Opinião

Citação e intimação na Justiça Desportiva: pressupostos de validade do processo

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17 de junho de 2025, 18h26

A Justiça Desportiva brasileira é regida por normas próprias, mas não está alheia aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Dentre os dispositivos mais relevantes do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) para assegurar essas garantias, destaca-se o artigo 47, que trata da citação e intimação das partes nos processos disciplinares.

Apesar disso, é comum que alguns tribunais e comissões disciplinares desportivas restringirem as comunicações processuais à simples publicação de boletins eletrônicos, desconsiderando a necessidade de comprovação da ciência do acusado, em flagrante desacordo com o CBJD e com o devido processo legal.

Filosofia e função jurídica da citação e intimação

A citação e a intimação cumprem função essencial no processo: garantir ciência e oportunidade real de participação da parte acusada. No plano jurídico, a citação é o ato formal que constitui a relação processual válida, sem a qual não há contraditório nem validade dos atos subsequentes.

No plano filosófico, tais institutos traduzem o respeito à dignidade do ser humano, pois asseguram que ninguém será julgado ou punido sem antes poder ser ouvido. Isso está intimamente ligado ao conceito de processo justo: ninguém deve ser surpreendido por uma sanção imposta sem saber que estava sendo julgado.

Texto do artigo 47 do CBJD: interpretação literal e sistêmica

Dispõe o artigo 47 do CBJD:

Art. 47. A citação e a intimação far-se-ão por edital instalado em local de fácil acesso localizado na sede do órgão judicante e no sítio eletrônico da respectiva entidade de administração do desporto.

§1º Além da publicação do edital, a citação e a intimação deverão ser realizadas por telegrama, fac-símile ou ofício, dirigido à entidade a que o destinatário estiver vinculado.

§2º Poderão ser utilizados outros meios eletrônicos para efeito do previsto no § 1º, desde que possível a comprovação de entrega.”

A leitura literal revela que a publicação em boletim é necessária, mas não suficiente. É obrigatória a remessa direta à entidade à qual a parte está vinculada, e, se usados meios eletrônicos, deve haver comprovação de recebimento.

Portanto, intimações feitas exclusivamente por publicação no site violam o CBJD e podem gerar nulidade absoluta.

Da ausência de ampla defesa e do indevido processo legal

O poder sancionatório exercido pelos órgãos que exercem controle disciplinar, seja de qual natureza for, deve respeitar o devido processo legal e o direito constitucional à ampla defesa. Não é distinta a aplicação dos dispositivos sancionatórios do Código Brasileira de Justiça Desportiva pela Justiça Desportiva, que inclusive tem assento constitucional em artigo 217.

Os aplicadores do Direito Desportivo, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva e do Código Brasileiro de Antidopagem devem necessariamente obedecer aos preceitos constitucionais e os princípios e normas de regência do direito administrativo sob pena de nulidade dos respectivos processos administrativos sancionadores que julgarem.

Trazemos, inclusive, os recentes enunciados da I Jornada de Direito Desportivo promovida pelo Conselho Nacional de Justiça Federal e pelo Centro de Estudos Judiciários [1].

“Enunciado 15 – São aplicáveis as garantias constitucionais do Direito Administrativo Sancionador aos procedimentos de Direito Desportivo que visem aplicar sanções, sopesado o grau aflitivo da pretensão punitiva.

Enunciado 28 – A inclusão em súmula, pelo árbitro, de declaração de ter tido sua honra ofendida por conduta relacionada ao desporto não é, por si só, suficiente para atrair a incidência do art. 243-F do CBJD.”

Com apego à lei, trazemos o dispositivo da Lei de Processo Administrativo – Lei nº 9.784/99, na parte que trata da comunicação dos atos.

“Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.

(…)

§3o. A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado.”

Vejamos que, a legislação que trata de processo administrativo sancionador é clara no sentido de garantir a ciência do interessado.

Spacca

Mais expressamente no caso do direito sancionador no âmbito desportivo, o CBJD determina em artigo 47 a intimação por meio eletrônico com comprovação de entrega. Rememoro que o CBJD é documento de caráter cogente, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça — órgão colegiado de normatização, deliberação e assessoramento, diretamente vinculado ao ministro de Estado do Esporte, artigo 11, VI, Lei Pelé, com aplicabilidade absoluta ao presente procedimento disciplinar sancionatório.

Portanto, é clara que a citação/intimação em desacordo com os preceitos do Código de Justiça Desportiva — artigo 47 — com a ausência de intimação por meio eletrônico com aviso de recebimento gera a nulidade do processo administrativo sancionador no âmbito da justiça desportiva.

Mais claro ainda são os efeitos da irregularidade na citação/intimação quando a ausência de defesa técnica provoca uma condenação baseada unicamente na Súmula trazida pela arbitragem, transformando uma prova relativa em prova absoluta, exclusiva e unilateral, sem crivo do contraditório, sendo imperiosa a decretação de nulidade absoluta, questão de ordem pública passível de alegação a qualquer tempo, inclusive de ofício.

Presunção relativa da súmula e conceito de prova no processo disciplinar

O CBJD é claro ao tratar da súmula da arbitragem como prova:

Art. 58. A súmula, o relatório e as demais informações prestadas pelos membros da equipe de arbitragem, bem como as informações prestadas pelos representantes da entidade desportiva, ou por quem lhes faça as vezes, gozarão da presunção relativa de veracidade.”

A presunção relativa (juris tantum) admite prova em contrário. É diferente da presunção absoluta (juris et de jure), que não admite refutação. Quando um tribunal desportivo decide com base exclusiva na súmula, especialmente em casos sem audiência válida da parte, transmuta indevidamente uma presunção relativa em absoluta, violando o próprio CBJD.

A prova no processo disciplinar precisa ser robusta e contraditada. A ausência de contraditório compromete sua validade. Súmula não é prova absoluta, e seu valor deve ser relativizado quando há omissão na comunicação da parte acusada.

Princípios fundamentais do processo justo

A Justiça Desportiva deve respeitar os seguintes princípios constitucionais:

– Devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) – Julgamento válido somente mediante processo regular.

– Contraditório (CF, artigo 5º, LV) – Direito de conhecer e reagir às acusações.

– Ampla defesa (CF, artigo 5º, LV) – Direito de apresentar provas, argumentos e ser ouvido.

– Segurança jurídica – Estabilidade e previsibilidade dos atos processuais.

– Boa-fé processual – Conduta leal, transparente e não surpresa.

– Instrumentalidade do processo – O processo é meio para alcançar a justiça, e não um fim em si.

A inobservância de qualquer desses princípios gera nulidade absoluta, conforme reconhecido pela doutrina processual e pela jurisprudência.

Repercussões práticas para os tribunais de Justiça Desportiva

O artigo 47 do CBJD não é um detalhe técnico: é pressuposto de validade processual. Assim, os tribunais devem:

– Garantir dupla comunicação: edital e envio à entidade.

– Preferir meios com rastreabilidade (e-mails com confirmação, protocolos digitais, mensagens com print de leitura).

– Suspender audiência ou julgamento quando houver dúvida sobre a citação.

– Não aplicar sanções com base apenas na ausência da parte, sem comprovação da ciência.

– Evitar decisões com base exclusiva na súmula, especialmente quando o acusado não foi corretamente citado.

Conclusão: a Justiça Desportiva precisa ser legal e justa

Citação e intimação não são formalidades dispensáveis. São pilares do processo justo e da dignidade de qualquer julgamento. O CBJD, ao exigir publicação e remessa direta com comprovação, reafirma o compromisso com o contraditório e a ampla defesa.

Ignorar essas regras não apenas compromete a validade de decisões, mas afasta a Justiça Desportiva de sua função pedagógica e ética. Sanções impostas sem citação válida são arbitrárias. E processos pautados apenas em súmulas, sem escuta do acusado, são ilegítimos.

A integridade do desporto começa pela integridade de seus julgamentos. É dever dos tribunais desportivos observar rigorosamente o artigo 47 do CBJD, sob pena de nulidade absoluta e responsabilização funcional. A Justiça Desportiva deve ser célere, sim — mas nunca à custa da justiça.

 


[1] I Jornada de Direito Desportivo promovida pelo Conselho Nacional de Justiça Federal e pelo Centro de Estudos Judiciários (aqui)

Autores

  • é procurador federal da Advocacia-Geral da União, ex- consultor jurídico do Ministério do Esporte e do Conselho Nacional do Esporte e presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Skateboarding (STJD/CBSK).

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