Direito aplicável aos contratos: escolha pelas partes no anteprojeto de Lei Geral de Direito Internacional Privado
17 de junho de 2025, 6h00
A iminência da alvissareira promulgação de uma lei brasileira de Direito Internacional Privado (DIP) em substituição das já há muito superadas regras da Licc, hoje Lindb, decretada faz mais de 80 anos, traz importantes dúvidas e questões. Uma delas se refere à aplicação, no Brasil, de direitos estrangeiros aos contratos.

Para explicitar a lógica da utilização de normas estrangeiras por juízes brasileiros e a forma de sua identificação e determinação, propõe-se, aqui, um roteiro de questionamentos lógicos e práticos na busca de uma explicação simples e direta da sua normalidade e utilidade. Assim, propõem-se questões claras como um ponto de partida para a sensibilização a respeito da temática e uma primeira aproximação.
É possível e conveniente o juiz aplicar um direito estrangeiro a um contrato estrangeiro?
Sim. O exercício da jurisdição internacional, como estabelecido nos artigos 21 a 25 do CPC, alcança obrigações fora do território brasileiro e, portanto, alcança contratos estrangeiros. É o caso, p. ex., de um contrato entre dois nacionais franceses, firmado na França e criando obrigações a serem cumpridas na França. A jurisdição brasileira poderia ser estendida, por exemplo, em razão da recente mudança de domicílio do réu de Paris para o Rio de Janeiro.
Embora, hipoteticamente, seja possível imaginar a aplicação do Direito brasileiro em razão do conhecimento do magistrado das normas contratuais brasileiras, o fato é que o bom senso aponta para a preferência pelo regime contratual francês. Em consonância, é virtualmente inexistente sistema jurídico que opte pela aplicação do direito do foro (a lex fori do DIP) em detrimento da lei com vínculos efetivos — subjetivos e objetivos — com o contrato (a lex causae).
Era assim na introdução do Código Civil de 1916 e continua sendo na atual Lindb. Permanece como tal no bem-vindo anteprojeto de lei.
É possível e conveniente o juiz aplicar um direito diverso da lex fori a contratos internacionais?
É importante diferenciar um contrato exclusivamente estrangeiro de um contrato internacional. Se o primeiro se vincula materialmente a um único ordenamento, o outro dispõe de aspectos e elementos ligados a mais de um Estado. Um exemplo simples seria o de uma compra e venda entre empresa brasileira (vendedora) e outra, francesa (compradora) em que o preço deve ser pago no Brasil e a mercadoria entregue na França, havendo o contrato sido firmado em Paris.
Para os contratos internacionais o senso comum não dá uma resposta tão clara a respeito de qual o melhor Direito a ser aplicado. Ainda assim, visto desde uma terceira jurisdição — um juiz de Nova York p. ex. — a maior proximidade da operação econômica aponta para a França. É lá em razão a obrigação mais característica e complexa da compra e venda: a entrega dos bens.
O juiz brasileiro de hoje, aplicando o artigo 9º da Lindb, utilizaria as normas francesas em razão do lugar de celebração. O direito brasileiro é preservado, evidentemente, por normas de Direito público, cuja aplicação não pode ser afastada para o emprego de lei estrangeira, e da potencial exceção em razão da ordem pública e bons costumes, prevista no artigo 17 da Lindb.
Além de ser possível, portanto, é normal e conforme o Ordenamento brasileiro a aplicação de direito estrangeiro em contratos internacionais, mesmo quando este se conecte parcialmente com o Brasil. Há ampla e sólida jurisprudência nesse sentido.
Na indicação do direito aplicável a um contrato, qual a conexão mais adequada?
Ao tratar a questão anterior, apresentaram-se dois critérios conectivos: o vínculo mais próximo (no caso, a prestação mais característica do contrato) e o local de celebração. Esses não são, porém, o mais comum dos critérios de conexão de um contrato com um ordenamento: este é o da vontade das partes.
A imensa maioria dos sistemas jurídicos opta pela vontade das partes como critério de indicação do Direito aplicável. É assim em virtualmente todos os ordenamentos da tradição anglo-americana, bem como os da Europa continental. O princípio se fundamenta na convicção de que, resultando o contrato do consenso das vontades das partes, este também deve servir de base para identificar o sistema jurídico visto por estas como o mais conveniente.
A ideia da vontade das partes como elemento que conecta o contrato a uma ordem jurídica não é uma derivação necessária do reconhecimento da autonomia privada, mas pode ser compreendida como uma opção feita pelo sistema do foro a respeito da identificação do regime jurídico mais adequado para reger o contrato. Nesse sentido, a vontade como indicadora do Direito aplicável é apenas um bom critério de vinculação, dada a natureza consensual dos contratos, e não um meio de circundar maliciosamente a aplicação de um dado Direito.
Pode-se concluir pela justiça e conveniência da adoção do critério da vontade das partes em razão dos seguintes pontos: (i) como o contrato brota do consenso das partes, sustentado pela autonomia privada, faz sentido respeitar sua indicação de lei aplicável, (ii) considerando que as partes elaboram o instrumento contratual projetando-o sobre um dado direito aplicável, o respeito à vontade tende a dar maior eficiência ao acordo privado, (iii) sendo a matéria contratual assunto preponderantemente privado, não se deve presumir qualquer ofensa ou desafio ao direito posto por um Estado e, (iv) considerando que a indicação pela vontade é praticamente universal, a opção por esse critério incrementa a uniformidade internacional na própria adjudicação, pois os vários Judiciários tenderão a aplicar o mesmo direito.
Como se instrumentaliza a escolha expressa do Direito aplicável pelas partes?
Em termos gerais, há duas possibilidades de permissão da escolha expressa do Direito aplicável pelas partes. A primeira se dá em um Ordenamento que opte pela vontade das partes e, por conseguinte, dê efeitos a acordos sobre a escolha do Direito aplicável, os quais servem para garantir maior clareza quanto à escolha. A segunda ocorre quando o sistema de DIP opta por um critério objetivo de indicação da lei aplicável e permita, excepcionalmente, a escolha da lei aplicável pelas partes. É o caso, p. ex., do artigo 13 da Introdução do Código Civil de 1916, cujo caput determinava que “a lei do lugar onde foram contraídas” regularia as obrigações “salvo estipulação em contrário”.
A Lei de Arbitragem brasileira, em seu artigo 2º, §§ 1º e 2º, faculta às partes a escolha da lei aplicável ou, até mesmo, a opção por princípios gerais de Direito, usos e costumes e regras do comércio internacional. Não se trata, decerto, de regra determinante da conexão entre contratos e o Ordenamento que os reges, mas apenas de uma autorização ampla para que, na arbitragem, seja facultado às partes a escolha do regime jurídico a ser aplicado.
A Lindb não admite expressamente a escolha da lei aplicável aos contratos. Não obstante, há decisão do STJ em REsp (1.280.218 MG/2011/0169279) [1] onde se afirma, na ementa: “em contratos internacionais, é admitida a eleição de legislação aplicável”. Tal decisão aponta para a disposição do STJ em reconhecer a possibilidade de escolha da lei aplicável para contratos internacionais.
A escolha de direito pelas partes deve ser sempre aceita?
A possibilidade de escolha da lei aplicável por meio de negócio jurídico entre as partes de um contrato é, em princípio, legítima. Não o será, porém, se (i) resultar de artifício da parte em melhor posição de negociação para a impor à outra ou (ii) resultar de conluio entre as partes para evitar a aplicação de normas estatais, em detrimento do interesse público.
Em resposta a essas possíveis situações, o DIP oferece três soluções: a imposição das normas diretamente aplicáveis, a exceção de ordem pública e a objeção à fraude à lei. Não cabe, neste artigo, discorrer largamente sobre o tema. Necessário, porém, lembrar sua suficiência para evitar excessos.
A primeira se refere a normas de caráter público, ainda que operantes em campos privados, as quais não podem ter sua aplicabilidade territorial afastada para a eventual utilização de direito estrangeiro. Assim, o direito indicado não poderá afastar ou mitigar os efeitos dessas normas, cuja eficácia deve ser preservada pelo juízo.
A exceção de ordem pública evita que efeitos indesejados de um Direito estrangeiro possam ser produzidos no país. Trata-se de um juízo casuístico e concreto a partir do qual as os efeitos de normas estrangeiras podem ser evitados em razão de circunstâncias jurídicas, sociais ou políticas. Seria o caso, p. ex., de considerações a respeito da boa-fé objetiva ou da função social dos contratos, em razão das quais a imposição de deveres excessivos a uma parte hipossuficiente aderente a um contrato pode vir a ser mitigada ou afastada em razão da ordem pública.
Por fim, a identificação de fraude à lei pode ser, em conjunto com a aplicação imediata de regras territoriais e da verificação de conformidade com a ordem pública, um instrumento para evitar a indicação de Direito estrangeiro por meio de conluio das partes, desejosas de se desvencilhar de restrições jurídicas.
Pode-se escolher a lei aplicável a um contrato cujos vínculos materiais são todos brasileiros? E uma lei sem vínculo material com o contrato?
Vários sistemas jurídicos se preocupam em evitar o uso malicioso da escolha da jurisdição e do Direito aplicável pelas partes como meio de se afastar de regras cogentes. Em boa parte, isso pode ser tratado, como se viu, a partir do emprego imediato das normas diretamente aplicáveis, da exceção de ordem pública e do afastamento da fraude à lei. Além disso, há duas estratégias legais capazes de mitigar essa situação.
A primeira gira em torno da noção de relação jurídica internacional, restrita, como se observou acima, àquelas com vínculos materiais com mais de uma ordem jurídica. O CPC, artigo 25, p. ex., confere apenas à escolha de jurisdição em contratos internacionais a possibilidade de afastar o juízo brasileiro. Já em matéria de lei aplicável, a norma uruguaia reserva a possibilidade de escolher apenas para os contratos internacionais (Ley General de DIP, artigos 44 e 45). O anteprojeto brasileiro também adere a esta exceção, reservando a possibilidade de escolha às partes de contrato internacional (artigo 28).
A outra restringe a possibilidade de escolha ao conjunto de direitos que tenham algum vínculo material com a relação. Seria o caso, p. ex., de um contrato com vínculos franceses e brasileiros, mas com escolha do direito alemão. Se houvesse tal exceção, a lei germânica não poderia ser utilizada. Deve-se observar que tal espécie de restrição não é comum no direito comparado e é perfeitamente justificável a opção por um regime jurídico dotado de características próprias para o tratamento de um determinado setor ou tipo de negócio.
Tanto no direito positivo atual, quanto na proposta de codificação, é impossível escolher o direito aplicável em um contrato estritamente nacional — brasileiro ou estrangeiro. Reserva-se tal possibilidade aos contratos internacionais. Por outro lado, inexiste regra atual ou proposta que impeça a indicação de direito estranho aos vínculos materiais dos contratos.
Há situações contratuais sobre as quais não é conveniente admitir a possibilidade de escolha da lei aplicável?
Há duas importantes razões para que não se admita a escolha da lei aplicável. A primeira se refere ao interesse nacional e à necessidade de garantir a aplicação do direito brasileiro. A segunda se refere a contratantes vulneráveis e mais frágeis que as suas contrapartes, situação que poderia dar azo à escolha da lei mais favorável à parte preponderante.
Para lidar com a primeira hipótese, em primeiro lugar, está a evidente exclusão dos contratos com a Administração Pública, regidos necessariamente pelo direito público brasileiro. Além disso, contratos em matéria de recursos minerais extraídos no território do país e de arrendamentos rurais ou contratos similares são, necessariamente, regidos pelo direito brasileiro.
Para a segunda hipótese, o anteprojeto de Lei Geral de DIP já prevê a exceção para os contratos de trabalho e os contratos de consumo, ambos considerados como envolvendo uma parte vulnerável em razão de suas condições econômicas e de assimetria de informação. Nesse caso, não há reserva da lei brasileira — embora se deva levar em conta a possibilidade de exceções de ordem pública. Opta-se, ali, pela lei mais favorável ao trabalhador e pelo domicílio do consumidor.
É legítima e conveniente a regra de vinculação contratual da proposta de lei geral de DIP?
A regra hoje vigente no Brasil, contida no Artigo 9º da Lindb, é bastante lacunosa e contrária à prática do comércio internacional. Ausente uma regra clara sobre a possibilidade de escolha da lei aplicável, abre-se espaço para interpretações extensivas, como a do acórdão no REsp mencionado acima e em boa parte da doutrina. Além da pouca clareza, resta o evidente descompasso com a imensa maioria dos sistemas jurídicos, que adotam a vontade das partes como elemento de conexão ou, ao menos, admitem a validade e eficácia de cláusulas de escolha de direito aplicável.
As disposições do anteprojeto podem não ser perfeitas. É possível, por exemplo, defender a utilização do critério da maior proximidade como subsidiário à regra da vontade das partes, ao invés do lugar de celebração, adotado pelo texto. Ainda assim, as disposições propostas são infinitamente melhores do que as atualmente vigentes.
A franca adoção do critério da vontade das partes e, como seu corolário, a possibilidade de escolha expressa das partes a respeito do direito aplicável a contratos internacionais vem já com bastante atraso. As eventuais desvantagens são poucas e improváveis, em razão da própria sistemática de limites e exceções. Seus benefícios são múltiplos: maior harmonia com o direito comparado, harmonia com a disposição sobre escolha da lei na arbitragem, harmonia com o regime de escolha de jurisdição no CPC, respeito à vontade dos particulares em seus assuntos privados e manutenção da coerência do conteúdo dos instrumentos contratuais com as leis sobre as quais se projetam, entre outros. Que sejam bem-vindas a vontade das partes e a possibilidade de escolha do Direito aplicável aos contratos. Delas resulta uma ordem jurídica brasileira mais adequada ao tratamento das questões internacionais, com vantagens para todos.
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[1] Julgado em 21/06/2016. Acórdão publicado aos 12/08/2016. Disponível aqui
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