landa, filha de Ceferino Landa e Mercedes Beatriz Moreira, pouco tempo depois de ter sido privada de liberdade, aos oito meses de idade. Isso desencadeou o processo contra ambos, com prisão preventiva, em fevereiro de 2000. Além disso, o promotor ampliou o processo, com prisão preventiva para Juan Antonio Del Cerro e Julio Hector Simón por terem sequestrado, ocultado e retido Claudia Victoria Poblete.
A Corte Suprema da Argentina, ao julgar o caso, proferiu uma decisão histórica ao declarar a nulidade das leis de anistia conhecidas como Lei de Ponto Final (Lei 23.492) e Lei de Obediência Devida (Lei 23.521), reafirmando o dever do Estado argentino de julgar e punir os responsáveis por crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar (1976–1983). A decisão tem como eixo central a prevalência do sistema internacional de proteção dos direitos humanos sobre normas internas que obstaculizem a responsabilização penal por essas graves violações.

No caso, a corte reconheceu que a privação ilegal da liberdade, a tortura e o desaparecimento forçado de José Liborio Poblete, Gertrudis Marta Hlaczik, bem como, o sequestro de Claudia Victoria, constituem crimes contra a humanidade. Tais delitos são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, conforme os padrões do direito internacional dos direitos humanos.
Nesse sentido, foi enfatizado que o Estado argentino, ao ratificar tratados como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura, assumiu obrigações de investigar, julgar e sancionar as graves violações aos direitos humanos.
Importante esclarecer que na forma do artigo 75, inciso 22, da Constituição Argentina esses tratados gozam de hierarquia constitucional, por decisão expressa do constituinte reformador de 1994.
A Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina reiterou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especialmente o caso Barrios Altos vs. Perú, em que se estabeleceu a inadmissibilidade de normas internas, como leis de anistia e prescrição, que impeçam a investigação e punição de responsáveis por graves violações. A decisão sublinhou que essas normas violam os artigos 1.1, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, além de comprometerem o dever do Estado de garantir a efetividade dos direitos humanos.
Assim, o argumento de pacificação social que embasou as leis de anistia (ponto final e obediência devida) foi considerado insuficiente e incompatível com o novo paradigma constitucional argentino, consolidado após a reforma de 1994.
Voto emblemático: Zaffaroni
O voto emblemático condutor foi do então juiz da Corte Suprema Eugenio Raúl Zaffaroni que fundamentou seu voto destacando que o Estado argentino, ao ratificar tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assumiu obrigações internacionais que não podem ser revogadas ou enfraquecidas por leis internas. Para ele, a Constituição reformada em 1994 incorporou expressamente esses tratados com hierarquia constitucional (artigo 75, inciso 22), o que impede a subsistência de normas internas que contrariem suas disposições. Assim, ele considerou que as leis 23.492 (de ponto final) e 23.521 (de obediência devida), que visavam extinguir a responsabilidade penal por crimes cometidos durante a ditadura, são incompatíveis com a ordem jurídica internacional e, por isso, nulas de pleno direito.
Zaffaroni também rejeitou a chamada a doutrina do “duplo direito”, que pretende separar o direito interno do direito internacional, para Zaffaroni o direito internacional dos direitos humanos integra plenamente o ordenamento jurídico argentino como um só sistema normativo, e seu conteúdo deve ser aplicado pelos juízes nacionais diretamente. A ideia de que o direito internacional obriga o Estado, mas não pode ser invocado pelos indivíduos, é, em suas palavras, uma construção ultrapassada e perigosa, muitas vezes usada para justificar legitimando violações graves de direitos fundamentais.
Outro ponto central do voto é a afirmação de que os crimes de lesa-humanidade, como os praticados no caso em julgamento, são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. Essa imprescritibilidade decorre não apenas da ratificação posterior da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e de Lesa-Humanidade, mas sobretudo de normas já consolidadas no direito internacional consuetudinário e em tratados anteriores. Portanto, mesmo antes de a Argentina incorporar formalmente essa convenção, já estava vinculada ao dever de investigar e punir tais crimes, de acordo com os princípios do direito internacional.
Zaffaroni também enfatizou que as leis de anistia não podem ser consideradas válidas sob o argumento da pacificação social. O argumento de que essas normas teriam sido aprovadas democraticamente ou por razões de estabilidade institucional não é suficiente para sobrepor-se ao dever estatal de proteger os direitos humanos e garantir justiça às vítimas. A invocação de interesses políticos não pode justificar a renúncia do Estado ao cumprimento de obrigações internacionais fundamentais.
Por fim, Zaffaroni concluiu que as leis que funcionam com efeitos de anistia representam um obstáculo inaceitável ao cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pela Argentina, especialmente os que derivam da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com base nisso, defendeu que os crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura devem ser plenamente investigados e julgados pelo Poder Judiciário, independentemente do tempo decorrido ou de normas internas anteriores em sentido contrário. Para Zaffaroni, a única resposta juridicamente legítima e moralmente aceitável é a anulação das leis de anistia e a plena vigência da justiça.
Ao invalidar essas leis, a corte argentina afirmou que elas não poderiam mais produzir qualquer efeito jurídico e que não poderiam ser invocadas para impedir a persecução penal dos crimes cometidos durante o regime militar. A decisão reafirma que o Estado argentino não pode se eximir da obrigação de garantir justiça às vítimas, nem invocar o princípio da legalidade penal (nullum crimen, nulla poena sine lege) para sustentar a impunidade dessa espécie crimes que, pela sua natureza, violam normas imperativas de direito internacional.
O julgamento de Simón marcou uma ruptura definitiva com o passado de impunidade e reafirmou o compromisso da Argentina com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, estabelecendo um marco normativo para a responsabilização penal de crimes de lesa-humanidade e consolidando a centralidade dos tratados internacionais na interpretação e aplicação do direito interno argentino.
Esse julgamento da Corte Suprema Argentina completou 20 anos no último dia 14 de junho.
Por aqui seguimos aguardando o julgamento pelo STF da ADPF nº 320, que questiona justamente a compatibilidade da lei de anistia brasileira com o Sistema Interamericano de Direito Humanos. Lembrando que tal qual ocorreu na Argentina, a adesão pelo Brasil ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e aceitação da jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocorreu já na democracia inaugurada pela Constituição de 1988, por decisão soberana do Estado brasileiro.
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