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O curioso princípio da desconfiança legítima que vigora no Brasil

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  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

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17 de junho de 2025, 8h00

A doutrina jurídica aponta a existência de um princípio conhecido por proteção da confiança legítima, que consiste no resguardo das relações de fidúcia que existem entre pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas. É correlato com o da boa-fé, embora com ele não se confunda.

Múltiplas fontes indicam diversas origens para tal princípio [1], sendo que uma delas aponta para um caso conhecido como o da Viúva de Berlim, no qual uma moradora na Alemanha Oriental nos anos 50 do século passado, buscou receber uma pensão paga pela Alemanha Ocidental e, para tanto, teve que se mudar para Berlim Ocidental, arcando com os custos dessa mudança em plena guerra fria. Recebeu a pensão durante um ano, até que foi cassada por ter sido concedida por autoridade incompetente. Em razão da ilegalidade identificada, além da cessação do benefício, foi-lhe cobrada a devolução do que havia recebido irregularmente. Irresignada, buscou os tribunais sob o argumento do custo que havia arcado e da enorme mudança em sua vida, o que gerava uma confiança legítima de que seus efeitos seriam legítimos, firmes e duradouros. Em 1956 o Tribunal Administrativo de Berlim decidiu a seu favor, impedindo a cobrança retroativa e mantendo o pagamento normal da pensão, o que foi confirmado em 1957 pelo Tribunal Administrativo Federal daquele país.

Mais do que a busca do leading case para esse tipo de proteção, o que se identifica é a existência de uma relação de fidúcia, de confiança, que deve ser preservada nas relações entre pessoas, mesmo que seja entre entes públicos.

Horizontalidade e verticalidade

No Brasil, verifica-se nas relações envolvendo o poder público seu oposto, isto é, a desconfiança legítima, fundada em uma eterna e prévia suspeita de que um ente federativo quer levar vantagem em face do outro, seja de forma vertical ou horizontal, bem como nas relações com os indivíduos e a sociedade.

Um exemplo desta desconfiança no âmbito horizontal verifica-se na formação do Comitê Gestor, criado pela Reforma Tributária do Consumo, para cuja formação disputam duas associações de municípios, a Federação Nacional dos Prefeitos (FNP) e a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). O Conselho Superior do Comitê Gestor prevê 27 cadeiras para os estados, e outras 27 para os municípios, sendo 14 representantes “eleitos com base nos votos de cada município e do Distrito Federal, com valor igual para todos” e 13 participantes “eleitos com base nos votos de cada município e do Distrito Federal, ponderados pelas respectivas populações”. Como não houve acordo para a disputa dessas cadeiras reservadas aos municípios, o assunto foi judicializado. Mesmo assim, o Comitê Gestor foi instalado apenas com os Estados para que não houvesse perda dos R$ 600 milhões que a União transferirá para a instalação do órgão, embora não possa haver seu regular funcionamento sem que o problema da representação municipal seja solucionado.

Um exemplo da desconfiança no âmbito vertical se verifica na questão da dívida interfederativa, pois a União contabiliza a seu crédito contra o conjunto dos estados o valor de R$ 827 bilhões, sendo que dados da Febrafite, indicam que São Paulo já pagou R$ 455 bilhões e ainda deve R$ 289 bilhões. A mim parece claro que a União está adotando juros bancários nessas operações, quando deveria adotar procedimentos de cooperação federativa, ancorado na proteção da confiança legítima, pois a origem de grande parte dessa dívida decorre de composição realizada na década de 90, no bojo das mudanças que implementaram o Plano Real. Definitivamente a União não é um banco, e deveria revisar a política de juros de mercado praticada nessas operações interfederativas.

Spacca

Existe ainda o aspecto da desconfiança legítima entre o poder público e os indivíduos. Um exemplo: está sendo gestada mais uma alteração no sistema de pagamento dos precatórios por meio da PEC 66/2023, para estabelecer um teto de pagamento pelos municípios, o que é um desrespeito aos credores de um título expedido pelo Poder Judiciário transitado em julgado.

No âmbito tributário enormes desconfianças presidem as relações entre Fiscos e contribuintes, os quais, na ótica fiscal, são sempre sonegadores até prova em contrário. Espera-se, embora com pouca fé, que esse comportamento seja modificado em razão da aprovação do Princípio da Cooperação pela EC 132/23, que se insere no âmbito da confiança legítima.

Outro exemplo da desconfiança legítima: o uso de precatórios para pagamento outorga de concessões (artigo 100, §11, III, CF), com o conhecido caso da aquisição da outorga de diversos aeroportos, inclusive o de Congonhas pela empresa Aena, o que foi objeto de comentário neste espaço. A norma não foi respeitada pelo poder público e a empresa teve que gastar em dobro para ver seu direito prevalecer.

Enfim, o princípio da confiança legítima, em seus diversos âmbitos, existe no Direito brasileiro, porém é a desconfiança legítima que está instaurada em seu seio. É necessário que o poder público faça por merecer a confiança legítima e recíproca que deve presidir suas relações, e que o Poder Judiciário fique atento e diligente para sua proteção efetiva.

 


[1] Dentre vários: Deliberador, Giuliano Savioli, Confiança legítima: anatomia de um direito fundamental. Dissertação de mestrado defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, orientação de Monica Herman Caggiano, 2013.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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