Opinião

A impenhorabilidade de animais domésticos

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18 de junho de 2025, 11h14

O Código de Processo Civil prevê em seus artigos 835, inciso VII, 847, inciso III, 862 e 886, inciso III, a possibilidade da realização da penhora de semoventes (animais).

Semoventes são bens móveis, suscetíveis de movimento próprio, conforme dispõe nosso Código Civil, em seu artigo 82.

No entanto, o pensamento jurídico contemporâneo evolui de forma consistente a admiti-los como sujeitos de direitos despersonificados, com natureza jurídica sui generis.

É sabido que os animais são seres sencientes, ou seja, têm sentimentos: alegria, tristeza, ansiedade, raiva, amor, além de sentirem fome, sede, prazer e dor, se reproduzem, têm memória e possuem capacidade de aprendizado.

Tratá-los, portanto, como meros objetos, como sugere nossa legislação civil, seria cruel.

Tanto é verdade que há uma variedade de decisões judiciais que atualmente consideram os animais como sujeitos de direitos, garantindo-lhes, por exemplo, alimentos, regulamentação de visitas, guarda, direito de acompanhamento em viagens como suporte emocional, suporte para deficientes visuais, além da própria tutela legal de sua vida e integridade física através da legislação penal e ambiental.

Distinção entre animais

Com relação à questão patrimonial, não poderia ser diferente.

É necessário, antes do início do desenvolvimento do raciocínio objeto deste artigo, traçarmos uma distinção entre animais domésticos, animais selvagens e exóticos, animais utilizados meramente para finalidade empresarial e animais com finalidade mista (doméstica e empresarial).

Reprodução

Os animais domésticos são aqueles adquiridos de forma onerosa ou gratuita, possuem proteção legal pelo Estado e, no caso de determinadas espécies, é necessário possuir autorização para o exercício de sua tutela. São voltados para o lazer e a recreação de seus tutores, assumindo na vida destes um papel de verdadeiro membro da família, com lugar à mesa, no sofá, no quarto, no carro, em viagens e onde quer que estejam seus tutores.

Os animais selvagens e exóticos, por sua vez, também possuem proteção legal pelo Estado e normalmente vivem em estado de natureza, em plena e total liberdade, sem intervenção da vida humana e sem a possibilidade de sua apreensão para cuidado doméstico ou exploração empresarial.

Os animais utilizados para finalidade meramente empresarial, por exemplo: reprodutiva, abate e etc, também possuem proteção estatal, normalmente são adquiridos de forma onerosa e não possuem qualquer vinculação psicológica ou sentimental com seus tutores, sendo literalmente usados como mercadoria, bens de consumo aptos a atingir a finalidade empresarial de determinadas sociedades empresárias.

Por fim, os animais com destinação mista, ou seja, aqueles que apesar de utilizados na finalidade de uma empresa, também representam aos seus tutores alguma forma de conforto e companhia, podem ser adquiridos de forma onerosa ou gratuita e igualmente possuem tutela do Estado.

Alvos de penhora

Destes, entendemos que apenas e tão somente os animais destinados para finalidade empresarial pura ou mista, poderiam ser alvo da penhora mencionada pela lei.

Os animais selvagens e exóticos gozam de especial proteção legal, muitas vezes sendo vedado o seu cuidado doméstico, permanecendo durante toda a sua vida na natureza. Portanto, pertencem ao bioma e não a uma pessoa, física ou jurídica em especial, não podendo ser alvo de qualquer espécie de apreensão ou penhora, pois não possuem tutores.

Os animais tutelados para uma finalidade mista — empresarial-particular — podem ser alvo de penhora, na medida em que, apesar de possuírem certa vinculação com seus tutores, são usados em uma cadeia produtiva, Portanto, não podem ser considerados meramente por sua espécie (cão ou gato, por exemplo) como domésticos.

Já os animais que não possuem qualquer vinculação emocional ou psíquica com seus tutores, e são utilizados apenas tão somente para finalidade empresarial, podem, igualmente, ser objeto de penhora, tais como: bovinos, aves, peixes e etc.

Penhora de pets

Agora, vamos imaginar a situação de um tutor de um pet (cão ou gato ou ave) que esteja endividado, não possua disponibilidade patrimonial e seus únicos ativos seriam seus animais domésticos com os quais convive há oito anos. Seria lícito aos seus credores penhorarem os animais para ver o seu crédito satisfeito?

Em uma análise meramente bouche de la loi, a resposta ao questionamento é afirmativa.

Entretanto, ao analisarmos a situação mais amiúde, podemos verificar que os dispositivos legais autorizadores de tal providência estão totalmente em descompasso com os princípios da dignidade humana e também da dignidade animal.

Retirar um animal de estimação da esfera de cuidado e proteção de seu tutor é uma violação à dignidade humana, na medida em que o animal representa ao seu tutor muito mais do que uma companhia. Ele faz parte de seu estilo de vida e de sua identidade.

Para o animal doméstico, por outro lado, ser retirado de seu tutor, pode representar o abreviamento de sua vida, haja vista já estar há muito vinculado com o humano, o que lhe provocaria intenso sofrimento emocional.

Considerando esta última possibilidade, o proveito econômico e a satisfação de um crédito não estariam garantidos, considerando que isto dependeria da longura de dias do animal e sua saúde em geral.

Dignidade humana e do animal

Partindo das premissas de se garantir a dignidade humana, bem como do animal doméstico, e a ausência de garantia a longo prazo para satisfação do crédito é que se lastrearia a impenhorabilidade do animal doméstico.

Ademais, a efetivação de tal comando legal, apenas produziria danos aos tutores, aos animais e aos próprios credores, haja vista que teriam o compromisso legal de zelar pela vida e bem estar do animal que passaria a ficar sob seus préstimos, gerando ônus (banho e tosa, alimentação adequada, despesas veterinárias e etc).

De mais a mais, a providência prevista em lei revela possuir mais um caráter de coercitividade do que de satisfatividade, pois, sob a ameaça de ter seu animal doméstico “penhorado e leiloado”, o tutor quitaria seus débitos.

Nos parece um meio de cobrança abusivo e vexatório quando se tratar de animais domésticos, o que, além de violar a Constituição e a legislação infraconstitucional, não atenderia ao espírito da lei.

O legislador processual civil, quando inseriu a hipótese de penhora animal, deixou implícito que não se trata da penhora da “Bella”, uma poodle tutelada pela “Srª. Adelaide”, de 88 anos de idade ou do “Biscoito”, um vira-latas tutelado pelo “João”, de 5 anos de idade”, mas sim, de animais que compõem o patrimônio de empresas e delas compõem sua cadeia produtiva principal ou atividades paralelas.

Conclui-se, desta forma, pela impenhorabilidade dos animais domésticos propriamente entendidos e havidos como tal.

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