Não exigência de qualificação econômico-financeira nas contratações de cursos de curta duração
17 de junho de 2025, 17h24
A capacitação técnica dos agentes públicos é um dos pilares da eficiência administrativa e da boa governança. Ela permite que os servidores desenvolvam habilidades técnicas e comportamentais que impactam diretamente na qualidade da sua atuação e consequentemente na qualidade da atuação da própria administração pública, seja na oferta de serviços ou em sua organização interna.
Além disso, a capacitação de servidores deve ser constante e ocorrer do modo mais célere e eficiente possível, sendo caracterizada, em regra, pela sua execução pontual e imediata e pelo baixo risco de inadimplemento.
Nesta conjuntura, a relevância e as características essenciais dos cursos de capacitação devem ser levadas em consideração quando do estabelecimento dos requisitos de qualificação a serem exigidos do contratado, uma vez que as exigências de habilitação em processos de contratação pública devem observar a natureza e as peculiaridades do objeto contratual, sob pena de inviabilizar o atendimento da demanda administrativa.
Das exigências de habilitação nas contratações públicas
Ao definir os requisitos de habilitação nas contratações públicas, devem ser observados os limites constitucionais definidos no artigo 37, inciso XXI da Constituição [1], que determinou que as exigências de qualificação técnica e econômica devem se limitar à garantia do cumprimento das obrigações pactuadas.
O dispositivo constitucional impede que a administração pública crie barreiras desproporcionais, exigindo documentos ou comprovações excessivas que não guardem pertinência com o objeto contratado. Nesse sentido, Ronny Charles Lopes de Torres [2] esclarece:
“Concordamos com tal assertiva. O princípio da proporcionalidade limita a discricionariedade administrativa para estabelecimento do rol de requisitos de habilitação previsto pelo legislador, possibilitando o juízo de verificação no que diz respeito à adequação, à necessidade e à proporcionalidade propriamente dita.
(…)
Importante frisar que a Administração deve se abster de fazer exigências desnecessárias, irrelevantes e que não estejam relacionadas diretamente com a execução do objeto, buscando sempre maior número de competidores interessados no objeto licitado.”
Verifica-se, assim, que os requisitos de habilitação devem ser necessários ao cumprimento do objeto e proporcionais, ou seja, adequados e não excessivos.
Qualificação econômico-financeira e o não cabimento de sua exigência em contratações de cursos de capacitação de curta duração
A Lei nº 14.133/21 [3], ao tratar da qualificação econômico-financeira em seu artigo 69, estabelece a possibilidade de se exigir das licitantes a apresentação de balanço patrimonial e demonstrações contábeis e certidão negativa de falência, cumprindo ressaltar que tais exigências têm como finalidade aferir a saúde financeira do contratado e sua capacidade de cumprir com as obrigações assumidas no ajuste.
Entretanto, quando o objeto contratado se refere à prestação de serviços de capacitação pontuais, com duração limitada e valor financeiro relativamente baixo, a exigência de demonstrações financeiras complexas se mostra desproporcional. A própria natureza do objeto, ou seja, de curta duração, com execução imediata e de risco mínimo, elimina a necessidade de garantias robustas quanto à capacidade econômico-financeira do contratado. Nessa toada, exigir a qualificação econômico-financeira de empresas ou profissionais que ministrem cursos de capacitação de curta duração carece de qualquer sentido lógico, apresentando, Luiz Claudio de Azevedo Chaves [4], possíveis causas para eventual rigor observado na instrução processual desse tipo de objeto:
“É que os procedimentos de contratação sem licitação costumam fornecer aos órgãos de controle rica fonte de irregularidades e falhas processuais. Isso acarreta maior rigor na investigação por parte desses órgãos. Esse rigor provoca certo melindre; uma espécie de “receio permanente” nos setores responsáveis em instruir os processos de dispensa e inexigibilidade de licitação, que acabam sendo também mais rigorosos do que o necessário, vendo embaraços onde eles não existem.
Outro fator que acaba soando negativo é a existência de sortida variedade de profissionais e empresas para o segmento de ensino e capacitação corporativa. Provocado pelo “receio geral” acima referido, o fato de haver, no mercado, grande variação de soluções para uma mesma demanda de treinamento, torna nebuloso o correto entendimento sobre questões como singularidade (será que ainda é aplicável?) e notória especialização. Assim, uma característica do segmento que deveria ser considerado salutar e proveitoso, no atual cenário, termina por dificultar a instrução dos processos.”
Ou seja, o receio da responsabilização e a complexidade das contratações por inexigibilidade de licitação fazem com que os responsáveis pela condução desses processos pequem pelo excesso.
Diante do contexto, imagine-se um órgão ou entidade que identifica a necessidade de capacitar seus servidores e, após escolher o profissional ou empresa com notória especialização e instruir devidamente o processo com a justificativa do preço e com os documentos técnicos do pretenso contratado, esbarra na exigência do setor de controle interno ou jurídico acerca da apresentação de documentos voltados à qualificação econômico-financeira ou da apresentação de justificativa para sua dispensa.
Nesse cenário hipotético, questiona-se:
- quais documentos devem ser exigidos de uma instituição ou profissional que ministrem cursos de capacitação para fins de comprovação da qualificação econômico-financeira; e
- a necessidade de se verificar índices contábeis ou de se garantir que o futuro contratado não se encontra em processo de falência ou insolvência.
Inicialmente, quanto ao ponto a), já foi indicada a previsão do artigo 69 da Lei nº 14.133/21 que estabelece a exigência de demonstrações contábeis e da certidão negativa de falência, sendo esses usualmente os documentos exigidos de licitantes e contratados pela Administração Pública.
Contudo, no caso da contratação de pessoa física, deve ser levada em conta a impossibilidade de se exigir os referidos documentos, havendo a necessidade de se adaptar a mencionada exigência. Uma forma de fazer isso é observar a Instrução Normativa Segs/ME nº 116/21 [5], que estabelece procedimentos para a participação de pessoa física nas contratações públicas de que trata a Lei nº 14.133/21, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Ainda que voltada à administração pública federal, entende-se que os demais entes podem observar as suas disposições como boa prática administrativa. Assim, o documento voltado à capacidade econômica da pessoa física é a certidão negativa de insolvência civil, prevista no artigo 5º, inciso II, c), da IN 166/21.

Já no ponto b) é que reside o ponto central da presente análise. Questiona-se qual a necessidade de se exigir o balanço patrimonial ou a certidão negativa de falência de uma empresa ou instituto que ministra cursos de capacitação, ou, ainda, de se exigir a certidão negativa de insolvência civil do professor a ser contratado. Não se vislumbra, quanto ao tema, qualquer sentido em se verificar, no âmbito de curso de, por exemplo, 4 ou 5 dias, que a empresa ou profissional responsável por ministrá-lo não se encontra em processo de falência ou insolvência civil, muito menos verificar o atendimento a índices contábeis após análise das demonstrações contábeis, sendo certo que nesse curto período a condição financeira do contratado não será alterada e nem afetará a execução do objeto contratual.
Nesses casos, o curso poderá ocorrer normalmente e, após regular procedimento, deverá ser pago o valor pactuado para a capacitação, ou seja, o mecanismo de pagamento posterior à execução do serviço se configura como a maior garantia da administração pública quanto a eventual inadimplemento do contratado.
Ainda assim, é possível que o agente responsável pelo prosseguimento da demanda opte, de modo a não se vincular à justificativa exigida pelos mencionados setores e com receio de possível responsabilização, por exigir a comprovação da capacidade econômica da empresa.
Ocorre que, em face de eventual atraso da empresa em fornecer os respectivos documentos, ou ainda, da demora em sua análise, os trâmites processuais necessários à emissão do empenho e à efetivação da inscrição dos servidores podem não ser realizados a tempo, resultando na impossibilidade de participação dos respectivos agentes na capacitação pretendida.
Dessa forma, entende-se que há, nesse caso, uma dupla violação ao interesse público, já que há um claro desrespeito à previsão constitucional de qualificação em contratações públicas, bem como não será atendida a necessidade de capacitação dos agentes públicos, constatando-se, desse modo, que uma exigência desproporcional pode custar o atendimento da necessidade administrativa, revelando-se medida descabível.
Conclusão
À luz da Constituição, observa-se que as exigências de qualificação devem se ater ao indispensável para garantir o cumprimento das obrigações contratuais. Dada a natureza e o baixo risco das contratações de cursos de capacitação de curta duração, verifica-se que a exigência de comprovação de qualificação econômico-financeira, por meio da apresentação de balanço patrimonial e certidão negativa de falência ou, ainda, de certidão negativa de insolvência civil, configura formalismo excessivo, podendo inviabilizar a contratação pretendida e comprometer a capacitação de agentes públicos, o que viola a proporcionalidade e a eficiência esperada na atuação administrativa.
___________________________________
Referências
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]..
[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas – 12.ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 340-341.
[3] BRASIL. Lei de nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios..
[4] CHAVES, Luiz Cláudio de Azevedo. A contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na administração pública à luz da Lei nº 14.133/2021. Zênite Fácil, categoria Doutrina, 26 nov. 2022. Disponível aqui.
[5] BRASIL. Instrução Normativa Seges/ME nº 116, de 21 de dezembro de 2021. Estabelece procedimentos para a participação de pessoa física nas contratações públicas de que trata a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível aqui
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!